ESTRELAS ALÉM DO TEMPO quebra uma (grande) mentira branca

hidden figures
 As três cientistas que mudaram a corrida espacial na década de 1960.
Da esquerda para a direita:  Mary Jackson (Janelle Monáe), Ketherine Johnson (Taraji P. Henson) e Dorothy Vaughan (Octavia Spencer).

SPOILER

Todas nós sabemos que uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade. Essa é uma lição conhecida particularmente por minorias políticas porque vivenciamos o tempo inteiro a incursão de discursos que buscam nos desestruturar, paralisar e ferir. Devido à crescente divulgação das conquistas, invenções e descobertas empreendidas por mulheres, negros e pessoas não-binárias fica evidente que nós sempre estivemos em todos os lugares, mesmo que não muitas, mesmo que desacreditadas. Esse apagamento é uma estratégia eficaz de nos distanciar da ciência, uma vez que as imagens de referência são o primeiro estalo de identificação sobre o que desejamos ser. 

Todas as pessoas precisam se ver para compreenderem que é possível e daí vem a autoestima e assombrosa sensação de legitimidade dum Paul Stafford (Estrelas além do tempo) ou  Sheldon (The Big Bang Theory). Curioso que, ao mesmo tempo que são investidos de todo o poder, um fio de insegurança se soma ao desejo de aniquilação da diferença quase nunca reconhecido. Não reconhecer é uma forma de omitir os fatos, o que tem sido mais difícil com o passar do tempo. Cada vez mais, abre-se o espaço de resposta e de reforço do que não pode ser esquecido. Estrelas além do tempo é exatamente essa lembrança, a quebra duma mentira e a certeza de que podemos alcançar o que formos capazes de desejar. Neste sentido, é muito importante que as pessoas brancas reconheçam seu lugar na história de opressão e usem o privilégio para romper a ordem social - consciência expressada pelo diretor e Estrelas além do tempo, Ted Melfi. Ao ser interpelado sobre o porquê do apagamento das heroínas de Estrelas além do tempo, ele afirma:

"Tem a ver com racismo e sexismo. Nós escondemos as conquistas das mulheres. Temos filmes sobre a NASA  e elas só aparecem como secretárias e esposas" 
(Ted Melfi, diretor de Estrelas além do tempo via Fantástico)

Também sabemos que nem sempre as mentiras são ditas com todas as letras: podem ser mantidas em segredo (como o racismo) ou no esquecimento, para beneficio de grupos sociais poderosos. Contra essas formas de mentira e de ocultação, estreia nos cinemas brasileiros Estrelas além do tempo [Hidden Figures, Theodore Melfi, 20th Century Fox, 2016 - 2h7min], baseado na biografia de mesmo nome escrita por Margot Lee Shetterly (escritora negra, filha de cientistas, e que conviveu nesta zona da Nasa até então desconhecida pela maioria de nós!).

estrelas além do tempo
Numa imagem Estrelas além do tempo [Hidden Figures] desmonta uma grande mentira que começou (talvez) quando disseram que egípcios não construíram pirâmides e sim os X-Men ou extraterrestres.


Estrelas Além do Tempo


Durante a corrida espacial entre os Estados Unidos e a Rússia (Guerra Fria) houve uma equipe de cientistas da NASA totalmente composta por mulheres negras conhecidas como computadores humanos, dada sua habilidade exata de calcular. Dentre elas, destacam-se três amigas: a matemática Katherine Johnson (Taraji P. Henson), a programadora Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e a engenheira Mary Jackson (Janelle Monáe). Àquela época, 1961, os Estados Unidos não apenas viam as consequências sexistas da geração baby boom pós Segunda Guerra Mundial (1940-45), quanto perpetravam a segregação racial de forma ostensiva e sem constrangimento. Além disso, cultivava-se um pânico coletivo em relação ao comunismo e, em especial, à Rússia que demonstrava superioridade tecnológica. Foi exatamente o medo da Rússia alcançar o espaço (e quiçá a Lua) que demandou a missão de lançar o primeiro estadunidense ao espaço, e não apenas isso: fazê-lo orbitar a Terra e retornar em segurança.




O problema era a dificuldade de precisão da velocidade de retorno (go-No-go). Os computadores eletrônicos eram rudimentares e o mercado carecia de profissionais qualificados para a programação das máquinas, neste sentido, foi crucial a expertise de Dorothy Vaughan que liderou as operações nesta área junto às demais profissionais treinadas por ela. Apesar disso, os computadores eletrônicos estavam em fase experimental e não possuíam a precisão para os cálculos necessários. Sendo assim, os cálculos de Katherine Johnson se mostraram mais precisos (com mais casas decimais) que a gigantesca IBM e possibilitaram que a cientista se destacasse. Já a jornada de Mary Jackson inicia com o convite para trabalhar no túnel de vento supersônico, que conferiu a experiência necessária para tornar-se engenheira, exceto pelo fato de ser Negra num estado segregacionista. 

As três superam os problemas sem que pra isso sejam vetores do discurso meritocrático e mostram o quanto o pessoal é político, já que a luta pela sobrevivência as posiciona em locais praticamente impossíveis em tempos de segregação racial. Não tem como narrar uma história nesse período sem levar em conta as violências, mas o filme consegue equilibrar os fatos com leveza e humor que expõem o sistema, sem vilão/vítima em particular. O filme informa sobre o real problema ser o sistema e o modo como as pessoas se apropriam dele, lançando o racismo prum nível político, não moral. Em suma: Estrelas além do tempo  é uma jornada rumo ao heroísmo exatamente como eu desejava ver.

Expectativas? O melhor do melhor!


Verdade seja dita: desde Django: Livre, Histórias CruzadasWhat Happened, Miss Nina Simone? ando cansada de filmes protagonizados por negros que reforçam paradigmas raciais e de gênero. A maioria dos filmes cai no erro de reforçar a branquitude ao contar histórias de pessoas negras libertadas (que não se libertam) e, assim, criar frustrantes ilusões de progresso. Isso fez com que eu fosse assistir a Estrelas além do tempo  com receio de cair numa armadilha e me deparar com uma profunda e interminável representação de sofrimento. Não é o caso. As três personagens são exploradas de forma complexa, tanto em âmbito profissional, quanto da comunidade e da família, o que nos dá um panorama rico que mostra cientistas como pessoas sociáveis e multifacetadas. Essa representação interpela sutilmente a audiência sobre as imagens mentais que temos de cientistas que protagonizam grandes feitos científicos. É provável que mais de dois terços das pessoas que se questionam quanto a cientistas mulheres, só consigam lembrar dos feitos da física Marie Curie. E os negros, onde estão os negros? A resposta é embaraçosa: "não sei". 


Esta reunião é totalmente composta por indivíduos brancos, sendo que uma é mulher (Ruth). 
No filme, essa homogeneidade se mostra tão poderosa quanto ineficaz.



Apesar desta constatação desconfortável, é evidente que ela proporciona uma reflexão profunda sobre quem é o sujeito do conhecimento, o que é o saber científico, quais os interesses políticos/econômicos que comandam a divulgação científica, como o conceito de pátria expulsa sujeitos contribuintes e muitas outras. Como Negra inserida no contexto da divulgação científica sob o viés de gênero esses questionamentos fazem parte do meu cotidiano e não me surpreende que existam cientistas negras como Katemari RosaViviane dos Santos BarbosaMarie Maynard Daly e sim a forma de terceiros narrarem  suas trajetórias. 

Um aspecto doloroso da consciência negra é o legado de violência, usurpação e extorsão que resultam numa hierarquia social que parece intransponível. Um problema recorrente nas narrativas sobre desigualdade racial é a presença de brancos salvadores, abolicionistas, princesas Isabel que se mostram mais conscientes da exploração que os próprios explorados. Ora, se por um lado a hierarquia real faz com que brancos possam (e devam) usar o privilégios para abrirem espaço para negros, por outro, é necessário enfatizar o nosso lugar de agentes - afinal, "o racismo é uma problemática branca". No trailer de Estrelas além do tempo uma das passagens parece ambígua, mas no filme é riquíssima. Ela mostra o diretor do programa espacial, Al Harrison (Kevin Costner), confrontado pela realidade da segregação como vivida por negros: Katherine Johson caminha 1,6 KM para ir ao banheiro "para negras" no precário edifício da zona oeste. Investido de poder, Harrison arranca a placa e institui o uso comum de qualquer dependência. Embora o trailer não evidencie o fato, no filme, o personagem é descrito não como um salvador, mas como "uma pessoa decente" capaz de reconhecer as potencialidades das pessoas.

 Al Harrison (Kevin Costner) destrói a placa que identifica o banheiro precário para "pessoas de cor".

É claro que a experiência de Katherine Johson é muito dolorosa, como a maioria das situações vivenciadas por Dorothy Vaughan e Mary Jackson, mas a forma como elas são apresentadas, não são gatilhos e nunca mostram o horror pelo horror. O racismo é denunciado desde a institucionalização (as universidades, bebedouros e assentos de ônibus eram separadas por raça sendo que os negros ficavam o mais precário) até as falas alegadamente racistas e, acima de tudo, a micro-violência (olhares de reprovação, gaslighting, subestimação, desprezo). A maioria das performances de racismo são construídas numa linha de humor negro (isto é, direcionada aos negros), que nos faz rir de boçalidades e inseguranças que racistas performam dada a sua ignorância. Há respostas muito poderosas junto às situações como a da implacável engenheira:

"Toda vez que a estamos chegando, eles movem a linha de chegada". Mary Jackson em Estrelas além do tempo

Ao mesmo tempo que o sistema racialista é exposto, rimos muito do cotidiano com o qual nos identificamos. Katherine Johnson, por exemplo, é desajeitada, nem sempre sabe o que dizer e pode ser classificada como Preta Nerd no Burning Hell

Um dos "gênios" de Al Harrison recepciona Katherine 'Kat" Johnson identificando-a como servente.
Além desta cena identificar a espontaneidade do racismo, também descreve o ponto de vista de quem é vista como pária.
Os demais a expulsam com os olhos.

A história de Katherine Johnson perpassa vários âmbitos da vida, inclusive o religioso. Seu envolvimento com o coronel James Johnson (Mahershala Ali) é explorado de forma sensível e humana, evidenciando a relação entre afeto, acordo, respeito e admiração. O mesmo acontece com Mary Jackson, cujo marido reconheceu a internalização de seu próprio sexismo e se propôs a mudar a atitude e apoiar a carreira da companheira. Uma mensagem sutil de reconciliamento entre os afetos e os saberes científicos é transmitida nesses momentos, afora o fato de que ninguém está pronta para a complexidade da vida. Somado a isso, a relação entre Katherine Johnson, sua mãe e suas filhas evidencia a diferença que aprender a amar faz em nossas vidas. O amor nos faz mais fortes, não como um clichê ultrarromântico, mas como a chave para lutar contra a desumanização a qual somos submetidas diariamente. A superação das três cientistas não é uma ode à meritocracia, mas à capacidade de se reconectar consigo mesma, de conhecer nossos talentos e protagonizar nossas vidas.


Uma das três filhas de Katherine Johnson a presenteia com a ilustração da mãe num foguete.

A jornada em primeiro plano é a de Katherine Johnson, mas isso não diminui a história das demais. Mary Jackson, por exemplo, decide se tornar engenheira e viver o impossível: ser a primeira mulher Negra a cursar uma pós-graduação na Universidade da Virgínia. O momento em que ela é desafiada pelo Sr. Z (um judeu que teve a família assassinada na Polônia) é particularmente emocionante porque mostra o real sentido de empatia. Sim, precisamos lutar mais, sermos três vezes melhores, mas não podemos desistir jamais. Navegar é preciso.

Mary Jackson (Janelle Monáe) vivendo o "impossível" junto ao judeu Sr. Z.

Dorothy Vaughan é uma personagem absolutamente adorável, e materializa o que Viola Davis disse sobre atrizes Negras: para serem premiadas precisam ter a chance de interpretar papéis importantes. Vaughan é a personagem ideal sobre a pele de Octavia Spencer, que encarna de forma perfeita uma mulher ativista, como o tempo que viveu demandava. Não do tipo que vai à passeatas, mas que pensa de forma coletiva, que ensina os filhos a manterem a cabeça erguida e as colegas a programar. Sua curiosidade é descrita de forma esplêndida, como na passagem em que seu carro quebrou na ida ao trabalho com as amigas. Sem problemas ela decide consertar o veículo, e antecipa sua engenhosidade no campo da programação. No filme, senti falta particularmente de uma solução visual para a sua importância na corrida espacial. Uma solução possível seria a inserção duma sequência  que focasse nela programando junto à equipe de mulheres Negras que treinou e, em off, a explicação narrada por Al Harrison (e que focou em sua figura).


dorothy vaughan


A interpretação encantadora de Janelle Monáe rasga todas as mentiras e convenções conferindo grande charme à Mary Jackson. Ela é uma mulher espontânea, animada e vaidosa descrita não como pedante, mas como uma pessoa que tem consciência de sua potencialidade e que reconhece seu valor. A força de Mary Jackson está em sua impactante presença de derrubar qualquer recomendação de falsa-modéstia. 


mary jackson (janele monae)


Além da atuação individual, a interação em cena das atrizes Taraji P. Henson, Octavia Spencer e Janelle Monáe é absolutamente deliciosa, flui de forma encantadora e representa a força absoluta de não ser a exceção à raça. Juntas, as três personagens são mais fortes porque se apoiam e crescem, sempre juntas mostrando que vencer sozinha não é vitória real.

O Racismo como tema


O longa é rico de significados principalmente porque constrói uma narrativa sobre pessoas negras direcionada a esse público. O sofrimento diário não é diminuído nem capitalizado por meio de cenas tortuosas. As cientistas vivem num mundo real estruturado pelo racismo e sexismo, que perpassam a narrativa como discussões, como um problema branco direcionado aos negros. Assim como diferentes personagens brancos performam branquitude mais ou menos conscientes (negando, reconhecendo,  envergonhados, culpados), em vários momentos, também usam o que podem para possibilitar a reparação.


Oi?


A perversa personagem Mary Jane Vivian Mitchell, interpretada por Kirsten Dunst, é uma mulher ambígua que expressa as armadilhas do feminismo de primeira onda. Ela se preocupa em parecer competente (porque não tem os próprios direitos assegurados),  e de exercer poder sobre a gentil, competente e adorável Dorothy Vaughan. Seu senso de superioridade é tributário única e exclusivamente do privilégio racial, já que não apresenta grandes perícias, e esse é o grande comentário retórico sobre a entrada das mulheres brancas no mercado de trabalho na década de 1960. A sessão feminina representada por Mitchell não é um ambiente solidário para Negras, mesmo se comparado com a cúpula dos gênios liderada por Al Harrison. Por outro lado, no intuito de não vilanizar a Mary Jane Ms. Mitchell nem investir na ideia de que todas as mulheres rivalizam, há a secretária  Ruth que, apesar de pouco tempo em tela, tem um comportamento de não-aceitação mais discreto (que se revela e transmuta para uma quase aceitação). 


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O astronauta John Glenn (esquerda) foi o rosto da missão, enquanto Katherine Johnson  (direta) foi o cérebro.

Como no mundo real, o filme apresenta uma multiplicidade de duplos. Assim como o "nerd ideal" Paul Stafford (Jim Parsons) é superestimado, ele  expressa o que há de pior num mundo capitalista, racista, sexista e capacitista simplesmente por ser quem/como ele é, ao passo que o astronauta John Glenn (Glen Powell) se posiciona de forma definitivamente antirracista. É um dos personagens mais simplificados do filme, mas sua presença é marcante por representar ideais radicalmente democráticos àquela época bem como por investir sua confiança no cálculo de Katherine Johnson. O filme não cai no erro de alçá-lo a um pedestal também, ele representa o "racismo diário" (everyday racism) como vivenciado hoje, o da tolerância. Eis uma das discussões mais sutis e que mais me desafiaram em Estrelas Além do Tempo.

Escrevendo uma história de vitórias


Estrelas Além do Tempo é um filme bastante emocionante, construído num crescendo de situações dramáticas e bem-humoradas em que conhecemos as três cientistas, sua missão e os principais opositores. O fato de contar a história de três heroínas Negras de forma justa, estética e política é avassaladora. Diferente do título definido para o Brasil, o título em inglês ("Figuras ocultadas") mostra o esforço de expor essa verdade crucial que nos é negada diariamente pela cultura de massa.  Além de nós, mulheres Negras, podermos nos identificar na tela-grande, a  importância desse filme é a de quebrar mentiras enraizadas tão profundamente quando o racismo e o sexismo. Outra mentira foi derrubada pelo público: a de que protagonistas negras não geram interesse no público. Em cerca de quatro semanas de cartaz, o filme já lucrou mais de 20 milhões nos Estados Unidos e, dada a qualidade e importância, já lança álcool nas labaredas burning hell do Oscar 2017. 

"Nunca pare de lutar" é a lição que perpassa o filme e isso fala direto às nossas Negras vidas, driblando toda e qualquer mentira branca - não a cor - mas a definição política. Sem dúvidas, verdades como essas nos fazem mais fortes e, definitivamente Kat, Mary e Dorothy são as heroínas que lutam pela minha causa e que refletem quem eu sou.




Diretor: Ted Melfi

Roteiro: Alison Schroeder, Ted Melfi, Lori Lakin Hutcherson
Produtores: Donna Gigliotti, Peter Chernin, Jenno Topping, Pharrell Williams, Ted Melfi
Elenco: Taraji P. Henson, Octavia Spencer, Janelle Monáe, Kirsten Dunst, Jim Parsons, Mahershala Ali, Aldis Hodge, Glen Powell e Kevin Costner.






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