O que é #BlackGirlMagic?


Mistificação é uma das palavras-chave que norteia as relações raciais, porque o racismo se constrói pelo argumento de que não se entende como ou porque negros conseguem fazer, seja la o que fazemos e fizemos (arquitetura, filosofia, arte). Não é raro associarem a construção de pirâmides (tambem como se fossem unicamente no Egito) aos alienígenas do passado ou à capacidade sobre-humana, senão mágica daquele povo místico do Antigo Egito.

As Múmias Vivas (1997) é um dos meus desenhos favoritos, mas o esforço pra associar Egito à branquitude é um grave imenso.

A ininteligibilidade também é atribuída a uma suposta essência que possibilita resistir a tudo, desde o trabalho na lavoura, em tempos de escravização, até às violências de todo o tipo dos tempos de hoje. Representada como resiliência, a "força moral", ou o "espírito de independência e de autosuficiencia" (DAVIS, 2016 [1981], p. 26) que nos impulsiona tem sido manipulada imageticamente para nos convencer de que negros humildes sempre foram a maioria, e que aceitam viver à sombra dum branco emocionante quebrado, que precisa se reerguer. Esta é a tal da "magia" em sua instrumentalização anti-negritude.

Roxane Gay (2016) afirma que a figura do negro mágico [magical negro]:

[...] é responsável por outorgar ao protagonista [branco] a sabedoria de que ele ou ela precisa para de algum modo seguir em frente.

(GAY, 2016, p. 209).

Trazendo a definição de Matthew Hughey, ela explica que este modelo de personagem tende a pertencer tanto à classe trabalhadora, quanto não-escolarizada, de modo que a sua grande importância está nos poderes tidos como sobrenaturais - mágicos - de salvar e de transformar brancos "de bom coração, embora improdutivos, em pessoas bem-sucedidas. Inclusive, é bastante comum em narrativas que, assim que o negro mágico cumpre a sua função Mágica, ele passe a não ser necessário, e morrer. 

Isso é um tropo bastante comum na mídia, um dos mais frustrantes eu diria, porque tanto tem em vista disciplinar, quanto mantém a sutil imagem de ininteligíbidade. Se você pensar bem, a representação de pessoas negras, em especial Mulheres, passa pela initeligibilidade que os brancos nos construiam e reduzem a subjetividade à exploração voluntaria. Esse controle de imagens reitera a ideia de que uns devem servir e outros devem ser servidos. Tal retórica tem sido potente o bastante pra reger vidas, comportamentos e subjetividades "reais", mas junto à força, sempre há resistência: muitas vezes a contradição, a recusa em si, não é retórica, mas comportamental.

Durante a escravização, a recusa por meio de revoltas, fugas e sabotagens era tão real quanto o uso daquela magia, que Angela Davis (2016 [1981]) descreveu como "espirito de independência", para aprender a ler e manter a si e à comunidade a par dos acontecimentos políticos. Vemos isso tambem no diário de Carolina de Jesus (Quarto de Despejo): uma visão crítica, lúcida, do cenário político de seu tempo. Segundo Aline Valek (2016):

O quarto de despejo surge como uma metáfora para a desigualdade que estabelece seu papel e sua posição nessa história: ela aponta que, enquanto o centro da cidade é a sala de visitas, a favela é o quarto onde se joga o indesejável, o entulho, tudo aquilo que se quer esconder. Sua escrita, no entanto, é sua forma de se recusar a ser 'despejo', a ser 'resto'.

(VALEK via Carta Capital).

A recusa de Carolina de Jesus a ser despejo indica que sua dignidade é usada em seu próprio bem - por uma questão de sobrevivência. Neste sentido, podemos compreender que essa magia - e mantemos a palavra deslocando o conceito - está presente e é transmitida para as gerações seguintes. Embora as imagens de Hollywood e de todas as outras indústrias potentes (bem como os livros didáticos!) informarem que a nossa "magia" sempre foi usada em benefício branco de forma voluntária, se observarmos as pensadoras Negras que nos precederam, observaremos que a magia sempre foi uma resistência usada, majoritariamente, em nosso favor. É improvável que a representação do tropo do "negro mágico", no fundo, signifique condescendencia real, afinal, a violência física que o sistema escravocrata exercia exigiu de indivíduos negros estratégias de sobrevivência que incluem o fingimento, ou "dançar conforme a música".

Rutina Wesley <3

Tendo em vista tudo isso, CaShawn Thompson, em 2013, em decorrência dum inspirador discurso da Ex-Primeira Dama Michelle Obama no Black Girls Rock, criou a hashtag #blackgirlmagic (literalmente Garotas Negras Mágicas), para ressignificar o termo celebrando o poder, a expressividade, o sucesso, coragem, estilo, beleza e tudo o mais que é magnífico e, portanto, difícil de classificar. Essa magnitude se refere, portanto, à representatividade que mulheres icônicas nos inspiram, não à hipérbole de ser muito melhor para tentar ser igual, nem mesmo à capacidade sobre-humana. "Resistir é preciso", mas não é nada fácil alcançar, seja o que for, numa sociedade construída sobre nossa carne e osso, significa exceder, sair da moldura, não por excepcionalmente inata, mas pra manter o capital vital.

Julee Wilson (2016) conceituou da seguinte maneira:

Garota Negra Mágica [Black Girl Magic] é um termo usado pra conceituar aquela impressão de maravilhosidade universal que nós mulheres Negras sentimos. É sobre celebrar tudo aquilo que nos inebria, inspirando ou nos surpreendendo sobre o que há de melhor em nós mesmas.

(WILSON & via Huffpost - tradução livre).

Naquela época o termo foi bastante criticado, sob o viés de que "Mulheres Negras não são mágicas, mas sim humanas". Ora, a negritude é exatamente a "marca de diferença" que modula a exploração deste corpo, num sentido de animalização, de modo que a "solidariedade humana" (DAVIS, 2016, p. 38) representa uma reivindicação, em última instância, contraproducente. Assim como não adianta que uma mulher, lésbica, Transexual ou homem gay, racializados etc reivindique a inserção na sociedade dos homens cisgenero heterossexuais.


O termo Garota Negra Mágica não faz referência ao suposto poder místico - atraibuido por subjetividades brancas - mas à um modo positivo (e não romantizado) de que as experiências concretas, inclusive de brutalidade, não destruíram nossa excelência coletiva. A engenharia, arte, filosofia e demais campos de conhecimento preexistentes no continente africano evidenciam o quanto a ênfase da hashtag sequer diz respeito ao mito da meritocracia, da redenção e do esforço, mas uma celebração da continuidade da tradição ainda que atravessada por reveses promovidos pelas injustiças sociais

Não terem sido subjugadas, apesar de tudo o que tiveram que enfrentaram faz de nossas inspiradoras predecessoras parte do que nossa moldura do idioma, da linguagem em si, não é capaz de expressar em toda a sua maravilhosidade. Então parece justo que o legado seja celebrado sim a partir desta significação que, de forma alguma, encarcera todo o potencial significativo do nosso corpo social. Black Girls Magic é muito mais um horizonte ilimitado de experiências e significações do que qualquer outra coisa.

Ao menos é o que eu sinto sempre que vejo a necessidade de sair de casa e PRECISO ouvir uma canção da Tamar-Kali ou de qualquer Negra roqueira inspiradora. E por falar nas Garotas Negras Mágicas que tanto me inspiram, seguem algumas delas:


E você, o que acha disso? Quem são suas Garotas Negras Mágicas?

REFERÊNCIAS
DAVIS, Angela Y. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016. (Compre aqui!)
GAY, Roxane. Má Feminista: Ensaios provocativos de uma ativista desastrosa. São Paulo: Novo Século, 2016. (Compre aqui!)
VALEK, Aline. Carolina Maria de Jesus, a catadora de letras (2016). Disponível em: <www.cartacapital.com.br/cultura/carolina-maria-de-jesus-a-catadora-de-letras>. Acesso em 14 de agosto de 2017.
WILSON, Julee.The Meaning Of #BlackGirlMagic, And How You Can Get Some Of It (2016). Acesso em 14 de agosto de 2017.
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