Especulando o futuro

Sun Ra foi um compositor poeta e filósofo conhecido por sua "filosofia cósmica", composições musicais e performances afrofuturistas



Por Waldson Souza*

Quando analisamos as temáticas recorrentes da ficção científica, percebemos que este gênero aborda várias questões que são experiências reais para a população negra. Podemos citar como exemplo o trabalho compulsório e a negação da humanidade para androides, o preconceito contra seres sobrenaturais, o contato com o Outro, a colonização espacial, a própria distopia. Entretanto, essas temáticas acabam funcionando quase sempre como metáforas uma vez que obras de ficção científica são majoritariamente protagonizadas por personagens brancos.

Diante desse problema de falta de representatividade negra, não só na ficção científica, mas também na fantasia e no horror sobrenatural, o afrofuturismo pode ser utilizado para questionarmos lacunas e para pensar em outras formas de construir narrativas dentro desses gêneros. Como proposta conceitual e discursiva, o afrofuturismo é um termo que utilizamos para definir obras de ficção especulativa (fantasia, ficção científica e horror sobrenatural) protagonizadas e produzidas por pessoas negras e que apresentam temáticas e perspectivas voltadas para as experiências dessa população.

Quando o termo foi criado, um dos principais tópicos de discussão era sobre a necessidade de mais pessoas negras produzindo e protagonizando histórias de ficção científica. Independentemente do gênero ficcional, sabemos que as histórias sobre pessoas negras foram e são constantemente narradas por quem detém maior poder sobre os meios discursivos. Nesse sentido, poder contar as próprias narrativas nos dá maior controle sobre as imagens que são criadas sobre nós no mundo real. Por isso a exigência por uma representação que não se resuma à estética e esteja atrelada com nossos interesses enquanto grupo.


Grada Kilomba é escritora, filósofa e artista multidisciplinar


Em sua essência mais ampla, afrofuturismo é sobre protagonizar as próprias histórias, criar outros mundos, questionar o presente, reelaborar o passado e projetar imagens que queremos encontrar na realidade. Tudo isso com as ferramentas discursivas que os gêneros especulativos nos permitem colocar em prática. Dentro desse campo de possibilidades, seria improdutivo pensar no tempo como algo cronológico e fixo. Com um passado sistematicamente apagado e um presente que dificulta nossa existência, é um verdadeiro desafio para a população negra imaginar futuros positivos — sonhar para além dos limites que as estruturas racistas querem estabelecer. Grada Kilomba, em Memórias da plantação, fala sobre como o colonialismo se manifesta no racismo cotidiano. Lidamos com tudo de forma simultânea, porque o tempo é cíclico. Nessa mesma lógica, o afrofuturismo entende o colonialismo como um evento apocalíptico para população negra, uma catástrofe que gerou o contexto pós-apocalíptico que encontramos hoje.

Octavia E. Butler trabalha toda essa complexidade em suas obras. Mesmo quando constrói contextos pós-apocalípticos onde a violência e a opressão afetam principalmente mulheres racializadas, Butler aponta para a possibilidade de construirmos um mundo utópico. E isso é se faz possível com o aprendizado sobre o passado e o entendimento constante de como lidamos com a mudança, processo que nos transforma mesmo quando não conseguimos transformar o mundo. Butler e outros artistas afrofuturistas nos fornecem imagens de pessoas negras nos mais variados contextos e com isso ampliam a nossa noção de possibilidades de experiências e existências.

Em novembro, o blog Preta, Nerd & Burning Hell celebrará o mês do Futuro Negro. O conteúdo será focado em discussões sobre ficção científica, afrofuturismo, gerenciamento de tempo, futuro e outros assuntos relacionados.


Octavia Butler é conhecida como A Grande Dama da Ficção Científica



As duas obras audiovisuais do #PretaWatch do mês foram escolhidos pensando em dois temas muito recorrentes na ficção científica: viagem no tempo e distopia. A primeira dessas obras será o filme Filhos da esperança, lançado em 2006 e dirigido por Alfonso Cuarón. A narrativa se passa em um futuro pós-apocalíptico no qual seres humanos não nascem mais. Apesar de não ter o protagonismo centrado em pessoas negras, o filme possui uma personagem negra importante para o desenvolvimento do enredo e aborda temas que serão pertinentes para analisarmos tendo como chave de leitura a teoria afrofuturista.

A segunda obra escolhida é o 3º episódio da 1ª temporada de Além da imaginação (The Twilight Zone), série antológica lançada em 2019 e que tem Jordan Peele entre os produtores. O episódio é intitulado “Replay” e mostra uma mãe precisando voltar no tempo para ajudar seu filho a se livrar de um policial branco. A partir dessa narrativa poderemos discutir sobre algumas convenções da viagem no tempo e sobre como o racismo opera para dificultar a existência de um futuro para a população negra.

Considerando as adversidades e os problemas da realidade, pode ser difícil conseguir imaginar alternativas positivas. Um mundo ideal e livre de desigualdades não existe, mas o primeiro passo para a construção de uma sociedade melhor e mais justa vem do exercício de imaginação. É por isso que, fora da ficção, estamos fazendo ficção científica “quando falamos sobre um mundo sem prisões; um mundo sem violência policial; um mundo onde todo mundo tem comida, roupas, abrigo, educação de qualidade; um mundo livre da supremacia branca, do patriarcado, do capitalismo, do heterossexismo” (IMARISHA, 2015, sem página, tradução minha). Especular é um exercício diário quando queremos ampliar nossas possibilidade de existência.


*Waldson Gomes de Souza é mestre em Literatura pela Universidade de Brasília pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura (PósLit). Possui graduação em Letras-Português do Brasil como Segunda Língua pela Universidade de Brasília. Foi pesquisador da Universidade de Brasília, vinculado ao Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC). Tem interesse nos temas: afrofuturismo, ficção especulativa, autoria negra e representação.


Esse mês, Preta, Nerd oferece a oficina Afrofuturismo: o futuro ancestral na ficção especulativa, com Waldson Souza: Inscreva-se!


Referências


DELANY, Samuel R. The necessity of tomorrows. In: Starboard wine: more notes on the language of science fiction. New York: Dragon Press, 1984.

DERY, Mark. Black to the Future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose. In: DERY, Mark (ed.). Flame Wars: The Discourse of Cyberculture. Durham, NC: Duke University Press, 1994, p. 179-222.

IMARISHA, Walidah. Rewriting the future: using science fiction to re-envision justice. Bitch Media, 11 dev. 2015. Disponível em: <https://www.bitchmedia.org/article/rewriting-the-future-prison-abolition-science-fiction>. 

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
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