A gente se vê ontem, mas (só) sob o olhar do Outro



Por Anne Caroline Quiangala


TEXTO COM SPOILER

O filme original Netflix A gente se vê ontem (2019) é uma aventura protagonizada pela jovem cientista Claudette Josephine Walker (Eden Duncan-Smith) e seu melhor amigo, Sebastian Thomas (Dante Crichlow). A dupla é brilhante, e cientes de seu brilhantismo, trabalham num empreendimento audacioso para chegarem ao objetivo máximo: uma bolsa de estudos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. O experimento é um Teste de Deslocamento Temporal, por meio de um dispositivo chamado de Mochila de Deslocamento Temporal (MDT), que torna concreta a teoria do espaço-tempo de Einstein, bastante difundida hoje em dia pelos livros do Stephen Hawking.

Num primeiro momento, temos a construção do cotidiano de CJ e Sebastian, seus interesses, gostos e conflitos típicos da adolescência, indicando o quão valorosas, inventivas e cheias de potência são essas vidas. Neste processo, experiências comuns a jovens negros vão sendo introduzidas (como estratégias cotidianas contra o racismo, a violência policial, legados da escravidão nas relações familiares) juntamente a inúmeras referências. O filme aliás, costura uma série de referências visuais, musicais, literárias, políticas para criar uma contextualização complexa e, aí sim, introduzir o tema central, que é "parem de nos matar". Uma vez familiarizadas com as personagens principais, suas famílias, o Bronx, a escola e seus conflitos particulares, somos levadas à cena em que o irmão mais velho de CJ, Calvin Walker, de 19 anos, é brutalmente assassinado por um policial branco. A morte do irmão, passa a ser um marco para CJ, que entra numa condição obstinada de voltar no tempo para salvá-lo do assassinato.

De modo geral, o filme traz importantes temas à luz, por meio duma estética impecável e, claro, um deslocamento importantíssimo da experiência de viagem no tempo fixada em nossa experiência fílmica com De Volta Para o Futuro I, II e III, Interestelar e muitos outros estrelados por homens brancos. Ele introduz muitos temas, muitos assuntos, arrisca na inserção exacerbada de referências, mas não desenvolve nenhuma delas o suficiente. E não falo de "encerrar um assunto", mas de ir além do básico, instrumentalizar e convidar a o público jovem a refletir.

Embora a violência policial tenha sido o tópico mais desenvolvido, não há fôlego para sustentar a discussão pra além de uma denúncia, e o mesmo acontece com a crítica ao estereótipo de cientista e os conflitos relacionados ao fato de CJ ser uma cientista. Assuntos como a importância da autonomia no processo de formação do estudante, colorismo, imagens de controle, o deficitário ensino de ciências na educação básica e a dificuldade de inserção social das mulheres negras estão dispersos ao longo do filme, simplesmente na forma de descrição e simultaneidade. E, a meu ver, isso é grave.



Levando em consideração que o filme se propõe político, dadas as bandeiras e discursos dos próprios personagens, e que o seu público-alvo é infanto-juvenil e jovem-adulto, entendo que a fragilidade de A Gente Se Vê Ontem foi esquecer o quanto é importante que as discussões sejam elaboradas de modo também formativo, levando em conta que há sutilezas não explicadas que reafirmam conhecimentos hegemônicos que os jovens já acessaram de outras formas. Neste sentido, não posicionar-se, contribui para a manutenção duma visão tradicional dos fatos, uma perda de oportunidade para introduzir realmente novas narrativas.
  
Por esta razão, dentre os inúmeros assuntos, gostaria de discutir brevemente, neste texto, como a representação da cientista CJ Walker em A Gente Se Vê Ontem reduz uma jovem espetacular a uma "jovem problemática", senão o próprio problema. 

PROVA REAL - APRISIONAMENTO PELA IMAGEM


Embora 2015 tenha sido considerado pela crítica "o ano das mulheres no cinema", a maioria dos filmes que encabeçam a lista são protagonizados por mulheres brancas, fortes, indiferentes, e encarnando diferentes performances de feminilidade. Filmes protagonizados por mulheres Negras, no entanto foram ofuscados, tanto pela falta de divulgação das produtoras, quanto pelo esforço da crítica especializada em ser meramente opinativa. Apesar disso, podemos destacar na mídia de massa,  um boom de personagens, garotas e mulheres Negras, que se destacam intelectualmente, e representam de forma que nós podemos nos enxergar amplamente, o que inclui a perspectiva.

O ano de 2016 foi fabuloso pra nós que somos Pretas e Nerds, seja pela explosão de ficções que abarcam nossa visão de mundo, seja por finalmente o reconhecimento da importância de acadêmicas e cientistas Negras ter assumido um destaque. Foi naquele ano que a musa do NerdCore, nerd e PhD Sammus lançou o álbum Pieces on Space, em que fala sobre sua experiência como rapper, nerd, acadêmica sendo uma jovem mulher  negra. A diretora Ava DuVernay entregou a série Queen Sugar, que é de uma perfeição absoluta, o que inclui a atuação da inteligentíssima protagonista Nova Boderland (Rutina Wesley). O longa Estrelas Além do Tempo (2016) divulgou uma história sobre três mulheres Negras reais, solidárias, com identidades distintas umas das outras, com família estruturada,  amorosas, capazes de se divertirem e de serem profissionais excelentes. No mesmo ano, tivemos a estréia da personagem Lunella Lafayette, a pessoa mais inteligente do Universo Marvel, protagonista do título Moongirl & Devil Dinosaur, bem como da jovem estudante do MIT, Riri Williams que, protagonizou o título Homem de Ferro

De lá pra cá, temos outras potências: Michael Burnham (Star Trek: Discovery), a Jacqui Briggs (Mortal Kombat X e 11), Shuri (Pantera Negra) e Mag (Uma Dobra no Tempo), fato que me possibilita olhar para A Gente Se Vê Ontem, muito além duma gratidão por suprir o total apagamento. Tenho total certeza de que, sendo uma criança dos anos 1990, assistir a este filme naquela época teria me levado a receber este mínimo como se fosse tudo, isso simplesmente porque nós não existíamos (ao menos, não por muito tempo) na cultura de massa. Assistir hoje, já é bastante diferente.

Atualmente, uma ampla discussão sobre a representação de mulheres Negras na cultura de massa tem sido feita, retomando e ampliando os estudos feministas como os de bell hooks. Em seu ensaio O Olhar Opositivo - A Espectadora Negra (1992), ela descreveu a experiência coletiva de mulheres negras como um tipo de público que, devido às violências sistêmicas aplicadas a construção de imagens estereotipadas, historicamente não podem simplesmente assistir a filmes e buscar por identificação. Nosso olhar e fruição tem sido delineados pela reiteração de imagens negativas e degradantes que buscam instituir verdades, controlar nossos corpos e definir como outros grupos se relacionam conosco; isso fez de nós, espectadoras resistentes, capazes de desmontar, analisar e refutar tais discursos. Uma questão que hooks (1992) aponta é o fato de que homens negros, não raro, produzirem narrativas tributárias daquele olhar ofensivo, resultante da opressão interseccional (racial e de gênero). Ela cita como exemplo o filme Ela Quer tudo, que recebeu um remake Original Netflix, curiosamente uma obra do reconhecido diretor Spike Lee, aliás, também produtor executivo de A Gente Se Vê Ontem.




O aspecto mais frustrante de A Gente Se Vê Ontem foi ir conscientemente disposta a me identificar com Claudette Josephine - tal como os filmes, séries e quadrinhos supracitados -, e observar que ela foi descrita a partir dum olhar atento a respeito de relações raciais, porém insensível ao gênero, tornando o conteúdo bastante tóxico. Essa toxidade, nos faz lembrar que as obras assinadas por Spike Lee, segundo bell hooks, Grace P. Gipson e outras teóricas, somam oportunidades perdidas de representação digna de mulheres Negras, mesmo em produções recentes como O Infiltrado na Klan e Ela Quer Tudo, ambos de 2018.



CLAUDETTE JOSEPHINE WALKER E A QUEBRA DO ESTEREÓTIPO DE CIENTISTA


Se, por um lado, A Gente Se Vê Ontem, e seu clima de nostalgia dos anos 90, nos oferece um contra-imaginário ao inserir uma jovem negra como cientista completa, indo do polo da explicação típica de nerd à consciência racial, por outro lado, como uma garota, ela é uma violência simbólica a qualquer jovem negra. Diferente de Uma Dobra no Tempo (2018), em que vemos a protagonista Mag marcada pelo trauma da ausência do pai e a contextualização de todas as suas atitudes reativas, falta de interesse escolar e falta de sociabilidade, CJ Walker é vista em função das consequências, e não das causas.

Cenas que mostram uma personagem Negra agredindo alguém de forma física ou não, sem marcar a causa, por omissão, culpabiliza o "principal alvo" duma sociedade racista, sexista e classista historicamente construída pelo escravismo: a mulher negra. E criar uma protagonista através dessas amarras discursivas faz com que a personagem seja odiável ao público, e não "imperfeita" ou "humana", sobretudo se na trama não vemos outras possibilidades de comportamento de outras mulheres negras relevantes, assim, a audiência reconhece o subtexto de naturalização do ódio a mulheres Negras, que todo mundo já viu em algum lugar - inclusive nós mesmas. Enquanto a sociedade for regida pela matriz de opressões não existe uma "insuportável jovem Negra" ser uma Lady Bird, porque o mundo já nos odeia só por nós existirmos. 

Quanto a CJ, ela é a típica garota que vive cercada de garotos, sem se importar muito em ser a única, ou seja, acometida pelo Princípio de Smurfette. Sua companhia preferida é o Sebastian, mas também se relaciona de forma saudável e amorosa com seu irmão mais velho e trabalhador, Calvin. Calvin apresenta um comportamento que tanto reitera o imaginário do rapaz negro marcado por injustiça social, quanto seu esforço em proteger a irmã e trabalhar. Sua perspectiva é muito bem desenvolvida, a ponto de facilitar a identificação com ele e sentir o impacto de sua morte. 

Sebastian, embora seja um adjuvante, representa a capacidade de um jovem negro ser inteligentíssimo, focado nos estudos, solidário, amoroso e, quebrando definitivamente o estereótipo do negro forte, ele não tem "aptidão" para o trabalho braçal. Sua objetividade e senso de consequência, são traços considerados "masculinos" conforme os estereótipos normativos de gênero, e essas características, geralmente são usadas para tentar convencer CJ a ser menos impulsiva. Por mais que sua masculinidade seja saudável, a passagem em que voltam no tempo pela primeira vez, mostra um Sebastian preocupado com o transporte correto da matéria do seu pênis, o que é um alívio cômico, mas marca sua lógica falocêntrica, lógica esta que estrutura a subjetividade masculina-cis numa sociedade sexista e machista.

Existem outras representações de masculinidades que orbitam a narrativa de CJ, e todas elas apresentam mais relevância que as femininas. Neste sentido, a repetição de que ela "sempre age como uma maluca" (Jared), "deu uma de louca do nada (...) precisa se controlar" (Calvin) e "parece meio difícil" (avó do Eduardo) criam um paradigma de feminilidade negra e, pra piorar, naturalizam todo o comportamento "agressivo" e "castrador" que a CJ costuma ter. A percepção de pessoas diferentes dela a respeito de seus "problemas sociais" prevalecem, inclusive porque ao ser contrariada pelo Sebastian, ela usa chantagem emocional como ferramenta; observamos nisso que, mesmo CJ sendo capaz de provar uma teoria que Einstein (um dos maiores físicos do século XX) passou a vida inteira tentando,  ela usa as artimanhas emocionais associadas ao "feminino" dos moldes eurocêntricos.



Esse "ser difícil" é reforçado narrativamente quando seu desejo de mudança se traduz em voltar no tempo para salvar seu irmão do assassinato. A cada retorno, fica mais evidente que ela está obcecada pela resolução do problema da violência policial. Como uma verdadeira cientista, ela usa seu conhecimento para a mudar a realidade social, a ponto de seu objetivo virar uma obsessão. Aqui eu te pergunto: qual cientista historicamente relevante não se entregou ao ofício e chegou à autodestruição? Podemos lembrar da Marie Curie, e de muitas outras listadas no livro Wonder Women: 25 mulheres inovadoras, inventoras e pioneiras que fizeram a diferença (2017) da Sam Maggs. Quanto aos homens, é naturalizado que eles possam ser absorvidos pelo trabalho, então nos filmes sobre eles, isso é uma qualidade.

Duma perspectiva interseccional, podemos recalibrar o olhar e entender que, se a opressão recai de forma acumulativa sobre a mulher Negra, base da pirâmide social, a força que precisamos fazer para subir tem que ser muito grande. Muito maior, inclusive que as sabotagens do professor de ciências que, admite a genialidade da personagem, mas recompensa outro garoto, não-negro, de origem latina, Eduardo. E qual a fonte deste poder? Nas palavras da Dama da Ficção Científica, Octavia Butler, é a Obsessão positiva (1989/1995). Em suas palavras:

"A obsessão positiva é sobre não parar mesmo que você esteja com medo ou com muitas dúvidas. A obsessão positiva é perigosa. É sobre não conseguir parar de forma alguma." 

Sem sombra de dúvida, essa obstinação que define a personalidade de CJ é um traço importante observado nas biografias de mulheres Negras que foram referência nas mais distintas áreas, a exemplo de Octavia Butler, que decidiu "viver de sua escrita" numa época em que não existia pessoas negras vivendo de escrita nos EUA. Outro aspecto, pouco explorado, é a solidariedade de CJ para com uma "irmã" cujo computador estava obsoleto; porém, essa solidariedade é, narrativamente, anulada na passagem em que a jovem assume o estereótipo da "barraqueira" ao agredir a atual namorada do seu ex-namorado, Jared. A namorada, aliás, só aparece para performar uma feminilidade que rivaliza com outras mulheres e enxerga o próprio valor na sexualidade.

Para além do bom gosto de CJ para a paleta de cores e escolha de roupas, eu gostaria de ver um aprofundamento maior em sua "corporificação da consciência negra" e nerd. Tanto ela quanto Sebastian, vestem camisetas com referências a quadrinhos, por exemplo, e isso é um índice da identidade nerd, mas o comportamento "estranho" e "louco" que, no mundo real, é lido como "distanciamento da raça" (veja essa discussão na letra Weirdo, da Sammus) se performado por pessoas negras, é marca do  imaginário de cientista (branco e homem) desde um Einstein a um Sheldon. 

Em suma, o olhar externo, quando parte da outridade que naturaliza estereótipos e não problematiza com profundidade, nos violenta repetidamente. Ao tentar fixar imagens e interpretações que não correspondem ao modo como nos vemos, não oferecem modelos mais diversos, passiveis de nos causar o reconhecimento, diretores e diretoras perpetuam o racismo engendrado. Mesmo cientes que direitos e conquistas sociais e políticas não são perpétuas, nós não temos que aceitar essas representações que centralizam o nosso corpo "porque diversidade vende" e não absorvem nossas ideias, nosso conhecimento e larga produção intelectual. CJ é uma garota apaixonante, e se não era o suficiente para os anos 1990 - em que já existia a Captain Marvel II: Monica Rambeau - imagina só se hoje a gente deixaria passar. Até parece.
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