As conexões entre passado, presente e futuro em Kindred e A parábola do semeador, de Octavia E. Butler


por Waldson Souza*


Em seus trabalhos, Octavia E. Butler costumava explorar a noção afrofuturista do tempo como algo cíclico. Ações do passado constroem o nosso presente e também definem o futuro, dificultando projeções ou demonstrando o que precisa ser feito para quebrar continuidades e elaborar o futuro que desejamos. Tanto em Kindred (1979) quanto em A parábola do semeador (1993) vemos como é importante aprender com o passado antes de pensarmos em como transformar o mundo. Outro fator presente nessas duas obras é o pensamento interseccional. As personagens demonstram como identidades diversas são lidas pela sociedade e geram experiências distintas.


Kindred: Laços de Sangue

Kindred é uma das obras mais importantes e conhecidas de Octavia E. Butler. No romance, a protagonista e narradora, Dana Franklin, é transportada misteriosamente para um passado escravista, no período pré-Guerra Civil. Estamos acostumados a ver personagens brancos, principalmente homens, protagonizando histórias de viagens no tempo. Quando pensamos em outras possibilidades de protagonismo para além desse modelo, precisamos levar em consideração que, para grupos minorizados, o passado é um lugar ainda mais violento e opressivo do que o presente. Então, retornar no tempo, dependendo da época, pode se tornar um problema.

Por ser uma mulher negra, Dana passa a ser escravizada no passado, ficando sujeita às violências do período geradas não só por questões raciais, mas também de gênero. As viagens acontecem de forma imprevisível e compulsória, Dana é levada para o passado sempre que seu antepassado Rufus está em perigo e é devolvida para o presente quando a vida dela está em risco. Ela logo entende que precisa continuar salvando Rufus para manter a linhagem e garantir sua própria existência

Um dos dilemas de Dana está pautado na impossibilidade de mudar o passado. Mesmo sabendo que a escravidão deixou de ser legalizada, a protagonista se sente impotente ao desejar poder fazer algo mais efetivo para libertar as outras pessoas negras escravizadas com as quais convive. A partir de sua experiência, Dana começa a ter uma maior compreensão de como o presente carrega resquícios da escravidão e de como determinadas violências foram mantidas ou transformadas ao longo do tempo. Dessa forma, o livro reforça o que Grada Kilomba (2019) defende sobre o colonialismo ser uma ferida do passado que deixa marcas no presente. De acordo com Kilomba,

o colonialismo é vivenciado como real – somos capazes de senti-lo! Esse imediatismo, no qual passado se torna presente e o presente passado, é outra característica do trauma clássico. Experiencia-se o presente como se estivesse no passado. Por um lado, cenas coloniais (o passado) são reencenadas através do racismo cotidiano (o presente) e, por outro lado, o racismo cotidiano (o presente) remonta cenas do colonialismo (o passado). A ferida do presente ainda é a ferida do passado e vice-versa; o passado e o presente entrelaçam-se como resultado (KILOMBA, 2019, p. 158).

Kindred torna essa relação entre passado e presente ainda mais palpável, pois é algo que Dana passa a ter contato de forma física com as viagens que vão se tornando recorrentes. Estar fisicamente no século XIX faz com que ela tenha outra dimensão sobre o contexto; ficar retornando para a década de 1970 permite que ela reflita sobre o antes e o agora. Como analisa Sherryl Vint (2007), a história de Dana é marcada pelo fato de que só se é possível conhecer a escravidão verdadeiramente através da experiência pelo corpo, da vivência na própria pele. O conhecimento histórico sobre o período não foi suficiente para preparar Dana para as situações nas quais se encontra e observa.

Ao aprender com o passado para reavaliar o presente, Dana assume uma postura afrofuturista. Um dos desafios do afrofuturismo quando se pensa em questionar a experiência negra contemporânea ou em construir futuros possíveis é o problema gerado pelas lacunas e feridas do passado. Para a elaboração de imagens futuras é preciso primeiro resgatar o que ficou para trás, pois, tal como em Kindred, o tempo do mundo não ficcional é cíclico e nossa sociedade é formada por resultados de ações passadas — e o colonialismo tem uma enorme influência nessa construção. O aprendizado com o passado é essencial para projetarmos modelos sociais mais justos, conforme pode ser observado não só neste romance, mas também em A parábola do semeador.


Octavia E. Butler, a grande dama da ficção científica


A distopia, assim como a viagem no tempo, é um tema da ficção científica que ganha novos parâmetros de abordagens e análises quando nos voltamos para narrativas com protagonismo negro atrelado a uma discussão racial. A teoria afrofuturista entende que a experiência negra na modernidade já é por si só uma distopia. O colonialismo é lido como um evento apocalíptico para pessoas negras, comparado com uma invasão alienígena — Dery (1994), Eshun (2003) e Womack (2013) estão entre os estudiosos que falam sobre essa questão. A chegada de colonizadores no continente africano e abdução de pessoas negras marcam o início da distopia, construída através de opressão, violência, racismo científico, encarceramento em massa, violência policial, pobreza etc. Por esses motivos, pensar em ficção distópica protagonizada por pessoas negras só faz sentido se as adversidades do mundo real forem levadas em consideração, pois a distopia não é um evento de ruptura para esta população, mas sim algo que vem sendo vivenciado há séculos.

A Parábola do Semeador

Tido muitas vezes como profético, A parábola do semeador foi publicado em 1993 e se passa em um contexto pós-apocalíptico gerado por mudanças climáticas e econômicas. Através dos escritos em seus diários, acompanhamos a história de Lauren Olamina, uma jovem que vive em uma comunidade relativamente segura com sua família. Tudo muda quando essa comunidade é atacada e ela vê seus familiares e pessoas conhecidas morrendo. Sem ter mais um lar, Lauren precisa ir embora e enfrentar o mundo que existe além dos muros. Em sua jornada, ela encontra algumas pessoas com as quais desenvolve laços de confiança para enfrentar as adversidades. Enquanto isso, Lauren começa a falar com essas pessoas sobre o sistema de crenças que criou chamado Semente da Terra. Ela busca compartilhar seus pensamentos e ideias sobre Deus e o universo, esperando que assim possa fazer os outros se tornarem adeptos à sua religião.

Butler não poupa o leitor ao descrever os horrores do futuro pós-apocalíptico no qual sua narrativa se passa. A sociedade mudou, há bastante violência, desemprego, pessoas vivendo nas ruas, a educação está defasada, as leis trabalhistas se tornaram cada vez mais flexíveis a ponto de gerar um novo tipo de escravidão. E os mais afetados pelo sistema são justamente pessoas racializadas e pobres. Lauren está ciente do que é ser uma mulher negra em um contexto tão violento, por isso assume uma postura prática para a resolução de problemas, apoiando-se em estratégias de sobrevivência e nos ideais de sua crença.

Em A Parábola do Semeador, a religião é um tema central. Lauren teve criação cristã, mas o Deus que inventa para Semente da Terra é muito diferente, a começar pelo fato de não se tratar de um ser antropomórfico. Lauren define Deus como Mudança, um processo que pode nos transformar, mas também pode ser transformado: ela acredita ser mensageira dessa nova fé, e entende que sua missão no mundo é alcançar mais pessoas, montar uma comunidade e contribuir para que o objetivo mais audacioso da Semente da Terra se torne possível.



Lauren afirma que fixar raízes entre as estrelas, ou seja, colonizar outros planetas é a única forma de garantir que a humanidade realmente sobreviva e se imortalize. Ela entende que a existência no planeta Terra é finita, principalmente considerando toda desigualdade e os problemas ambientais existentes no planeta. É através desse pensamento que ela mostra que a utopia pode ser alcançada, mesmo com todo o contexto no qual estão inseridos. Ao analisar A parábola do semeador e os livros da trilogia Xenogênese, também da autora, Jonh Miller (1998) comenta que Octavia Butler utiliza contextos pessimistas e cenários repletos de violência para desenvolver um pensamento utópico. Não existem respostas reconfortantes ou soluções fáceis, mas há a esperança de se construir um mundo melhor tendo como lição os acontecimentos do passado (MILLER, 1998).

A mudança é definida como algo inevitável em A parábola do semeador, vários registros de Lauren falam sobre como a mudança pode ser alcançada através de ações, mas, ao mesmo tempo, determinados fatores não podem ser alterados a curto prazo. Tudo se transforma. O que conversa com noção apresentada em Kindred, através da percepção de Dana, de que o passado em si é estático, impossível de passar por modificações, porém pode nos ensinar a como lidar com o presente e o futuro — ou seja, Dana não pode mudá-lo, mas é transformada por ele.

Conclusão

A mudança é um pensamento central na obra de Octavia Butler como um todo. Em Kindred, o passado é tido como algo definitivo, por mais que Dana queira libertar as outras pessoas escravizadas, ela está ciente de que o período se encerrou e de que sua missão ao voltar no tempo é garantir que sua linhagem seja mantida. Mesmo assim, a mudança acontece na transformação pessoal da protagonista. Já em A parábola do semeador, o tema é um dos fundamentos da religião criada por Lauren, e o entendimento das transformações que podemos proporcionar ou simplesmente nos atingir é tido como uma forma de compreender o mundo. A mudança é possível, mas depende da aprendizagem em relação ao passado, do contexto atual e do quanto há de disposição e oportunidade para desenvolvê-la. Butler não mostra contexto ou caminhos fáceis, e sim histórias marcadas por violência e opressão. Entretanto, a autora não nos deixa só com o pessimismo; ela propõe discussões que tocam a raiz dos problemas, elaborando compreensões e mostrando que alcançar justiça social é possível. A autora tinha consciência da relevância e do poder que narrativas podem carregar. Em um de seus ensaios, ela falou sobre a relação de pessoas negras com a ficção científica:

As dúvidas se apresentam de várias maneiras. Mas ainda me perguntam: De que adianta a ficção científica para o povo negro? De que adianta qualquer gênero de literatura para o povo negro? De que adianta o pensamento da ficção científica sobre o presente, o futuro e o passado? De que adianta a tendência da ficção científica em advertir ou levar em consideração formas alternativas de pensamento e ação? De que adianta a análise dos possíveis efeitos da ciência e da tecnologia, ou da organização social e da orientação política, pela ficção científica? Em seu melhor sentido, a ficção científica estimula a imaginação e a criatividade. Coloca quem lê e quem escreve fora dos caminhos já conhecidos, fora das trilhas muito estreitas do que “todo mundo” está dizendo, fazendo, pensando, seja lá quem for “todo mundo” naquele momento (BUTLER, 2020, p. 150 - grifo nosso).

Butler desafiou parâmetros ao criar mundos e colocar mulheres negras na posição de protagonistas, com discussões centradas em assuntos pertinentes para a população negra. Seus livros desmontam estereótipos e tocam em questões urgentes de forma cuidadosa. A representatividade desenvolvida possui um significado que vai além da ficção, pois constrói imagens nas quais pessoas negras podem se reconhecer e ao mesmo tempo acessar temas complexos sendo abordados a partir de uma perspectiva não hegemônica.

É importante lembrar que quase todos os livros de Octavia Butler são anteriores à criação do termo afrofuturismo, mas foi justamente o seu trabalho, junto com o de outros autores e artistas, que contribuiu para a elaboração do conceito e das reflexões críticas sobre o movimento. Mesmo com suas obras situadas no contexto estadunidense, as discussões nelas presentes são de suma importância para pensarmos sobre como lidamos com o passado, como avaliamos nosso presente e quais mudanças queremos proporcionar para o futuro da humanidade.


*Waldson Gomes de Souza é mestre em Literatura pela Universidade de Brasília pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura (PosLit). Possui graduação em Letras-Português do Brasil como Segunda Língua pela Universidade de Brasília. Foi pesquisador da Universidade de Brasília, vinculado ao Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC). Tem interesse nos temas: afrofuturismo, ficção especulativa, autoria negra e representação.



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Bibliografia


BUTLER, Octavia E. Kindred: laços de sangue. Trad. Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2017. 
BUTLER, Octavia E. A parábola do semeador. Trad. Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.
BUTLER, Octavia E. Filhos de sangue e outras histórias. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Editora Morro Branco, 2020.
DERY, Mark. Black to the Future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose. In: DERY, Mark (ed.). Flame Wars: The Discourse of Cyberculture. Durham, NC: Duke University Press, 1994. p. 179-222.
ESHUN, Kodwo (2003). Further considerations on afrofuturism. In: CR: The New Centennial Review, v. 3, n. 2, p. 287-302, summer 2003.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 
MILLER, Jim. Post-Apocalyptic Hoping: Octavia Butler's Dystopian/Utopian Vision. Science 
Fiction Studies, Vol. 25, No. 2, p. 336-360, 1998.
VINT, Sherryl. Only by Experience;: Embodiment and the Limitations of Realism in Neo-Slave Narratives. Science Fiction Studies, Vol. 34, No. 2, p. 241-261, 2007.
WOMACK, Ytasha L. Afrofuturism: the world of black sci-fi and fantasy culture. Chicago: Lawrence Hill Books, 2013.
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