Capitã Marvel: entre o Queerbaiting e a Reparação

Maria Rambeau e Carol Danvers

Por Anne Caroline Quiangala

Esse texto tem spoilers!

DOS QUADRINHOS PARA AS TELONAS: UM GRANDE SALTO!
A maioria de nós conheceu a Monica Rambeau dos quadrinhos em uma situação completamente desfavorável, em Capitã Marvel #7 (2012). E, quando digo "desfavorável", me refiro ao clima defensivo de Carol Danvers em relação àquela que fora Capitã Marvel antes dela. Existe um clima de ansiedade porque Carol tem medo de que Monica, conhecida por ser "desbocada", possa trazer a tona verdades sobre a sua promoção que possam machucar ("PORQUE EU MERECI"). Nada mais típico da psique humana que se defender do que (ou de quem) ela julga ser uma ameaça, porém, naquela revista, temos um foco na insegurança de Carol, em silêncio ante às provocações, e a projeção dos seus medos na figura de Monica, de maneira injusta, tanto com a história dela nos Vingadores, quanto com o público que desconhece sua importância.

Esse clima reflete uma relação histórica entre um feminismo que parte de premissas universalistas, isto é, que se adapta a lógica masculinista branca exigindo uma fatia do poder para as mulheres brancas, e outros feminismos mais plurais, que visam o fim da opressão de todas as pessoas, incluindo os homens. Nos quadrinhos, as escolhas de roteiro convergiram para uma Capitã Marvel cada vez mais arbitrária, mais próxima do estereótipo negativo da feminista (branca) agressiva, "histérica" e - acrescento - racista, que defendeu o sufrágio delas mesmas e dos homens negros, mas não das mulheres Negras. O auge da desnecessária performance de poder da Carol aconteceu em Guerra Civil II, e comprovou o quanto sua perspectiva militar corroborava o racismo estrutural dos Estados Unidos, cuja concretude é o sistema carcerário.

"Tá certo"

Desde o início, ficou evidente que a Marvel Studios não levaria a versão Guerra Civil II para os cinemas, tanto por ela encarnar um visual "menos feminino", quanto por ser "agressiva", "sem carisma", mas não ficou tão explícita abordagem da relação entre ela e a Maria Rambeau nos trailers. Aliás, a princípio todo mundo achou que e Maria fosse uma adaptação da Monica e, diferente dos quadrinhos, havia uma proximidade autêntica entre elas.

Confesso que o meu único desejo em relação ao filme Capitã Marvel era que a heroína não fosse uma supremacista branca, e, sério, o roteiro e a presença da Brie Larson mudaram a chave da personagem de um jeito louvável. A Carol Danvers do MCU não apenas foi reformulada em sua postura de ansiedade racial, como passou a ter uma amizade muito potente com sua companheira de força aérea, e mãe da "Tenente Encrenca" Monica Rambeau. A raridade de uma amizade tão cúmplice entre mulheres, de tamanha dedicação, escorrega um pouco para a expectativa de um possível affair, o que é curioso, pois o amor-romântico interracial, na cultura pop, é uma via de humanização, de demonstrar que aquela pessoa racializada, que é digna de amor é, na verdade, digna de ser considerada uma pessoa. Em se tratando de MCU, podemos arriscar que esta é a forma de propor uma reparação ao tratamento desumanizador que mulheres Negras têm naquele Universo, em especial, a Monica Rambeau (inclusive objeto de estudo no meu mestrado, olha só a carteirada, HAHA).

Adianto que a experiência me leva a crer que a Marvel está usando diversos códigos para angariar público "feminista", simpatizante e LGBT para lucrar sem se comprometer com a concretização, o que é entendido como queerbaiting. Neste sentido, proponho uma reflexão sobre a construção de gênero das personagens e em que aspectos isso é relevante. Afinal de contas:

Se, de fato, queremos avançar com a representatividade LGBT, precisamos ser céticos, críticos e não nos contentarmos com pouco. Já passamos da fase de sermos felizes por termos possibilidades ou casais criados de lugar nenhum.

Camila Cerdeira in Finn, Poe e Queerbaiting

Será mesmo que a Carol e Maria poderiam ser promovidas a um casal? Ou será que a hipótese vem de lugar nenhum?


O QUE UMA HEROÍNA PODE SER?
A cultura pop trabalha com o que a socióloga estadunidense Patricia Hill Collins (2019) conceituou como imagens de controle. Para ela, as massas são submetidas a modelos que influenciam o modo como os indivíduos se veem, se relacionam e quais as barreiras enfrentarão ou não. Essas imagens definem modelos com os quais compactuaremos, ao reproduzirmos, ou aos quais reagiremos. Os marcadores sociais numa sociedade capitalista, heterossexista, racista e especista são determinados por um grupo de imagens de controle que recaem sobre os indivíduos, fazendo com que tenham certeza de que são bons lutadores ou se não têm aptidão "natural" para essa atividade, e, neste sentido, o grande mérito de Capitã Marvel é trazer essa discussão entrelaçada com a história de origem da personagem.

A performance dos homens relevantes no processo de aprendizagem de Carol, que incluem o pai, o superior no exército e o mentor kree, é controlada pela crença "de que eles são mais inteligentes que todo mundo, que são melhores que todo mundo. Que têm direito de mandar nas coisas. Que podem bater nas pessoas" (COLLINS, 2019), estereótipos ligados ao sexo masculino como sinônimo inequívoco de "ser homem". Fato é que esses estereótipos podem ser performados por quaisquer plataformas biológicas, e, ao se concretizar, sempre quebra a "naturalização" da continuidade sexo, gênero, performance e orientação sexual (BUTLER, 2003).

Em oposição àquela norma, temos Carol Danvers, desde a infância, em atos performativos nos quais seu corpo vivencia situações radicais de esporte e atividade militar extrema, e a sua mente resiste a todas as hostilidades, à dor física e à sensação de fracasso. Por si só, a resistência de Carol desafia a função pré-estabelecida para o seu corpo de "fêmea" branca, que, segundo os valores vitorianos ainda bem vívidos no imaginário, deveria ser privado, protegido e subordinado ao homem-cis.

Esse atravessamento das fronteiras de gênero é o primeiro passo para uma heroína seguir seu próprio destino, pois ser identificada por sua força física, racionalidade e independência significa perder sua "feminilidade", ou seja, recusar a função social pre-estabelecida. Se, por um lado, esta "feminilidade" pode ser negada, por outro, não pode ser ignorada, fato que motivou críticas do público, incomodado com uma suposta "falta de expressividade" e "carisma" da personagem.

A rigidez de seu semblante, habilidade militar e força, juntas, são ótimas expressões, porque borram as expectativas e representam o fato de que garotas são sempre coagidas a sorrir para parecerem "dóceis", aliás, para parecerem "garotas". Na pele de Brie Larson, Carol Danvers quebra esse protocolo porque só gargalha quando quer, e se diverte bastante nos combates, fato que incomoda tanto o seu tutor, Yon-Rogg (Jude Law), quanto o público nerd-padrão. O melhor disso é que ela se diverte pelo tom lúdico que ela dá à situação, diferente de personagens masculinos que são apenas sádicos, como o Justiceiro e Demolidor da Netflix.

Outros fatos sobre a sua performance, como a firmeza ao caminhar, clareza de objetivos, intimidade com tecnologias e armas, juntamente à sua aparência e abordagem não-objetificantes, contribuem para a identificação de Carol como uma guerreira inscrita em categorias tradicionalmente masculinas. Em geral, isso seria usado na cultura pop para codificar uma orientação sexual "desviante", porque há poucos contrapontos que asseguram a sua heterossexualidade presumida.

Esse jogo de estereótipos de gênero embaralham de forma ainda mais interessante quando entra em cena a melhor amiga, colega de casa, companheira de corporação, mãe de uma das pessoas mais importantes para Carol e muito mais: Maria Rambeau (Lashana Lynch).


MARIA RAMBEAU: RESISTÊNCIA, RESILIÊNCIA E REPARAÇÃO
Nos quadrinhos, conhecemos Monica Rambeau já como Capitã Marvel, filha única de um casal residente em Nova Orleans e sem background conciso. A adaptação no MCU trouxe uma outra perspectiva sobre a personagem, ela é filha de Maria Rambeau, uma aviadora que “[...] tem uma força [...] inegável [...]. Ela é jogada em muitas situações neste filme, das quais ela não foi parte, nunca viu nem presenciou – ela apenas aprende, imediatamente. Ela é muito resiliente e muito forte” (Lashana Lynch in Legião dos Superherois).

Apesar de eu ter passado boa parte do filme com o "coração na mão", morrendo de medo de que Maria fosse morrer de uma forma estúpida, corroborando a lista de Mulheres na Geladeira, isso se refere em grande parte ao repertório de filmes, livros e quadrinhos que tenho consumido ao longo de uma vida. Felizmente, no caso de Capitã Marvel, houve uma resistência à imposição de estereótipos de gênero racializados, o que possibilitou a criação de uma personagem que é mãe-solo, mas não é  resumida a nutridora ou matriarca "castradora", não é agressiva, nem gratuitamente sexy, e, sobretudo, não apresenta aquela representação "masculinizada" que tem como objetivo único oferecer uma oposição à "feminilidade-padrão", que é branca.

Rambeau é uma mulher aviadora, consciente da história de lutas que possibilitou que esteja ali, ela rompe o pacto com o patriarcado - afinal, poderia "escolher" se adequar à normatividade - para reivindicar e desenvolver sua identidade feminista negra longe das imagens de controle que impõem  à mulher Negra comportamentos correspondentes à mammy, matriarca, jezebel ou da mãe-beneficiária de assistencialismo. A força de Maria não está ligada unicamente a uma capacidade de ser "chutadora de bundas", mas ao conjunto de afetos, habilidades e escolhas que a constituem como sujeito. Essa imagem é importante para questionar o modo como mulheres Negras têm sido representadas na cultura pop e oferecer uma alternativa ao imaginário convencional do que é uma mãe Negra.

Para a filósofa portuguesa Grada Kilomba (2010), essa acomodação de signos e criação de novos significados faz parte da reparação. Em sua obra Plantation Memories (2010), ela descreve a reparação como o processo em que o sujeito-padrão, usando seu lugar de prestígio, negocia a realidade, reparando a violência causada pelo racismo a partir de atitudes de mudança no discurso, vocabulário, dinâmicas e agendas. Neste sentido, podemos identificar as personagens femininas em Pantera Negra como um primeiro passo no MCU, mas reconhecendo que a experiência nas Américas carrega uma historicidade complexa, que também precisa ser melhor descrita.

Diferente de Danvers, os elementos que reforçam a presunção de heterossexualidade de uma mulher Negra estão, em geral, ligados à função nutridora e sexualizada com base no imaginário colonial. Neste sentido, o filme acertou em cheio ao não fazer de Maria um pretexto para a ação de Carol, nem mera "negra mágica". Em vez disso, Maria é ativa, firme em seus objetivos e ideais, compreensiva, flexível e afetuosa, frágil e forte, como qualquer pessoa. Sua linguagem corporal militar, codificada, assim como a de Carol, no polo de trejeitos padronizados como masculinos, não são representados como essência racializada e sim, uma das diversas características que a compõem.

A complexidade de Maria faz dela uma personagem potente e inspiradora, que não é só corporificada e nem só mentalizada, e sua vida é muito importante. Sua potência e força correspondem a uma solução ao que Collins (2019) definiu como o grande desafio ao controle de imagens, pois ela não internaliza e não avalia seu próprio comportamento por meio delas.


"NÓS SOMOS UMA FAMÍLIA"
Em Capitã Marvel, a amizade entre Carol Danvers e Maria Rambeau é uma mudança no repertório do MCU no que se refere às relações entre mulheres e entre pessoas brancas e negras. Transformar a tensão racial dos quadrinhos em uma relação intensa, de muita confiança e companheirismo rompe com aquela imagem dos anos 1970 - finalmente - de que feministas Negras são agressivas e intolerantes, e segue em direção de uma perspectiva interseccional, de respeito, compreensão e cumplicidade na luta por um mundo justo.

Antes de avançar, é interessante pontuar que a construção discursiva da humanidade de Maria não é feita "em relação a" Carol, mas é reforçada na relação com ela naquele estilo "o ser humano é um ser social". Como o ponto de vista do filme é o da Capitã Marvel, vislumbramos suas memórias, e podemos verificar antes da primeira aparição presente de Maria, que Carol sente sua falta e a reciprocidade na conexão entre elas.

Quando Carol reaparece, seis anos após o acidente que supostamente a matara, Maria expressa uma mistura de sentimentos no olhar. Aliás, a troca de olhares e os silêncios entre elas são elementos que codificam o "inominável" ambíguo "algo a mais". Para corroborar essa hipótese, a presença de Monica é essencial, afinal, a menina é uma das pessoas mais importantes para Carol, e temos acesso aos registros de sua presença desde a tenra infância dela, o que coloca a Capitã como uma importante figura de cooperação e auxílio na criação de Monica.

Além disso, Monica tem uma admiração e respeito tão profundos que ela se espelha na coragem, honra, e senso de dever. A conexão que ela tem com Carol é tão profunda que a heroína funciona como um espelho para que a menina siga em frente em busca de seus objetivos e sonhos. O entusiasmo de Monica quando Carol retorna é lindo, pois ela guardou cada fagulha de lembranças, objetos e, num momento de júbilo, afirma que elas três são uma família.

Entre dizer que Carol é a melhor amiga e que ela, e sua mãe compõem com a heroína uma família, temos uma gama de sentidos. Considerando o que é explícito, temos uma forte crítica ao conceito tradicional de família, particularmente válido para os tempos em que vivemos, porque compreende que família é a união de pessoas que se amam, apoiam, pessoas que defendemos e por quem lutamos, em contraste ao pai que não aceita Carol e o pai ausente de Monica.

Se considerarmos o conjunto de olhares, as reticências e a história juntas como índices de uma relação afetivo-sexual, temos outra relatividade, pois naturaliza a ideia de que a orientação sexual é condicionada pela performance, sem contar com o fato de que reforça a ideia de que não existe amizade sincera e profunda entre mulheres. Essa constante ambiguidade em relação a amizade entre mulheres é uma forma de negar imagens de apoio entre mulheres, sobretudo a cooperação sincera de uma mulher branca que luta para o fim do racismo agindo em prol da reparação.

A QUEM IMPORTA A AMBIGUIDADE?
Assim como, dificilmente a Marvel investiria num filme protagonizado por uma heroína Negra, dificilmente a coragem atravessaria as barreiras do queerbaiting. Sejamos realistas, a indústria que abriga esta franquia é sustentada por uma série de valores normativos. Não acredito que Carol e Maria emplacam como casal, no mínimo a franquia manterá a ambiguidade, mas vejo essa linha como um avanço relativo, já que possibilitou que contestássemos as ideias tradicionais do que é ser mulher, do que é ser Negra, além de calibrar nossas lentes para compreender que o apagamento é tão problemático quanto o resumir personagens ao gênero, sexo, performance ou orientação sexual.

Vale sempre lembrar que podemos especular sobre a sexualidade das personagens sem aceitarmos insinuações como vitórias e tendo em vista que a sexualidade é - ou deveria ser - um simples dato sobre as pessoas, não o resumo do que elas são, afinal os estereótipos estão aí para serem quebrados, e levarem abaixo a heterossexualidade compulsória, não para ajudar a solidificar mais códigos dentro da matriz de normatização.

“Minha sexualidade não é a coisa mais interessante sobre mim” – Cosima Orphan Black

"Que tal mostrar pra eles como nós fazemos isso? Tá pronta?'


[ATUALIZAÇÃO EM 29/03/2019]


DEFINITIVE PROOF CAPTAIN MARVEL IS GAY (SPOILERS)
por Rowan Ellis



OBRAS CONSULTADAS
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
COLLINS, Patricia H. Patricia Hill Collins explica PENSAMENTO FEMINISTA NEGRO | #1 Imagens de controle <www.youtube.com/watch?v=XVdbyhuAJEs>. Acesso em 09 mar de 2019.
______. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment, Routledge, New York, 2000.
KILOMBA, Grada. Plantation Memories: episodes of everyday racism. Budapeste: Unrast, 2010.
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