A vida e a obra de Octavia Butler e N.K. Jemisin cria raízes entre as estrelas

por Anne Quiangala 

“Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco”
(Octavia Butler)

Embora a literatura especulativa (fantasia, ficção científica e horror) seja vista pelos mais apocalípticos dentre os apocalípticos como uma forma menor de expressão escrita, ela mesma passou a se esgueirar por uma zona árida entre o território das obras recobertas por literariedade e um universo expandido rentável. Assim, desprovida de autorização para estadia plena no mundo da "alta literatura", a ficção especulativa criou em torno de si um universo próprio que replica o paradigma do sistema que a excluiu: juízo de valor e de qualidade, a construção e celebração da figura do autor, temas considerados relevantes, premiações tendenciosas e - evidentemente - a reprodução do imaginário e de representações que refletem e naturalizam a experiência hegemônica como sinônimo de “alta fantasia”, “hard science fiction” e “horror cósmico”1. Apesar disso tudo, como qualquer estrela dessa galáxia chamada literatura, a ficção especulativa como tem sido feita, já consumiu energia demais, liberou seu brilho, e caminha para um novo modo de existência. 

Neste sentido, estudos feministas na década de 1970, marcando seus pontos de interesse social e acadêmico, questionaram a historicização e a chave de análise do gênero gótico. Até àquela altura, o gênero era registrado na história da literatura a partir duma perspectiva social que privilegiou unicamente a experiência masculina que, por sinal, era responsável por nada mais que 2% da produção (SCHWANTES, 1997). Quanto ao holofote interessado e comprometido com a ideia de neutralidade, temos como melhor exemplo o ensaio O horror sobrenatural em literatura, de Lovecraft, que representa, sem qualquer reflexão, uma história do horror sobrenatural que exclui a produção quase total de mulheres. 

Se um público inicia seus estudos no horror sobrenatural na literatura, será influenciado por um filtro de autor reconhecido e celebrado como referência (ainda que alegadamente racista e misógino, já que matar o autor é uma tendência na crítica atual) que reflete sua perspectiva política em ficção e não-ficção. Qual a chance deste público, educado pela perspectiva de Lovecraft, perguntar por que ele transformou o dado real de 98% de autoras em 2% no seu ensaio? Essa fabricação da realidade (ou esta manipulação da memória histórica, para ser exata), promovida pelo ensaio lovecraftiano, alicerça o imaginário convencional que ignora a ficção especulativa de autoria feminina (com raríssimas exceções, aprovadas por Lovecraft), e, em especial, negra. Felizmente, a antologia Vitorianas Macabras, organizada e traduzida por Márcia Heloísa (2020) apresenta um trabalho de rigor acadêmico que falseia o “clássico” de Lovecraft apresentando fatos consistentes e textos literários de forma acessível ao grande público. 

Mas, dando um passo e tomando a questão fundamental da obra Horror Noire: a representação Negra nos filmes de horror, de Robin Means Coleman (2019) e todo corpo de textos produzidos no site The Graveyard Shift Sisters, de Ashlee BlackWell, podemos afirmar que não apenas a população negra, como mulheres, pessoas LGBTQIAP+ produzem obras de horror há muito tempo. Ciente disso, meu ponto de partida, naturalmente, é o impacto da diferença de poder nas obras de Octavia Butler e N. K Jemisin (a partir de agora, Nora Jemisin), que demandam novas formas de analisar e desafiam o corpo teórico vigente por serem duplamente desvalorizadas (intra e extra diegeticamente). O título provisório da minha tese O Discurso do horror na Sankofanarração especulativa de Octavia Butler e Norah Jemisin, propõe, num primeiro momento, analisar o contexto de produção e contrastar as obras Kindred e a duologia Semente da Terra de Butler com a trilogia Terra Partida de Jemisin olhando para o discurso do horror que atravessa essas obras majoritariamente estudadas como ficção científica. 


Entretanto, os romances convencionais são um desafio para a crítica literária contemporânea, que tem cada vez mais prismas validados e incorporados ao espaço tradicional de análise. E os prismas aos quais me refiro não se restringem à forma literária, mas ao gênero e aos marcadores sociais do sujeito que escreve. Assim, o modo de construir a realidade que o sistema literário professava na modernidade reforçava um tipo de lógica que foi enfraquecendo à medida que buscava se firmar como universal, elevada e literária. Enquanto isso, a arte “menor” e os grupos sociais minorizados foram abrindo espaço e firmando novos alicerces, nas margens e desde as margens, negociando e acomodando realidades distintas. Essa disputa narrativa no mundo cultural e literário foi escancarando que a literatura é política e a literariedade é um campo em disputa como qualquer outro. E não só isso, a teoria da representação social de Serge Moscovici demonstrou que o real (história) e o ficcional (literatura) não se opõem, mas se retroalimentam. 

É neste campo intersticial entre o real e o fictício que se encontra a autoficção, estejam os sujeitos reais presentes de forma mais ou menos densa na narrativa e esteja a especulação inscrita ou não no “sobre-natural”. Ciente disso, proponho no presente texto o contraste entre dois ensaios autobiográficos das autoras cujos romances mencionei acima (Butler e Jemisin), nos quais elas narram a odisseia pessoal de tornarem-se escritoras. Os ensaios são: Obsessão Positiva (2018 [1989]) e Quanto ainda falta para o mês do futuro negro (2019). Considerando a relação equilibrada entre a escrita de si e a “outra ficção" (uma percepção de autoria zumbi2), minha tese a ser desenvolvida a seguir, em três eixos, é a de que esses textos em primeira pessoa iluminam a compreensão dos romances. Para este estudo, dividirei a análise em eixos que são “a escrita de si”, a “metalinguagem” e “as fronteiras rompidas”. 


ESCRITA DE SI COMO UNIVERSO EXPANDIDO 

A franquia de fantasia Star Wars construiu a noção de “galáxia distante” de uma parcela considerável do público imerso no mundo capitalista da década de 1970 em diante, mas foram os filmes e os produtos licenciados que redefiniram os rumos da especulativa que impactaram o sistema literário de forma permanente. Em vez de pedir permissão para os arautos da “alta” literatura, a literatura especulativa “de massa” (herdeira do gótico, inclusive) abraçou o mercado com os novos modos de circulação, novas formas de ler, franquias de jogos, quadrinhos, action figures, animações e novas autoridades que “ensinam” a ler. Tomando emprestado o modo como a franquia criada por George Lucas foi capilarizando seu conteúdo e alcançado cada vez mais público, observamos o movimento do audiovisual se tornando literário, e do universo expandido pra além das trilogias fílmicas dando forma e impactando a obra base. Esses movimentos também são observados em grandes franquias que se iniciaram nos quadrinhos, nas séries de televisão ou nos jogos eletrônicos e popularizando a ideia de escrita pós-autônoma (não com esse nome) na realidade do cotidiano. 

A literatura-pós autônoma, segundo Josefina Ludmer (2007) é aquela que desafia a lógica interna do campo literário, que investia poder em definir e reiterar regras e atores próprios e buscava se afastar do econômico e do cultural embora sempre tenha servido para criação e reiteração destes campos. Assim, a escrita pós-autônoma não tem compromisso com aquela centralização, já que reúne em si mesma a história, o excerto de outras plataformas, formas, gêneros literários ou não, a realidade do cotidiano, as ficções do presente, teoria e testemunho da vida. A despeito da discussão da pós-autonomia em território acadêmico não ser unanimidade, as “provocações” de Ludmer são fundamentadas em fatos facilmente observáveis na literatura contemporânea. E a morte da estrela Literatura (autônoma), revela que o universo é amplo, é diverso, é plurivocal e a luz liberada pela estrela após tanto esforço em se manter hegemônica evidencia novos corpúsculos, novos olhares, novas territorialidades que sempre existiram, mas que agora são menos ofuscadas. Exemplo desse renascer é o reconhecimento da importância das obras de Octavia Butler, a “dama da ficção científica” e os três prêmios Hugo de Nora Jemisin

Nos ensaios Obsessão Positiva (2018 [1989]) e Quanto falta até o mês do futuro negro? (2019) as autoras escrevem sobre suas histórias com a escrita, narram a trajetória de tornarem-se escritoras e, mesmo com trinta anos de diferença entre os textos, condições materiais e locais diferentes entre elas, é possível observar desafios semelhantes em decorrência do racismo genderizado. A permanência de obstáculos à publicação, aceitação e reconhecimento de seus trabalhos reitera a necessidade de uma consciência de seu local social, e a importância dessa perspectiva e da representatividade (elas representam um corpo social e suas obras e ações estão alinhadas em interesse, objetivo e poder com as demandas coletivas) tanto para chegarem onde chegaram, quanto para a produção de suas obras e transformação de suas figuras em representantes de um grupo social excluído dos locais nos quais elas transitam. 

Enquanto Butler narra sua história, desde a infância, costurando com o contexto histórico de segregação racial nos EUA, até a consolidação de sua carreira, Jemisin3 se atém à reflexão sobre a economia e a cultura que emolduram o literário, fato que influenciou sua carreira de escritora a ponto de só poder se dedicar após os trinta anos de idade. Relações sociais, desigualdade e história antecedem a existência e subjetividade individual, e esse fato auto-evidente é o ponto de partida para ambas as autoras, que são negras, estadunidenses e oriundas da classe trabalhadora. Ambas, pela excepcionalidade dos seus romances, foram laureadas com premiações muito importantes da ficção científica como Hugo e Nebulla Awards e, mesmo com décadas de distância, são pioneiras ao “criar raízes entre as estrelas” (BUTLER, 2018). 

Nos ensaios de Butler e Jemisin, vemos um lugar de enunciação4 bem marcado que, por meio de estratégias distintas de narrar, vai tecendo em volta disso o propósito de sua escrita e sustentando escolhas formais e estéticas. Butler divide o ensaio em quatorze partes e narra concisa e cronologicamente os fatos de sua vida, percepções e convicções desde os seis anos de idade. Já Jemisin constrói uma análise do sistema literário e o processo de entendimento dele, bem como fatos da vida que convergiram para a sua escolha profissional pela carreira literária. A consciência social para ambas as autoras é um fio condutor imprescindível para sua escrita, e suas obras - dentre vários temas - discutem o quanto ser uma mulher negra na sociedade racista influencia o que lemos, onde estudamos, nossos anseios coletivos e as lacunas entre tudo isso. 

Em Obsessão Positiva, Butler passa pela ideia de vocação para nomear uma experiência poderosa. A partir da experiência que teve com a técnica de mirar com arco e flecha, a autora afirma que: “A obsessão positiva é sobre não parar mesmo que você esteja com medo ou com muitas dúvidas. A obsessão positiva é perigosa. É sobre não conseguir parar de forma alguma!” (BUTLER, 2018). De mirar a flecha a mirar a si mesma, Butler insere camadas de sentido literário ao mesmo tempo que demonstra que a injustiça social fazia uma força grande para que ela se contentasse com subempregos, trabalho braçal e do que sua tia quis convencer “[...] Pessoas negras não podem ser escritoras” (BUTLER, 2018). Butler não demonstra na sua escrita nenhum tipo de hierarquização do saber ou do trabalho, o contentar-se aqui diz respeito mais às heranças da escravidão, que ela contestou ativamente ao longo da vida. Assim, Octavia Butler buscou mirar a si mesma além do que era socialmente pretendido para uma mulher negra e refletiu isso em protagonistas fortes e positivamente obcecadas. 

Seu projeto pessoal de tornar-se escritora carregava um enorme comprometimento com a coletividade, uma vez que não ter referências fez com que se empenhasse em alcançar um lugar de representação que pudesse estimular a imaginação (e a obsessão positiva) de outras garotas como ela. Assim, na escrita de si, Butler demonstra que literário, cotidiano, metáfora e concretude, personagem e escritora são inseparáveis e que esse vínculo é essencial para um projeto de sociedade que seja, de fato, revolucionário. 

A premiada romancista Nora Jemisin, por sua vez, abre sua primeira obra de histórias curtas How Long 'till Black Future Month? com o ensaio que se torna uma espécie de chave de leitura. Em 2002, ela passou pelo que chamou de “crise de meia-idade” embalada pela dívida devido ao empréstimo estudantil e decidiu transformar seu hobby em carreira, primeiramente para quitar a dívida. Esse plano, por mais improdutivo que possa parecer num primeiro momento, também era embalado por um profundo “pessimismo da razão” de alguém com total consciência de que a “Ficção Científica era autoproclamada a ficção do futuro, mas continuava sendo a celebração de rostos e vozes e histórias do passado” (JEMISIN, 2018). Ela afirma que o livro em questão é literatura (contos) ao mesmo tempo que são crônicas de sua jornada pessoal como escritora e ativista. Neste sentido, é interessante observar que ela se autodeclara ativista e escritora sem hierarquizar, pontuando o quanto a consciência social é importante, sem pensar a escrita como mero suporte de empreendimento político como escritores renomados do século XIX e XX. Assim, o objetivo com a escrita e o “pessimismo da razão” refletem um lócus social que também vê importância na representatividade tanto na diegese como fora dela. 


N.K. Jemisin

REVISITAR A SI MESMA PELA ESCRITA 

Os ensaios de Butler e Jemisin, por serem testemunhos de suas vidas de escritoras, carregam em si duas camadas de metalinguagem. Na primeira, como narradoras, é notável uma reflexão sobre o sistema literário. Na segunda, como personagens, descrevem os percalços até alcançarem o reconhecimento, tanto do público, quanto do mercado editorial. 

Ao revisitar a si mesma pela elaboração sobre sua trajetória como escritora, Butler nos apresenta uma narrativa com personagens, enredo, voz narrativa, diálogos, tempo e espaço, elementos que podem nos conduzir a categorizações literárias: 


Eu queria vender uma história. Antes de saber datilografar, eu queria vender uma história. Eu escrevi minhas histórias “catando milho” na portátil máquina de escrever Remington que minha mãe comprou para mim. Eu implorei pela máquina quando tinha dez anos, e minha mãe a comprou. “Você mima essa criança!” um dos amigos dela disse. “Pra que ela precisa de uma máquina de escrever na idade dela? Logo vai estar empoeirada dentro do armário. Todo esse dinheiro desperdiçado!” (BUTLER, 2018)

Ao revisitar a infância com um olhar literário, Butler enxerta um prosaísmo que serve de sustentáculo do conceito de obsessão positiva. Uma criança negra real é submetida a violências verbais e epistemológicas tais que a adultizam, trazendo para o presente as relações do passado colonial (KILOMBA, 2019). Qual o problema de mimar uma criança? Acaso fosse uma criança não-negra ela seria lida como digna de mimos? E o que teria acontecido se a mãe de Butler houvesse negado a máquina de escrever? Por maior que fosse a convergência do desejo de ser escritora e do apoio da mãe, o texto deixa transparecer pelo volume de diálogos contrários que esta força era maior. Por esta razão, o “otimismo da vontade” que a autora usa como base para costurar sua história também serve de suporte para as suas heroínas escritoras em Kindred: Laços de Sangue e A Parábola do Semeador. Outro elemento que aparece em Obsessão Positiva, e é notável nos romances, é o desenvolvimento de uma tese incrustada no núcleo de metáforas e analogias. 

No primeiro volume da Semente da Terra, A parábola do semeador, a heroína Lauren Olamina, uma adolescente negra, oriunda de classe popular e com deficiência, registra o seu cotidiano distópico num diário dando corpo a sua existência e aos argumentos que constrói. Ela cria a Semente da Terra, uma espécie de religião que tem em vista ser um modo de vida sustentável, espiritualizado e em coletividade. Lauren, assim como Octavia, é atravessada pela obsessão positiva que, aliás, aparece em uma de suas poesias do “Semente da Terra: O livro dos vivos”. Obsessão positiva aqui traz uma importante camada de significado, que é a característica de uma sobrevivente. A lição é que, sujeitos que persistem, apesar dos discursos violentos sobre seus corpos, são sobreviventes. Butler é tão sobrevivente quanto Lauren, e quanto Dana, protagonista de Kindred. Dana começa o romance como escritora não profissional, que trabalha em depósito, tal como Butler trabalhou. Claro, não é incomum que quem escreve use de sua experiência para dar vida a obras ficcionais, mas uma leitura atenta de suas obras capta esses rastros da biografia, mais pelo desenvolvimento das ideias (no ensaio ela é uma de suas heroínas) do que pelo puro biografismo. 

Nora Jemisin revisita sua própria história pondo a si mesma como um processo de conscientização, já que descreve que escrevia histórias análogas às tradicionais, mas foi percebendo que se ela continuasse reproduzindo a exclusão que sofria, e se não incluísse personagens negros em suas histórias, quem os incluiria? A escrita virou um compromisso coletivo que vai além da representação (se ver), é representatividade (se ver com alinhamento de interesse, objetivo e poder). Ainda no ensaio, ela confessa: “Eu notei que muitas das minhas histórias são sobre aceitação de diferenças e mudança... e pouquíssimas são sobre lutar contra alguém” (JEMISIN, 2019). Tal afirmação revela um elemento chave do primeiro romance da Terra Partida: A Quinta Estação. Nele, temos “protagonistas” que passam por experiências horrendas de exclusão, desterritorialidade e violência física, que ocasionam mudanças profundas na psique, e também temos processos de mudança que marcam o caráter de sujeito, que são escolhas conscientes do que deseja mudar em si mesma e ao redor, bem como do que manter.

De forma “subterrânea”, as “protagonistas” se constituem à medida que vivem, e questionam o que é “ser”, já que mudam, negociam, acomodam identidades, memórias, percepções nas relações com Outros. Suas personagens passam por situações-limite e precisam sobreviver apesar da força social que dificulta sua mobilidade nas esferas física e econômica, bem como na jornada da heroína. Este desafio é similar aos que a própria Jemisin descreve ao escrever sobre si, mas a gramatura da metáfora aqui é maior: a Terra partida é uma personificação das emoções humanas, em especial, de quem é sistemática e historicamente oprimida. 

A metalinguagem é o eixo mais profícuo do corpus de análise porque as autoras, suas heroínas ficcionais e as heroínas autoficcionais não ocupam lugares fixos nem no “real” nem na “fábula”. A protagonista Esun de Jemisin vive num mundo em que os rogga vivem situações análogas aos que foram chamados nigger na realidade factual, enquanto Dana, de Butler, é tragada por uma viagem no tempo ao passado colonial similar à experiência de racismo cotidiano (KILOMBA, 2019) reproduzida pelos adultos à volta de Butler. Essas fronteiras rompidas em obras de grande circulação reforçam os pressupostos de Ludmer sobre a escrita pós-autônoma e também normalizam para o público amplo a dissolução da dicotomia apocalípticos e integrados, alta e baixa literatura, gêneros literários e não-literários, que ainda libera suas últimas ondas de luz que viajarão causando ao olho humano a impressão de vida. Não sejamos inocentes: como qualquer estrela depois da morte, as dicotomias ainda serão visíveis por bastante tempo. 


O ECONÔMICO POR TRÁS DO LITERÁRIO 

A figura do autor atravessando um bloqueio criativo como personagem é cada vez mais recorrente na literatura contemporânea. Escrevem sobre o ato de escrever, descrevem as minúcias do bloqueio criativo, revelam suas opiniões e características controversas e, assim, se tornam atores sociais pra além do mundo material. Esta presença maciça da autoria na literatura contemporânea se tornou uma questão-problema toda vez que aquele sujeito transita, não apenas como "personagem", mas como performer que espelha o real verbalmente. Na maior parte das vezes, esse trânsito é uma demonstração de poder, e significa “eu posso atravessar” ou “eu posso permanecer”. O processo desigual de globalização nos lembra que o direito de transitar, imigrar ou de permanecer também reflete um lugar de experiência, uma perspectiva repleta de possibilidades (privilegiadas) do real. E esses sujeitos que transitam em busca da inspiração no “mundo das ideias” são o lugar oposto ao do método, porque atualizam a ideia romântica (e burguesa) do autor envolto pelas “musas”. Para Butler, porém, é importante que se "esqueça a inspiração. O hábito é mais confiável. Ele irá sustentá-lo, esteja você inspirado ou não. E irá ajudá-lo a terminar e polir suas histórias. A inspiração não. O hábito é a persistência na prática” (BUTLER, 2020, p. 154). 

O aforismo de Butler retira o glamour da profissão e a aproxima da vida cotidiana de uma trabalhadora que tem uma vida “tediosa”. Essa afirmação já marca a consciência de classe ao pressupor que, se o escritor precisa produzir não é dono dos meios de produção, portanto é trabalhador tanto quanto qualquer outro. O hábito, a repetição ou reprodução num imaginário convencional são associadas ao trabalho socialmente visto como inferior, não criativo, ligado ao “impuro” corpo físico; mas Butler rompe essa barreira com seu modo pragmático de descrever o real: ela é escritora porque escreve, não porque deseja escrever. Mas vale lembrar que esta é a noção de uma Butler mais madura, consolidada no mundo editorial, e já "tendo pagado caro pela ignorância”. Em suas palavras: 

 

Ninguém tinha nos contado que agentes não deveriam receber adiantamento em dinheiro; não era para serem pagos até que vendessem seu trabalho. Então, eles ganhariam dez por cento do que seu trabalho faturasse. A ignorância é cara. Aqueles $61,20 dólares, na época, era mais dinheiro do que minha mãe pagava por um mês de aluguel (BUTLER, 2018).

 

Jemisin, por sua vez, decidiu investir na carreira literária após a faculdade e pretendia ser remunerada e assim pagar sua dívida estudantil. Este é um ponto importante em sua trajetória como autora porque ela já tinha compreendido a dimensão de como as instituições e os sujeitos que as constituíam (outros autores, críticos, jornalistas, acadêmicos e editores) encarnavam os desafios que ela deveria transpor e refletiam a perspectiva tradicional da ficção especulativa, em suas palavras “[...] infindáveis variações sobre a Europa medieval e colonização dos Estados Unidos” (JEMISIN, 2019). Além disso, no ensaio, ela lança luz nos bastidores da indústria, revelando a importância de ter feito um investimento considerável para participar de workshops e residências essenciais para que entendesse que, além de escrever, refinar a técnica, era importante entender a ficção como “negócios”. Depois de tudo isso, ela afirma que se profissionalizou na escrita e na compreensão do sistema como um todo, e podemos deduzir que seu laureamento é resultado da qualidade estética e de uma estratégia alicerçada pelo conhecimento do sistema e da leitura eficiente do momento histórico. 

Tanto para Butler quanto para Jemisin, no início da carreira, faltava uma noção clara de que existe um econômico por trás do literário. E esta é mais uma dimensão das memórias da plantação (KILOMBA, 2019) que enfretaram. A teórica e artista multidisciplinar Grada Kilomba desenvolve em sua obra Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano a tese de que a população negra é retirada do presente a todo momento numa sociedade racista, seja pelas situações cotidianas, pelo racismo institucional e estrutural. O reduzido acesso à educação financeira, de conhecimento empresarial e da economia por trás da arte fez com que Butler e Jemisin tenham gastado muito tempo no processo de se informar sobre tudo isso, o que é uma esfera da desvantagem em relação a escritores que pertencem a corpos sociais com outras historicidades. 


CONCLUSÃO 

Marcadores sociais de diferença não são auto-evidentes, tampouco marcam fixidez identitária, mas como um dado do real que influencia as relações sociais precisa ser posto na equação do que quer que esteja sendo discutido e analisado, inclusive a ficção especulativa. No posfácio de Obsessão Positiva, Butler afirma: “Estou feliz de ter escrito esse texto, mas eu não gostei de escrevê-lo. Eu não tenho a menor dúvida de que a melhor e mais interessante parte de mim é a minha ficção”. Por mais desagradáveis que possam ser as memórias da plantação (KILOMBA, 2019) evocadas ao longo do texto, análogas às viagens de Dana em Kindred, a gênese da escritora é uma importante forja de ferramenta teórica para as heroínas de suas obras. Esse desagrado que envolve a escrita de si, parece evidenciar uma camada interessante de sua obsessão positiva que conduziu a construção de mundos distantes do aqui e agora. 

Jemisin encerra seu ensaio comentando que passou por um processo interno e profissional essencial para contribuir para a “desintoxicação da ficção especulativa” (JEMISIN, 2013). A partir de seu reconhecimento profissional, a autora se tornou mentora de outras autoras: “Agora eu sou destemida e raivosa e mais alegre; e nenhuma dessas características contradiz a outra. Agora eu sou a escritora que as histórias curtas criaram. Então vamos. Existe um futuro ali na frente. Vamos todas!” (JEMISIN, 2019). Esse processo de tornar-se escritora, costurado com o tornar-se sujeito tem um impacto no mercado, no público consumidor e tudo isso tem uma contraparte política, uma vez que representação estética também é representação política. 

Em suma, ao se determinarem a fazer parte da mudança do mercado editorial de ficção especulativa e promoverem a conscientização coletiva, as autoras estudadas aqui transformam seus relatos pessoais em autoficções políticas diretamente herdeiras de toda a escrita de si desde o período colonial. De forma alguma, a abstração que a especulação proporciona ignora os desafios, horrores e privações enfrentados pela população negra, na verdade, parte deles para especular futuros possíveis, exercitar a imaginação política e testar o que é histórica e socialmente impossível. A literatura especulativa de autoria feminina e negra, numa era pós-autônoma, é imprescindível para exercitar a imaginação política e promover imagens que auxiliem o processo de conscientização coletiva, sem que seja necessário, pra isso, sacrificar a estética, a literariedade e outros componentes que ainda brilham em direção aos nossos olhos. Talvez a magia de tudo isso seja que a literatura (seja ela o que for) assumiu seu caráter plástico e, portanto, resta às analistas assumirem que, tal como um universo, ela é imensa e está em expansão.




NOTAS



1 Exemplo disso é o racismo fantástico ser o suporte de obras clássicas como O Senhor dos Anéis, o horror cósmico representar o medo racista de Lovecraft e ainda assim permanecerem impassíveis no cânone.

2 Durante uma conversa com a autora Aline Valek, em 2019, sobre o lugar da crítica e da autoria, enquanto ela escrevia o recém-lançado Cidades afundam em dias normais (2020) expliquei que entendia os dois extremos (a morte do autor e o biografismo) como problemas graves, e afirmei que melhor seria a ideia de “autor zumbi” (ao estilo Walking Dead) que me permitiria recuperá-lo quando necessário, mas focando o texto.

3 Nora Jemisin recebeu três vezes o Hugo, pela sua trilogia Terra Partida, enquanto o autor da série que inspirou a série da HBO Game of Thrones nunca recebeu nenhum. Sentindo-se injustiçado por nunca ter vencido, o autor proferiu ofensas profundamente racistas contra Jemisin em sua “festa anual dos não laureados”.

4 Escolho usar “lugar de enunciação” como sinônimo de “lugar de fala” já que os equívocos sobre o termo levam, na pior hipótese, à total desconsideração, e na "um pouco menos pior", a considerar o termo como algo que delimita um algo fixo, essencializado e concreto. Na obra Lugar de Fala, a filósofa Djamila Ribeiro (2017) evidencia que lugar de fala não é sobre autorizar a fala, nem mesmo sobre marcador social e discurso serem transparentes, autoevidentes ou essencializados. Em vez disso, com uma leitura apurada de Spivak, Ribeiro relaciona a historicidade das identidades minorizadas, objetivo, interesse e poder coletivo para demonstrar que a narrativa sobre o sujeito pré-existe, mas não é uma ferramenta que simplesmente o colapsa.



AGRADECIMENTO


Esse texto foi produzido como trabalho final de disciplina de doutorado em 2021, ministrada pelo professor Igor Graciano Ximenes. O entendimento do conceito de literatura pós-autônoma e as discussões sobre a morte do autor foram imprescindíveis para o presente texto.



REFERÊNCIAS 

BUTLER, Octavia E. Obsessão positiva. Trad. Tuanny Medeiros. Disponível em: <letraspretas.com/2018/01/23/obsessao-positiva-por-octavia-e-butler/>. (2018) Acesso em 9 de dez. 20. 

______. Furor scribendi in Filhos de sangue e outras histórias. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Morro Branco, 2020.

______. A Parábola do semeador. Rio de Janeiro: Morro Branco, 2018b. 

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Trad. Jessica Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 

LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Iluminuras, 2008. 

LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas in: Ciberletras - Revista de crítica literaria y de cultura, n. 17, julho de 2007. 

JEMISIN, Nora K. Quanto falta até o mês do futuro negro?. Trad. Anne Quiangala. Disponível em: <www.pretaenerd.com.br/2019/01/traducaohowlongtillblackfuture.html>. Acesso em 9 de dez. 20. 

_____.How Long ’til Black Future Month?.(2013) Disponível em: 

<nkjemisin.com/2013/09/how-long-til-black-future-month/>. Acesso em 9 de dez. 20. RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. Belo Horizonte: Jandaira, 2017. 

SCHWANTES, Cíntia. Interferindo no cânone: a questão do Bildungsroman feminino com elementos Góticos (Tese), UFRGS, 1997.


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