Pantera Negra, Separatismo e um olhar para utópica "Democracia da Abolição"

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2018 promete coisa boa!

por Anne Caroline Quiangala

DIVERSIDADE, MERCADO DAS ADAPTAÇÕES E QUESTÕES DE TERRITÓRIO


O filme da Mulher-Maravilha tem levantado questionamento da comunidade nerd sobre ícones "diversos" no que diz respeito a live-action (isto é, filmes ou séries com atores reais). Enquanto uma série de fãs argumenta que personagens como Xena, Mulher-Gato e Elektra deveriam ser lembradas como heroínas (como se a Diana importasse menos), muitas outras afirmam que foi a primeira vez que se sentiram tão fortes assistindo a um filme. Eu me senti assim, quando assisti à trilogia Blade, na década de 1990, e esta ancoragem afetiva permanece intacta: #representatividadeimporta

Muita gente não sabe que Blade é uma adaptação de quadrinhos, sequer desconfia que se tratou dum investimento que possibilitou o atual momento, em que temos filmes de super-heróis agendados por alguns anos à frente. Apesar de o Universo Cinematográfico da Marvel (MCU) ser proposto como independente dos quadrinhos, sabemos que isso não passa duma "licença poética" para errar, manter valores conservadores típicos de Hollywood (como a formação dos Vingadores, versões cristalizadas de personagens como Peter Parker, Hulk, Demolidor e Capitão América) e ignorar que eventos roteirizados por Brian Michael Bendis são storyboards prontos para serem filmados. 

Aliás, antes que eu me esqueça: inserir o Nick Fury negro é uma negociação razoável para os produtores, porque ele não tem centralidade nas tramas. Tendo em vista, também, que a sua versão quadrinística e animada trouxe ao cinema popularidade junto à falsa sensação de representatividade (afinal, qual a vida que Fury tem além da S.H.I.L.D? Ele é um indivíduo ou uma função? Quais são as reais causas pelas quais ele luta?), mais uma vez um homem negro representa toda a população negra e equilibra (alguns) ânimos. 

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Samuel L. Jackson como Nick Fury em Vingadores

Por fim, o sucesso incontestável de Luke Cage avançou no sentido de adaptar a Era de Prata dos quadrinhos ao contemporâneo, de pluralizar as vozes e, principalmente, acertar as contas com a Misty Knight, personagem tão subutilizada nos quadrinhos. Ainda assim, a série não perdeu nada de realismo, verossimilhança e seja lá o que você espera desse tipo de produto. A questão que desejo enfatizar é que a história considerada séria é fincada em valores androcêntricos e lança mulheres e demais minorias políticas a um segundo plano. Essa visão política, quando transposta para a ciência ou para dispositivos midiáticos (quadrinhos e filmes por exemplo), instaura "verdades" aparentemente inofensivas e terrivelmente manipuladoras.

Exemplo disso é a bela e comovente história do jovem Prestes nos livros didáticos. Sua trajetória é parte da história da esquerda brasileira, que lança sombras sobre o ethos no intuito de criar a "grande narrativa". Desta perspectiva, parece que tampouco importa que Benario tenha sofrido tantos dissabores, violências e que o ranço sexista faça toda a diferença nos terrenos das militâncias, por mais companheiros que sejam os companheiros.

O mesmo vale para os Panteras Negras. O que você sabe além do fato de evocarem uma ética imediata de reparação material? O que você sabe sobre a situação de experiências interseccionais e sobre condutas masculinistas de pilhagens e espólios? De certo que os tempos eram outros, e que - como diz Angela Davis - fizeram o que era possível, dentro do que compreendiam e dentro das respostas que o contexto possibilitava. Nesta linha de pensamento, inclusive, Magneto parece muito mais certo que Charles Xavier, concorda? Olho por olho, dente por dente, "somos melhores", "queremos nosso próprio país", revidar, vingar, voltar à essência, recuperar a honra... No fim das contas, uma inversão teórica, social e política. 

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O evento Dinastia M é um dos mais emblemáticos no sentido de discutir amplamente o conceito de diferença, minoria social, racismo e "cuidado com o que deseja".
No que se refere ao Magneto, que é um sobrevivente de campo de concentração, sua retirada para a ilha de Genosha é bastante simbólica por representar a solução encontrada pela Alemanha pós Segunda Guerra Mundial: a criação e reconhecimento do Estado de Israel e vultuosas indenizações. Reparação histórica é uma atitude justa desde que não seja usada para desencadear desigualdade, sofrimento e consequências indiretas como acontece em Marvel Especial: Vingadores Dinastia M.

Neste quadrinho, acompanhamos Luke Cage, Misty Knight, Punho de Ferro e outros, que lutam contra o governo autoritário de Magneto, que persegue, escraviza e se torna para os sapiens o que eles sempre foram para a raça mutante ou homo-superior. Para muitos, isso pode parecer o ideal de justiça, mas felizmente, ao fim do evento, o personagem percebe que aquela não é a solução, porque não muda o passado, nem possibilita um futuro justo.

Quantidade de grupos separatistas negros entre 2000-2016 via SPLC


É evidente que, quando lemos Guerra Civil: Dinastia M, podemos reconhecer e sentir total empatia pela agonia que Magneto sente por ser duplamente identificado como minoria. Sentimos isso, sobretudo porque ainda vivemos sob o julgo de injustiças sistêmicas, com bases na escravidão, nos traumas históricos como memórias plantadas e, nos EUA as Leis de Jim Crow. Apesar disso ser frustrante, precisamos compreender que o desapontamento não pode nortear a nossas práticas políticas per se, fato que tem sido bastante comum em coletivos de jovens negros ávidos por performar Malcom X e na ascensão de supostas práticas africanistas e/ou afrocentradas que ignoram a complexidade e a nossa distância geográfica da África (que não é um imenso e homogêneo país, mas um continente composto por 54 países diferentes). 

Este exemplo não tem em vista pontuar o passado, mas evidenciar o compromisso presente. Não podemos olhar para a história de forma isolada, com nostalgia de manter vivo o método e responder ao contexto atual de forma similar - afinal, professor X, ou Martin Luther king Jr, ninguém quer ser. Talvez o que nos resta, em grande medida, é a responsabilidade de ter senso crítico e de buscar novos métodos. Neste sentido, vejo a hype do filme Pantera Negra por duas vias:

1. Necessidade de discutir os problemas de teorias do separatismo, nacionalismo negro, afrocentrismo e pan-africanismo num viés contemporâneo e crítico.
2. A verdadeira democracia da abolição só é justiça social se prevê igualdade na diferença, paz e bem-estar coletivo. O mesmo vale para os feminismos, afinal "feminismo que não luta pelo fim do racismo é mais uma modalidade de supremacia branca"

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Chadwick Boseman, o Pantera Negra


PANTERA NEGRA COMO DISPOSITIVO POLÍTICO 


O  desafio de Pantera Negra é o de ser um filme de preto pra branco ver e ainda agradar aos negros. As imagens grandiosas do trailer oferecem à população negra (aqui eu me refiro ao corpo social) uma imagem unificada, masculina e superlativa tão traiçoeira quanto nossa ansiedade por representação permite, ou mesmo, exige. Assistindo ao trailer, muita gente deve ter sentido o insight de que Wakanda é um oásis livre do racismo, um país com instituições negras, prosperidade e tecnologia, tal como antes do sequestro dos ancestrais para serem escravizados. Muitos vislumbram Wakanda como possibilidade real e necessária de esquecimento do real.

Com isso, não estou dizendo que a colonização é o que há de mais importante sobre ser negra - óbvio que não - mas como brasileira, cujo pai é angolano, posso afirmar que a grande diferença identitária entre meus pais é o entendimento de racismo. Se para o meu pai, situação racista se trata duma "situação muito chata", próxima da rudeza, para minha mãe, racismo é reviver um trauma historicamente ancorado. Sem dúvidas, esquecer ou não querer refletir a respeito são formas legítimas de lidar com o trauma, o que desejo enfatizar é que a experiência diaspórica exige uma consciência negra distinta. Esse abismo evidencia que negro não é cor, mas posicionamento político.

A superioridade moral espantosa de T'Challa em face dum Luke Cage ou mesmo dum Sam Wilson evidenciam a diferença, não estritamente material e intelectual, mas o privilégio do príncipe de não ter se constituído pela relação de alteridade preto/branco, inferiorização e escravidão. Se considerarmos que heróis são aqueles que lutam pelas nossas causas e, além disso, aqueles ícones que revelam o que há de melhor em nós, receio que o Pantera Negra tenha objetivos, interesses e poder que não incluem experiências para além das fronteiras de sua nação. Nos quadrinhos é sempre evidente que sua participação nos Iluminatti e mesmo nos Vingadores (veja a saga Guerras Secretas 2 - 2015) tem como objetivo único manter Wakanda intacta, enquanto salvar o mundo é consequência.

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Wakanda

É neste sentido que vejo algumas declarações do atual roteirista dos quadrinhos do Pantera Negra, Ta-Nehisi Coates, como profundamente problemáticas. Segundo o roteirista, em seu livro Between the World and Me, "devemos nos inspirar mais nos judeus" sugerindo que a narrativa do Êxodo une as comunidades negra e judaica no objetivo de alcançar a dignidade. Para ele, que entende o modelo Israel como exitoso, a reparação africana deve se constituir dum investimento semelhante ao da Alemanha, para construir Israel. Um renomado jornalista como Coates, sem dúvidas, tem uma responsabilidade considerável, e propor um discurso imperialista como esse, que não oferece soluções para as injustiças sistêmicas; precisamos duma nova lógica. Se os planos não preveem que reparação demanda mudança de visão de mundo, extirpação da centralidade no ódio, no falo e no logos (falogocentrismo) como poderá ser justa para todos? Sem dúvidas, o Pantera Negra, o monarca do hiperbólico reino de Wakanda - nação africana “altamente avançada - é um substrato apropriado para transmitir valores hierárquicos e separatistas.

Enquanto o spin-off Black Panther: World of Wakanda traz mensagens de empoderamento feminino e LGBT pode ser visto como um avanço considerável em termos de representação de mulheres Negras, é importante notar que elas são figuras tão distintas que não representam o melhor de nós da diáspora e isso pode dar ânimo às investidas políticas interessadas em mimetizar/performar um ethos supostamente africano, como se "desver" a violência colonial fosse possível, como se não precisássemos de conceitos novos.

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Angela Davis

DEMOCRACIA DA ABOLIÇÃO


Todas nós desejamos um lugar seguro para nossos corpos, bem como cidadania plena e, segundo Angela Davis, a Democracia da Abolição é exatamente essa utopia. Já parou para pensar sobre o quão complexo estão as discussões sobre representação de raça e gênero? Sem dúvidas, a injustiça histórica somada aos aparatos burocráticos oferece um caminho fácil, que é o de desejar uma oportunidade igual de perpetuação de desigualdades. Ideologias supremacistas, são arcabouços do Ocidente, opostos à igualdade e solidariedade e traiçoeiros. 

Desejar privilégios, superioridade e domínio sobre populações é o oposto de se livrar da escravidão. Sem resolvermos o trauma colonial e mesmo o controle discursivo que insiste em informar que é impossível ter uma vida sã e honrada, a liberdade real jamais será alcançada. Por melhores que sejam os objetivos nacionalistas, de empreender uma solidariedade territorial, ignorar a complexidade do aqui/agora como a necessidade de Lei Maria da Penha, Feminismo Interseccional é honestidade intelectural. Atualmente, não é suficiente discutir o racismo isolado de outras opressões, porque a lógica de diferenciação e hierarquia modula as relações em diferentes direções (sexismo, lgbtfobia, gordofobia), ainda que não sejam sistemáticos como racialidade e racismo

Podemos reconhecer em Wakanda uma raiz identitária positiva, inclusive tendo em vista a animação Supremos 2: Descubra o poder do Pantera e quadrinhos Quem é o Pantera Negra? (que tem uma animação homônima) cujo roteiro-base é do Reginald Hudlin. Sem dúvidas, me incomoda que o conceito de Hudlin seja baseado na masculinidade de Jay Z e que a representação de mulheres seja bastante difusa - inclusive a irmã Shuri. Associar aspectos positivos da negritude estritamente à África é uma estratégia supremacista de convencer a desistirmos voluntariamente da Democracia da Abolição tão danosa quanto a ideia de que poligamia masculina é natural (fato que a autora moçambicana Paulina Chiziane discute em seu romance Niketche - uma história de poligamia, de 2001). Sem dúvidas, o continente africano é nossa matriz étnico-racial, e não tenho como objetivo neste texto me autodeclarar correta, mas não podemos nos iludir, nem absorver o que soa autêntico de forma acrítica.

Lupita Nyong’o (Nakia) , Chadwick Boseman (T'Challa) e Letitia Wright (Shuri)

COMENTÁRIOS SOBRE O TRAILER/ O QUE ESPERAR


Pantera Negra (Black Panther) estreará no Brasil em fevereiro de 2018. Dirigido e co-roteirizado por Ryan Coogler, o filme conta com um majestoso elenco de atrizes a atores negros, dentre elas e eles: Chadwick Boseman, Michael B. Jordan, Lupita Nyong'o e Danai Gurira. A trama se passa após Capitão América: Guerra Civil. Ao retornar à Wakanda, T'Challa se depara com intrigas de facções contra o seu governo e, junto a sua guarda-pessoal Dora Milaje, ele lutará para manter a união do país (que. dentre outras coisas, significa a centralização do poder político, econômico e religioso em suas mãos).

O trailer, publicado em junho de 2017, inicia com o Garra-Sônica desnudando a estratégia de disfarce do reino de Wakanda: ele não é um país africano de terceiro mundo. Em oposição a isso, imagens da natureza, da tecnologia wakandana e do próprio T'Challa constroem a dinâmica sujeito (branco) versus objeto (tudo e todos que não são brancos) e causam uma frustração semelhante ao início de Quem é o Pantera Negra? Apesar das sequências revelarem pouco da trama principal, a apresentação dos antagonistas brancos tem uma centralidade em detrimento das personagens que mais nos interessam; os conceitos estéticos, por sua vez (assinados pela figurinista Rutch Carter), técnicas de luta, fauna e flora nos introduzem maravilhosamente aquele mundo.

Inclusive a busca de Carter por autenticidade, retoma a discussões sobre identidade negra da década de 1960. O que o homem negro quer?" questionou Frantz Fanon em Caras Negras, Máscaras Brancas ao constatar que "o homem negro não é. Tampouco o branco" - porque se constroem pela alteridade. O que significa ser negro e o que pode ser criado para representar o orgulho é uma discussão que podemos esperar do filme.  

Garra-Sônica, nos faz pensar que há sempre o perigo de transformar o filme de origem do herói em origem do vilão, mas se o vibranium apareceu só de passagem, quer dizer que muita coisa ainda será revelada.

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Dora Milaje

Em relação às Dora Milaje: as cenas de luta e, mesmo o tempo em tela mostrando a imponência das guerreiras, evidencia que a contraparte da elevação de T'Challa é tão sofisticada e precisa quanto. Se em Guerra Civil não pudemos apreender tanto as personagens, podemos esperar arcos fantásticos neste filme - ao menos, o trailer promete!

Se, por um lado, devemos temer o modo como se expressará o essencialismo estratégico que envolve a ideia de negritude, por outro, se mantivermos a urgência inquieta por justiça e reparação longe de uma visão de mundo bélica/colonizadora e mesmo duma idealização de África, sem dúvidas o filme nos possibilitará uma diversão e uma discussão formidável sobre negritude, identidade e Democracia da Abolição.

Em relação à critica ao esgotamento dos super-heróis em tela grande: acredito que o núcleo da geração de fãs que acompanham o crescimento do universo Marvel, nos filmes e no streaming, não desistirá tão cedo de ir ao cinema e também duvido que os fãs ocasionais se afastem agora por mero desgaste da fórmula. Essa especulação parece bastante contaminada pela fobia de representação de minorias sociais em espaços regidos por muito dinheiro, como o cinema. O que definirá os rumos dessa potencial onda de sucesso - e o que definirá Pantera Negro como sucesso - em termos de representatividade e bilheteria é o cuidado dos produtores com os conceitos e o investimento em consonância com o público real, isto é, composto por muito mais que um padrão racial, estético, sexual e morfólogico.


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