Punho de ferro ser branco é o menor dos problemas...



Não me entenda mal: não estou dizendo que o Punho de Ferro ser branco é ok, muito menos reduzindo o questionamento de outros pontos de vista ou militâncias. Muito pelo contrário. Escrevo esse texto em resposta a todos os boys que comentaram twitts e posts do Instagram sem o real desejo de dialogar e sim "Omiexplicar" e exigir minha carteirinha. E pra todo mundo que acredita que a crítica à série é direcionada apenas ao fato do protagonista ser branco. E outra: branco não é cor, não é um indivíduo, parente ou affaire. Branco é uma identidade política.

Madame Gao tem mais carisma que o Danny Rand :D #IronFist
— Preta Burning Hell (@pretaenerd) 22 de março de 2017

VAMOS LÁ

Se você já assistiu Broder, do Jeferson De, você sabe muito bem o poder que uma direção tem de mudar os rumos de uma péssima premissa e, inclusive mostrar pra qualquer um, o quanto a obra é a parte visível do racismo que estrutura a sociedade. Sendo assim, acredito que o pior erro de Punho de ferro (além da falta de coragem de trazer um ator asiático) foi não terem contratado uma/um showrunner asiática/o para direcionar a série, tal como foi feito em Luke Cage.

E sim, eu conheço o personagem. Talvez o que quem pergunta isso não tenha percebido em tudo que leu é que o John Constantine é loiro- e tudo bem ele ser o Keanu Reeves. Que a Jéssica Jones não é magra, jovem e de cabelo tingido de preto, diferente da Krysten Ritter e, até aí, tudo bem. Quando é anunciado que a obra é uma adaptação, está subentendido que mudanças podem ser feitas, afinal é a tradução para outra linguagem, além das problemáticas ligadas ao mercado e à sociedade.

Uma das formas de conceituar o Cinema Negro é tendo em vista que a produção, o protagonismo e o tema devam ser negros. Desse modo, incomoda a muita gente que o filme Bróder seja protagonizado por Caio Blat. Isso incomoda também a mim, pois ansiamos assistir as nossas histórias e parece que a indústria quer nos convencer de que é impossível e que ninguém se importa.

Todas nós sabemos que o capitalismo é uma realidade, tanto quanto o racismo, e que a Indústria cinematográfica move muito dinheiro. A pergunta é: o que fazer quanto a isso?

No caso do Jeferson De, ele fechou o contrato com a Globo Filmes e garantiu os recursos necessários para contar a sua história. A exigência quanto ao protagonista ser Caio Blat foi atendida de uma forma curiosa: o personagem é um dispositivo discursivo que evidencia que o racismo extrapola o problema de classe, e que ser branco e pobre mantém o indivíduo com uma dose de privilégios decisiva.

Isso significa que não é problemática a falta de oportunidades para contar histórias negras? De forma alguma. Mas, nessa realidade, a narrativa de Bróder é um protesto. Não a única forma, não necessariamente a mais eficaz. É apenas uma possibilidade de driblar as adversidades. Também não significa que "Basta mostrar que somos melhores" porque a questão aqui não é essa, não é maniqueísmo, moralidade e sim ética. Racismo é um problema ético.



Claire: a pessoa mais espirituosa do universo cinemático da Marvel! <3😍 #IronFist pic.twitter.com/TFWdQzeyBm
— Preta Burning Hell (@pretaenerd) 22 de março de 2017

E O WHITEWASHING? 

Whitewashing é a união das palavras em inglês white (branco) + wash (limpeza) e tem muitos significados, como “produto que deixa mais branco” ou “absolver da culpa”. E, mais recentemente, foi colocado um novo significado na palavra: “fazer limpeza étnica em um personagem fictício ou histórico, transformando-o em uma pessoa branca”.   
(VAL in Vamos Falar De Um Assunto Sério: Whitewashing [Parte 1])

O conceito de "Pessoa de cor" (people of color/POC) faz todo o sentido para a cultura estadunidense, tanto porque a racialidade é bem compartimentada, quanto porque -dada as proporções - pessoas não-brancas são jogadas num grupo só de "coloridos" e culturalmente"diversos". Como se branco fosse neutralidade que se tinge com as cores. É um racismo bem diferente do que encontramos no Brasil.
Aqui, esse termo "de cor" não faz sentido, já que a divisão é ligada à pigmentação da pele bem dicotômica (às custas da invisibilidade de outros): ou é preto, ou é branco. Claro que há uma infinidade de sutilezas (O colorismo), mas quero destacar que, no Brasil, mesmo que saibam quem é preto e quem é branco, as pessoas com tez clara são interpretadas de formas racializadas, que as afastam de serem pretas. E isso é um problema bem distinto.

Essa distinção pode ser entendida a partir de dois exemplos: a série brasileira 3℅ e a estadunidense Punho de Ferro. Enquanto na primeira, a grande oposição é entre branco e preto, na segunda o pilar de desigualdade é entre brancos e não-brancos (POC). A base de Punho de Ferro é a supremacia dos brancos, como se fossem mais capazes de dominar toda a arte e cultura mesmo que de origem não-branca.

Nota: usamos branco porque caucasiano é um termo que se refere a ideias biologizantes do século XIX. Estamos aqui nos referindo à ficção social enraizada, de que fenótipo define diferenças, ficção esta que molda a dinâmica social. Ficção que é uma prática real chamada racismo.


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NOTA: A postagem acima é uma ironia. Questionamos na imagem o fato de Danny Rand não ser professor e insistir em ensinar à Colleen a lutar, bem como a forma correta de sentir e se expressar. O que dá essa certeza a ele de que pode dizer o que quer é uma expressão do privilégio branco. A sequencia na série é um combo de Omi-explicação com Racismo, e obviamente pessoas racializadas entendem isso. No entanto, é comum a pessoas acríticas e/ou que desconhecem o conceito, classificarem o comentário como "racista".

Em Punho de Ferro, temos a adaptação fiel aos quadrinhos do protagonista loiro, rico, heterossexual, jovem e magro com maestria nas artes marciais. Isso significa que não ouve embranquecimento do personagem em si, mas a apropriação da cultura chinesa com o objetivo de inferiorizar esse corpo social. Pra quem teve dificuldade em entender a relação entre apropriação cultural e racismo, a Netflix junto a Marvel ilustrou pra que todos que tem dificuldade para ouvir vozes negras entendam.

Collen Wing (Jessica Henwick)

Desde o início, quando ele quebra as regras do próprio universo empresarial dele com trajes inapropriados já fica evidente a perspectiva da serie que é a de focar o privilégio sem discussão real. Danny Rand é apenas um rapaz sem carisma, arrogante, egocêntrico e irritadiço que se chateia toda vez que é questionado. Ele grita com todas as mulheres, empurra uma senhora idosa e age como a antítese moralmente "boa" dos asiáticos malvados e "ruins de briga". 

Digo que ele ser branco, não é o problema, porque na verdade a questão (dado que os fanboys exigem fidelidade ao quadrinho) é a celebração do privilégio branco e masculino. Ele não apenas ouve rap, como inclusive ensina a Colleen Wing sobre a filosofia que embasa a luta. Ele se comporta como um imbecil e, em vez de ser questionado, passa a ser aplaudido pela Colleen. Isso serve para reforçar o estereótipo da mulher asiática como subserviente e a favor do sexismo.








Em si, as práticas de Danny Rand são ofensivas porque mostram pra audiência um caminho unívoco de que ele representa uma superioridade natural. O total desrespeito ao Dojo de Coleen, que ele se recusa a deixar, somado ao ar de superioridade ao conversar com ela, tornam a série mais do que ofensiva. Uma ode à branquitude acrítica.

#IronFist já que na HQ o cara loiro derrota tudo q é chinês, "tá tranquilo" na série os chineses aparecerem só pra apanhar né. NÃO!!!
— Preta Burning Hell (@pretaenerd) 17 de março de 2017

Os policiais não-brancos são truculentos e totalmente alienados da história recente dos EUA. Eles incorporam o discurso de que a função da polícia é exterminar o crime, não o grupo social ao qual eles e elas pertencem. E como Rand é o único que ouve rap, a lição é a de que ele se vira melhor com essa cultura que os próprios negros.

Algumas pessoas se importam em dizer que é essencialista a minha crítica ao fato de Rand ser o maioral no Kung Fu ou no rap. Isso porque elas não se deram conta de que o discurso da serie é o de que ele tem mais aptidão pra tudo que as demais pessoas. Pessoas que pertencem aos corpos sociais racializados são sempre representadas como token, como nada mais que sua cultura "em mãos erradas". Então racismo, não é questionar o fato de um preto dominar mais um aspecto cultural de origem africana ou amarelo e marrom um aspecto de origem asiática. O problema é o objetivo que direciona sutilmente as representações.

O problema é encenar tanto a ideia de superioridade que faz da dinâmica de muita gente ser deformada por perguntas estúpidas, fanfics e estereótipos sem contar com a ideia de seu corpo valer menos e, portanto, ser mais exposto à morte.

A lógica da nossa sociedade é que o individuo branco se sente no direito de dizer que sofre racismo, sendo que isso é uma óbvia inversão discursiva. O pior: muita gente negra compra esse discurso de racismo reverso. E Isso graças à cultura de massa que da espaço prum Danny Rand condescendente e mais-do-mesmo, que "só quer ajudar o mundo".



Apesar de toda a discussão que o público de origem asiática tem feito, suas vozes tem sido constantemente questionadas por indivíduos brancos, muitos insistindo na ideia de que os próprios asiáticos se sentem lisonjeados com embranquecimento em Ghost in the Shell. Esses indivíduos que insistem em silenciar se identificam com o privilégio branco, personificado por Danny Rand e perpetuam valores tóxicos. Sabendo que a série é tudo isso, a atriz que interpretou Colleen Wing (Jessica Henwick)  ao ser questionada sobre o porquê de ter aceitado o papel, disse:

“Quando eu vim para Punho de Ferro, foi realmente Colleen Wing que me convenceu. Eu achei que seria uma boa oportunidade de ver uma mulher realmente forte asiática-americana. Ela não é uma super-heroína. Ela é apenas uma pessoa comum que tem a coragem de lutar contra pessoas que tem super-poderes. O que eu acho incrível!” 
 Jessica Henwick via O Vício

Essa sensação de ambivalência expressada por Jessica Henwick, sem dúvidas, atravessa a experiência de sujeitos racializados porque representa as armadilhas as quais somos submetidas. Participar da cultura de massa, seja como autor, ator ou audiência, envolve para grupos marginalizados um trabalho emocional de lidar com violência simbólica e epistemológica versus o entretenimento, e isso significa negociar com algozes. E quando digo negociar, nada tem a ver com aceitar, síndrome de estocolmo ou mesmo resignação. Negociar é uma estratégia de sobrevivência cotidianas que nos mantém vivas, o acordo que nos possibilita estar em locais onde privilegiados ditam regras. No caso da cultura pop, ser público não significa aceitar tudo o que é produzido, pelo contrário, nosso olhar muda a realidade.

O trabalho emocional é válido porque a luta é constante pelas melhoras nos acordos e representatividade. Não quer dizer que há obrigação de permanecer em espaços tóxicos, nem de assistir ou ouvir conteúdo ofensivo, mas sim que  o estereótipo coexiste com a criticidade.

Neste sentido, ainda que não tenha origem asiática, eu me identifico bastante com a perspectiva de Jessica Henwick, e do cineasta Leonardo Hwan (do canal no Youtube Yoo Ban Boo). Há discussões sobre ser um individuo racializado, que precisam ser tema, mais do que apenas a exposição da cultura chinesa de forma exotizada.  

Já o lugar da branquitude é aquele que dá acesso a tudo. Que permite entrar num ambiente formal de tênis. Que permite andar descalço pela rua. Que permite ser considerado individual e humano. Nós não nos autodeclaramos nerds à toa. Conhecemos o personagem tanto quanto a realidade do racismo estrutural. Desse modo, é evidente que "só acreditar" em nosso potencial, "mostrar que somos melhores" e "não aceitar migalhas" são frases proferidas sem o entendimento real de como o capitalismo opera. Nem acreditar, nem se esforçar definem mudanças ideológicas reais. Afinal, racismo é exatamente quando pessoas incríveis, poderosas e, até mesmo esforçadas, como Colleen ou Claire ouvem berros de Danny Rand e a alvíssima Joy, não. Não é sobre como nós somos, mas sobre os mitos sobre a diferença que sustentam a sociedade.

Veja que Danny oprime, mas quando elas decidem criticar uma atitude dele, a primeira reação que ele tem é inverter o discurso:

"Agora estão as duas contra mim?" (RAND, Danny) #IronFistHAAHHAHAHAHAHAHAHHAHA
— Preta Burning Hell (@pretaenerd) 22 de março de 2017

Desse modo, o problema da série foi antes insistir num protagonista branco sem questionar nada disso que expusemos acima, do que o fato de optar pela continuidade lógica do loiro Danny do papel às telas.


Recomendo que assistam:

DEMOLIDOR” E A VIOLÊNCIA GRÁFICA CONTRA O MIM/NÓS


[Edição: como nos lembrou nossa leitora, o diretor de Broder não é Joel Zito, mas sim Jeferson De]
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