Resenha | Horror Noire: A representação Negra no cinema de terror




Horror Noire: A representação Negra no cinema de terror
  • Robin R. Means Coleman
  • DarkSide Books
  • Trad. Jim Anotsu
  • 464 p.
  • 2019

Por Anne Quiangala


Quando você é negra e gosta de horror, o lugar comum é perguntarem o porquê, já que "os negros morrem primeiro". Será que é sempre assim? Isso é tudo o que temos? "Onde estão os negros?". Embora hoje em dia a repercussão dos trabalhos de Jordan Peele como roteirista, diretor e diretor executivo tenham trazido à superfície esses questionamentos e complexificado as discussões sobre filme de gênero, ainda há muito trabalho a ser feito no campo do horror. E, desde já, sugiro como ponto de partida a experiência completa do livro Horror Noire: A representação Negra no cinema de terror, publicado pela Darkside Books em 2019.

Quando me refiro à experiência completa, quero dizer que, ao logo de quase quinhentas páginas teremos a história da representação negra nos filmes de horror, década a década, com exemplos e análise de rompimentos e continuidades na representação. A melhor forma de ler essa obra é se dedicando a assistir aos filmes à medida que avança na leitura do livro (até porque o documentário baseado nele ainda não está disponível no Brasil) e da análise acurada de Coleman.

Também me refiro à experiência porque, na edição brasileira, temos uma introdução especial feita por Ashlee Blackwell, criadora do site Graveyard Shift Sisters, que reúne o melhor do que tem sido produzido por acadêmicas, diretoras, escritoras no campo da ficção especulativa, em especial, do horror. Em seu texto "Como chegamos aqui?", Blackwell compartilha conosco sua experiência com o horror fílmico e com ambientes de discussão em que era a única negra até o processo de se tornar coprodutora do documentário Horror Noire. Seu relato apresenta uma realidade tão comum para nós que não somos pressupostas sermos fãs de terror, que cria uma conexão incrível com a obra.

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Esse tom pessoal também aparece no prólogo "Em busca do sentimento de equilíbrio" de Steven Torriano Berry, professor, escritor e diretor. Berry destaca a importância de Horror Noire como um "estudo indispensável" à pesquisa cinematrográfica porque acrescenta uma perspectiva, até então, pouco difundida nos estudos do Horror. Ao nos preparar para os horrores da vida real que obra de Coleman rehistoriciza, e aborda de forma nova (aqui me refiro ao "klassico" O nascimento de uma nação de 1915), Berry tem êxito total: já sabemos que Horror Noire é para redefinir nosso entendimento e experiência com obras de terror. E não apenas por listar o que é problemático e pouco representativo, mas porque celebra os acertos, apresenta personagens representativos, complexos e resistentes.


Reconfigurando os limites do horror


Em Horror Noire, encontramos uma proposta de reconfiguração dos limites do que temos consumido e pensado sobre o gênero horror. Juntando rigor acadêmico à linguagem acessível, Robin R. Means Coleman apresenta uma contranarrativa que desafia as crenças do que achamos ser o horror, sobretudo porque ela pensa a categoria a partir da perspectiva, história, cultura, experiência e vernáculo negro para assim evidenciar o quanto o modo tradicional de contar a história do cinema não tem nada de neutro.

É exatamente a mudança de perspectiva que nos leva à compreensão de que o gênero da obra tem a ver com o lugar de experiência de quem a está fruindo. Na classificação convencional, boa parte dos filmes anteriores à década de 1930 e Jurassic Park não são lidos como "terror" porque a violência física simbólica e mesmo física atinge, em especial, pessoas negras de um modo específico e tributário da violência racial.

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Na mídia dominante, não é raro identificar obras que descrevem sofrimento e violência contra pessoas negras que não tem justificativa narrativa, o que revela o quanto tais mídias são comprometidas com visões culturais e representações que refletem a perspectiva de branquitude. Devido a isso, é comum que pessoas negras se sintam desconfortáveis em consumirem obras de terror.

Enquanto em boa parte do tempo a branquitude para os brancos representa um lugar estável de "neutralidade", para sujeitos racializados, esta posição política representa um pesadelo que se atualiza a cada momento. Por esse motivo, nas produções de terror negro os temores da vida real e os "ficcionais" se fundem e marcam o gênero horror como algo além de sangue, visceras e convenções.


Negros nos filmes de terror e filmes negros de terror


A categorização de Coleman em filmes de terror negro e filmes de terror com negros é bastante útil para pensarmos nas imagens que temos consumido de negritude nos filmes de gênero. Por um lado, a negritude tem sido codificada na figura de monstros, vítimas, por outro, tem sido mesmo excluída em sua totalidade. Em ambas as modalidades narrativas (do mal ou da inexistência), o comentário racial é contrário à negritude, o que não representa positivamente a perspectiva negra. Neste sentido, as experiências de assombro que vilanizam o sujeito negro ou condificam como algo indesejável evidenciam que se trata de uma obra de terror com negros, mas longe de representar a perspectiva que valorize essa identidade.

Em oposição ao terror com negros, Coleman descreve que: "O filme negro trata sobre a experiência negra e as tradições culturais negras - um meio cultural e histórico negro girando e impactando as vidas negras nos Estados Unidos" (COLEMAN, 2019, p.46). a partir do contraste entre os filmes de terror negros e filmes de terror com negros, passamos a ter a dimensão da importância de revisitarmos nosso repertório de filmes, examinar como a diferença é retratada e quais os comentários sociais estão sendo reforçados.

Tananarive Due é uma escritora, teórica e roteirista que produz obras de terror negro em que as discussões sociais e os horrores ficcionais se cruzam sem causar aquele tipo de desconforto que a perspectiva tradicional reitera tanto

A curadoria de filmes que constituem o repertório analisado em Horror Noire é profícua para difundir a ideia de que sim, existem pessoas negras consumindo, produzindo e estudando o terror. E não apenas isso: pessoas engajadas em entender o terror como um gênero potente para desmistificar as representações ofensivas, elevar a consciência e propor novos modos de catarse e discusões sobre monstruosidade, o medo, o assombro.

Horror Noire: A representação Negra no cinema de terror é uma leitura imprescindível para quem se interessa por narrativas de horror, aficionados por cinema e todas as pessoas que se interessam por estudos de representação. Para quem não é familizarizada com a linguagem e formatação acadêmica, Horror Noire também é uma excelente oportunidade de introdução porque a pesquisa é muito bem fundamentada e a escrita é fluida, com uma análise detalhada e linear. Da invisibilidade (antes dos anos 1930) à vingança (nos anos 2000) Coleman constroi uma narrativa potente que pode fazer até quem não se identifica tanto com o gênero encontar motivos para, se não gostar, no mínimo, aprender e consumir com uma outra perspectiva sobre ser negra e consumir terror.



Este texto é um publieditorial que faz parte da programação especial Mês do Horror (outubro de 2020)  com apoio da Darkside Books


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