Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância

THIONG’O, Nguni wa



Por Anne Quiangala



Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância
  • Nguni wa Thiong'o
  • Biblioteca Azul
  • 272p.
  • 2015

A obra Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância é o primeiro volume das memórias do escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong'o, publicada no Brasil em 2015 pela editora Biblioteca Azul, com a tradução de Fábio Bonillo e Elton Mesquita. 

A história é precedida por excertos que tratam do sonho como um elemento tão político, quanto substância literária. Para tanto, referencia obras literárias do cânone tradicional como Os Miseráveis (Victor Hugo) e Motto (Bertolt Brecht), na mesma medida que Looking At Your Hands do poeta e ativista guianense Martin Carter. Essas menções ocupam uma página, que é sucedida pela fotografia de uma figura central na vida de Thiong’o: Wanjikũ wa Ngũgĩ, sua mãe. Tudo isso é uma contextualização muito poderosa para a história que ele contará sobre sua vida, formação da identidade como escritor, ativista e sujeito, suturada à história nacional. 

Thiong’o nasceu em uma região rural do Quênia, em 1938, em meio à ocupação britânica e suas memórias de infância revelam o modo como o contexto nacional influencia, choca e distorce as crenças, hábitos e etnicidades, bem como o seu contexto familiar e individual. O pai de Thiong’o era polígamo, de modo que sua família era constituída por quatro “mães” e 24 irmãos, distribuídas em quatro moradias independentes, que ladeavam a casa principal, do patriarca. Sua mãe, Wanjikũ wa Ngũgĩ, é descrita pelo autor como uma mulher exigente, e sua “única benfeitora”, mas juntamente às demais mães, constituía uma presença nutridora, trabalhadora e dedicada. 


Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância
Sonhos em tempo de guerra é mais do que uma autobiografia


Aliás, a figura de “mãe” é bastante importante quando o que está em jogo é a formação de Thiong’o sujeito e escritor, mas também, o cidadão de uma nação em guerra. A ideia moderna de formação de um Estado-Nação, que seja a pátria-mãe e tenha a conformidade de idioma, literatura, história nacional fundamentada em um “orgulho” homogêneo não tem lastro em um território repleto de etnicidades distintas e problemas econômicos infiltrados na cultura hegemônica. 

Aliás, o processo de colonização inglês e alemão recriou o território através de violência, guerra e políticas de empobrecimento, de modo a retalhar o universo concreto e simbólico e fazer caber na ideia de nação e nos interesses financeiros da metrópole. Essa contradição revela o quanto os processos de intervenção das “grandes potências europeias”, no continente africano, criaram um essencialismo que reifica os sujeitos e limita seus destinos e papeis sociais, como observado na infância de Thiong’o e nas transformações no mundo ao redor. 


AS MAZELAS SOCIAIS E O FAZER LITERÁRIO


No primeiro momento, a narração evidencia que a fome é um destino comum, e confere uma perspectiva específica sobre o real: quem é animalizado e puxa as carroças, interpreta o real de forma distinta de quem é humanizado e transportado naquela carroça. Essa posicionalidade é um fato auto-evidente bastante prolífico para que possamos entender questões contemporâneas sobre o fazer literário, o questionamento de valores centrais para a literatura e a figura do “autor” que fala de si mesmo, encarnando a verdade individual em interface com a coletividade (CÁMARA et al, 2018). 

À medida que remonta sua infância manipulando elementos tradicionais do romance, como a figura do narrador, os personagens, o espaço e o tempo em um enredo, Thiong’o fabrica os fatos de sua própria vida. Tais fatos, como a memória em si, são repletos de lacunas, imprecisões e desconhecimento das histórias não contadas pelo pai e pelas mães, e sofrem intervenções pelas reflexões do “eu” externo à história, que é quem conta e é contado simultaneamente. Nos momentos em que o escritor se mostra na voz narrativa descolado do personagem, temos fraturas que revelam que não estamos diante de um romance pura e simplesmente, mas de uma espécie de substrato literário que é a forma literária reconhecível a qual sustenta reflexões do fazer em si. 

Proponho a ideia de substrato porque na obra, o gênero puro inexiste, mas a base reconhecível desemboca em uma evidente proposta sobre ficção e realidade, escrita literária, a figura do escritor. Quando, em meio à lembrança sobre o prazer de ouvir histórias, emerge a questão de que fatos heróicos serem narrados por quem não foi testemunha ocular a noção estável de ficção ganha centralidade: “Eu ouvira histórias similares sobre os guerrilheiros de Mau Mau, em particular de Dedan Kĩmathi; mas no caso, até aquele momento, a mágica ocorrera muito longe, em Nyandarwa e nas montanhas do Monte Quênia, e os relatos nunca foram contados por alguém que fora testemunha ocular” (THIONG’O, 2015, p. 15). 

Daquela passagem saltam questionamentos: quem pode narrar precisa ter uma noção precisa dos fatos? O que garante que o real, filtrado pela linguagem e perspectiva, não é modificado?Também há fraturas que questionam no interior da narrativa (metalinguagem) a fronteira entre real e ficção: Thiong’o lembra vagamente do processo de mudança das relações de trabalho, mas esta é verificável em dados econômicos, demográficos e nas fontes históricas. Acaso, partir de um traço da realidade invalida o relato como materialização do real? 

Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância
Thiong'o


Todos esses questionamentos, bem como a forma literária adotada como substrato para elaboração das memórias de Thiong’o incorporam alguns dos impasses da teoria literária contemporânea (CÁMARA et al, 2018). O fazer literário em Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância desnuda a necessidade de um novo procedimento crítico, uma desestabilização das formas literárias per se e a indistinção entre o literário e o real, uma vez que o sujeito literário (Thiong’o personagem) é modificado pela escrita do autor Thiong’o, que reúne elementos da vida ordinária, os fatos como lembrados, os fatos lapidados pela linguagem literária, os fatos encaixados numa proposta de mais do que inflar o livro com real (representação), propor a fabricar um modo de realidade. 

Ao rememorar a conversa com Kenneth, seu colega de escola que gostava de uma linha nítida entre fato e ficção e detestava quando misturados, Thiong’o destaca o contraste como ponto fundamental para a sua percepção, ainda naquela época, de que o escapismo, a distração reconfortante, eram sua pedra fundamental. Ao mesmo tempo, demonstra na própria espetacularização deste fato, a matéria que constitui a sua auto-ficção (e não sua autobiografia). 

A investigação de si pela ficcionalização da sua experiência pessoal, permeada de reflexões e amor pelo saber e pelas histórias, revelam um Thiong’o que acreditava que a escrita literária demandava qualificação, formação acadêmica e autorização. Embora o Thiong’o escritor questione a crença do seu “eu” personagem numa suposta punição por escrever sem autorização, e, de fato, essa lei não seja “real”, a mera suposição desvela um contexto hostil, antidemocrático em os “sonhos são irrealizáveis” e a perseguição política é filtrada pelo olhar adolescente como evidência de que não se pode escrever. Desta maneira, contexto nacional e desejo de apresentar uma história própria, processo de tornar-se escritor, vão mostrando mais questionamentos que fundamentam a teoria literária: é possível escrever sobre lugares comuns e manter a literariedade? 

A HORA E A VEZ DE SONHAR 


Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância é uma obra em que a experiência pessoal que historiciza o processo de colonização e a necessidade de atitudes críticas no que se refere a todas áreas do conhecimento, saberes e práticas cotidianas, bem como do fazer artístico. A história de Thiong’o segue seu fluxo marcada pelo desejo de aprender e as dificuldades promovidas pelos efeitos do colonialismo como o empobrecimento da população local e a precarização das relações, e tudo isso, dá forma ao seu fazer artístico materializado num texto resistente à categorizações. Essa resistência, presente no desnudamento de premissas tradicionais, constitui o autor e sua voz narrativa, ao mesmo tempo que questiona as grandes narrativas e performances do escritor como personalidade belicosa, crítica por desejo de se destacar, e vaidosa. Ao contrário, é visível um esforço de Thiong’o de, através do individual, mostrar a importância e subjetividade do corpo social que ele representa. 

Essa narrativa envolvente é relevante para conhecermos a história do Quênia com um olhar marcadamente subjetivo, individual, comprometido, oposto ao modo totalizante como é retratado o continente africano na mídia tradicional. Ele tem uma forma de narrar que podemos identificar em filmes como Rainha de Katwe (2016) e O menino que descobriu o vento (2019), que mostram vitórias pessoais como uma denúncia do sistema, em vez de culto à personalidade ou do mérito. Assim, Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância é uma leitura relevante para quem aprecia conhecer o discurso produzido fora dos grandes eixos e histórias que foram silenciadas por tanto tempo. Do ponto de vista de Thiong’o, a ideia de sonhar apesar de tudo, do sistema, da guerra e da fome, tem uma conotação que o convite a construir um novo mundo, porque é o sonhar a substância essencial para mudar o mundo.

REFERÊNCIAS 


CÁMARA, Mario; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLLF, Jorge (Org.). “Pós-autonomia”. In: Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: UFMG, 2018. 

THIONG’O, Nguni wa. Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2015.
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