Enola Holmes e o feminismo para jovens

millie bobby brown é enola holmes
Enola Holmes



Por Anne Quiangala 

Sherlock Holmes é uma figura que tem atravessado as gerações, desde a série de livros escritos por Conan Doyle até filmes, séries e - o formato que mais me agrada - releituras. Confesso que, cada vez mais fui me sentido menos confortável consumindo produtos protagonizados pelo detetive como um modelo de sujeito em conformidade com o ideal de intelectualidade que naturaliza a hierarquia do conhecimento e uma "história única", como diria Chimamanda Adichie. E não somente eu: um amplo debate promovido pelo público tem refletido a ponto de o audiovisual ter passado por mudanças substanciais (para não mudar verdadeiramente) com o objetivo de convocar este público consumidor cujas demandas eram ignoradas. 

Sem dúvida, essa ampliação do público propiciou que, em 2006, a autora estadunidense Nancy Springer pudesse publicar "O caso do marquês desaparecido" inaugurando uma série de livros protagonizados pelo oposto do que - numa primeira olhadela - Sherlock representa: Enola Holmes, a caçula da família. E é a partir desse deslocamento que a Netflix trouxe Millie Bobby Brown (a Eleven de Stranger Things) para encarnar a jovem detetive em formação nas telas. 

A maioria de nós já foi pronta pra amá-la, tanto pelo que o filme prometia, quanto por Brown ser uma atriz que temos acompanhado crescer a cada temporada da série que amplificou seu trabalho. E, em grande parte, o filme corresponde às nossas expectativas de peito aberto, porque diverte, entretem e pode ser sim muito positivo na construção identitária de um público infanto-juvenil. 

Uma leitura do passado nos nossos termos? 


Enola Holmes é uma figura nova no imaginário porque nunca existiu no universo criado por Conan Doyle, mas o importante é que funciona perfeitamente, como se sempre sempre estivesse ali: a filha mais nova cresceu na mansão, criada e educada exclusivamente por sua mãe, desde a morte do pai. O que justifica a total falta de pontos de conexão entre a vida dos homens Holmes e as mulheres é que aqueles decidiram seguir suas vidas na capital sem nunca mais voltar. Assim, mãe e filha tiveram todo o tempo e espaço juntas para criarem um cotidiano utópico de liberdade, conhecimento e generosidade. 

Esse ambiente seguro ruiu quando, no aniversário de dezesseis anos, Enola percebeu que sua mãe se foi sem nenhuma explicação. A burocracia da época fez com que os irmãos voltassem à casa para resolver o "problema". De uma forma bem contemporânea, a não conformidade de Enola com as normas de gênero é encarada, do ponto de vista do irmão mais velho - Mycroft - como um estado natural a ser domado, tal como a natureza que envolve a residência "mal-cuidada". É desta maneira que a narrativa estabelece a primeira oposição: os homens Holmes performam o que é entendido como "civilização" enquanto Enola é desregrada e intocada pela etiqueta da época proporcional a sua posição social. 

O primeiro gesto de Mycroft, portador da sua guarda, como o patriarca na ausência do pai e à completa renuncia de Sherlock, é controlar Enola. É evidenciado que Mycroft é o tipo de homem que tem ânsia por controlar tudo o que é diferente dele, na esfera privada (família) e pública (ele é contrário ao direito ao sufrágio universal, bem como quaisquer conquistas sociais dos menos favorecidos). 


Mycroft (Sam Claflin) e Sherlock (Henry Cavill)
Mycroft (Sam Claflin) e Sherlock (Henry Cavill)



Sherlock, embora possa parecer um personagem mais progressista do que o solidamente conservador Mycroft, é desmascarado em uma das passagens mais icônicas do longa. Ao performar uma oposição à visão de mundo conservadora do irmão mais velho, o detetive pode parecer mais moderado, mas a portura que se pretende "objetiva", que despreza as emoções, evidencia uma inserção na cultura dominante que hierarquiza razão (como naturalmente masculina) e emoção (como fraqueza feminina). São duas formas de sexismo, isto é, da reafirmação de uma crença na superioridade de um gênero em detrimento dos demais, mas uma se propõe ser "isenta" (e sabemos que neutralidade não existe). 

Na passagem à qual me referia, uma das sufragistas, uma mulher negra escolarizada, professora de jiu-jitsu e dona de uma casa de chá chamada Edith (Susie Wokoma, que amo desde Crazyhead!) interpela Sherlock desnudando o quanto a suposta imparcialidade política dele contribui para a manuntenção do status quo que violenta a tantas pessoas. Claro que essa passagem é atravessada por elementos que buscam moldar Edith como uma "negra raivosa" ao mesmo tempo que revolucionária e isso é um ponto que demanda bastante do público (um problema, quando se trata de uma audiência em formação). 

susie wokoma como edith in enola holmes
O discurso de Edith é o ponto alto do filme


Aliás, é exatamente essa contradição que atravessa as mais de duas horas de filme. Por um lado, temos a mãe de Enola, Eudoria, questionando o mundo e até mesmo quais os tipos de narrativa estão disponíves a uma mulher, por outro, ser uma mãe que não corresponde ao que é idealizado (abnegação, silêncio, conformidade) cria um clima de frustração nos dois homens Holmes, cujo ressentimento investido de poder respinga na irmã mais nova como um tipo de futuro imposto. 

Eudoria é uma mulher revolucionária, que educou sua filha dentro dos moldes disponíveis: uma educação intelectual, física e ética, que pudesse conciliar o método dedutivo, as emoções catalisadoras para concretizar o que o norte ético mostrava como justo. Essa imagem da mulher letrada, culta e inequivocamente "feminina" tem sido bastante reiterada na ficção, inclusive escrita por mulheres (Catherine Earnshaw, Marie Curie, Isabel Bathory e outras). O detalhe de ser uma donzela guerreira é sempre acrescentada de ressalva a respeito de sua sexualidade heteronormativa, sob o risco de ser uma figura ininteligível ("louca", vilã ou desequilibrada). 

Quando Eudoria abandona sua filha, acaba pondo em xeque o que poderia ser construído como reflexão educativa sobre o feminismo, mas acaba criando uma tensão moral a cada vez que questionam o amor com formulações em volta de "ela te abandonou, logo não te ama". A imagem de Eudoria como rígida no que tange à formação focada em transformar a filha em lutadora, lado a lado com a sua obsessão por uma causa, geram um efeito controverso sobre a luta por direitos que, pela mera descontextualização, se torna negativa, afinal, em nossa cultura moral "nada pode ser pior que abandonar um filho", não é? 

Helena Bonham Carter is enola's mother
Todo dia era dia de aula de combate com Eudoria (Helena Bonham Carter)


Mas à frente, quando Enola reencontra a mãe, e fica evidenciado que o "abandono" foi um rito de passagem que colocaria a caçula "em pé de igualdade" (pra mostrar a desigualdade) na descoberta e construção do próprio caminho, já que todos até então se construíram como sujeitos por meio da emancipação, continuamos com uma explicação rasa do porquê da matriarca Holmes. Faltou desenvolver melhor o enredo a ponto de tornar a luta pela liberdade mais importante, sem tensão com a leitura conservadora que teve tempo suficiente em tela para se firmar. 

É muito gratificante ver as aventuras e a força interior de Enola se desenvolvendo no mundo exterior à casa, mas é bastante frustrante o modo como a força da mulher, mesmo em um filme tão promissor, é colocada de forma tão paradoxal. Conhecemos Eudoria sempre em terceira pessoa, acessada por meio da memória de outras pessoas (que, em geral discordavam dela) ou muito filtrada pela concepção da filha. Enquanto a personagem poderia tender mais pra representações de mulheres inspiradoras até da vida real, sua intelectualidade acaba servindo para evidenciar os perigos de desafiar a norma, e aderir ao modo "radical" - no contexto construído, leia-se como "terrorista" - e condenando por consequencia o "feminismo", termo que não é desmistificado com a potencia que prometia. 


Como ser uma garota de seu tempo? 

O relevo de história feminista para um público jovem empreendido por Enola Holmes acaba trazendo a garota para um segundo plano nesta análise porque, como protagonista bem-humorada e conectada com o público (por meio do recurso de quebra da quarta parede), ela ilustra bem o quanto é necessário para uma heroína procurar seus próprios termos de existência pra além de luta por honra, supremacia ou desposando alguém... sem, no entanto, conseguir efetivar uma crítica consistente. Ela "decide" usar espartilho, justificando que a escolha individual pode sobrepor uma opressão, e tem um reforço disso ao ser protegida pela ferramenta de reiteração e opressão do gênero. 

E por falar em gênero, embora o filme não se atenha a discutir dum ponto de vista contemporâneo que nós vestimos e performamos o gênero a todo momento, acaba deixando no ar que Enola é consciente de que isso é um fato, mas ignorando que uma pessoa cisgênero e heterossexual atravessar as bordas da normatividade tem um efeito muito diferente de quem tem uma identidade fundamentada nessa dissidência. 

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Enola é uma donzela guerreira, herdeira de Ártemis, Lara Croft (reboot) e Katniss Everdeen


Nós, que sempre quisemos ver nas telas uma garota forte, sendo o que ela quer ser, e que vibramos com a relevância de Katniss, precisamos ter em mente que identidades centradas na cisgeneridade, por mais oprimidas que sejam, podem ser usadas para reforçar padrões que queremos desconstruir. A contradição que Enola encarna é produtiva pra discutirmos esse limite, porque o tempo dela (como personagem direcionada às garotas do agora) tem fronteiras mais amplas para atravessar do que protagonistas de pouco tempo atrás, mas sem contextualização ela só reforça uma perspectiva convencional. 

É claro que a personagem é encantadora, e toda a escolha de licença histórica encaixa perfeitamente para criar um clima leve e libertário. Sim, há mérito na composição da personagem e da representação de sufragistas como mulheres diversas, letradas e - também racializadas -embora a narrativa como um todo, aponte para as palatáveis aulas de sempre sobre o feminismo em ondas encabeçadas pela intelectualidade e coragem de mulheres brancas abastadas. Em suma, Enola poderia ser uma obra divertida e cativante para jovens, que contextualizasse melhor a história e os porquês dum ponto de vista feminino, desfazendo, os equívocos do cotidiano, mas devemos lembrar que a Netflix é mainstream (TV) e precisa salvar a própria pele da revolução também! 

Textos Consultados 

BORRILLO, Daniel. A Homofobia. Disponível em: <https://academia.utp.edu.co/ps4/files/2016/09/homofobia_borrillo_pt.pdf>. 
RIBEIRO, Djamila. O que é local de fala? Belo Horizonte: Letramento/Justificando, 2017. 
RUSS, Joanna. To write like a woman: essays in feminism and science fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1995 
SARKEESIAN, Anita. I'll make a man out of you: strong women in science fiction and fantasy television (Dissertação). York University, Toronto, Ontario, 2010.




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