Red Sparrow: quando o fantoche fala!

Desde o trailer, Operação: Red Sparrow me deixou perturbada. E você se engana se acha que isso tem a ver com a tortura e a violência gráfica.


Por Anne Caroline Quiangala


PROTAGONISMO FEMININO


Na verdade, a primeira camada da angústia veio da reflexão sobre formas de construção de personagens femininas, supostamente feitas para serem heroínas. As ações da personagem Dominika Egorova (Jennifer Lawrence) trouxeram à minha mente um bombardeio de anos noventa: Lara Croft, a Angelina Jolie, a Courtney Love, Faith (BvS) e as pós-bug-do-milênio Suicide Girls.

Explico. Até meus quinze ou dezesseis anos de idade, lembro de ter conhecido dois modelos de feminilidade com repercussão visível (protagonismo): a princesa Disney estilizando um corpo "fêmea" em padrões, ora de feminilidade vitorianos (pureza, delicadeza e fragilidade), ora a garota má, pagando de heroína à lá 007, mas usando sua sexualidade como arma. Assim, viajar pelo mundo, armada e pronta pra matar, por associação, significava "poder"; a sensualmente se naturaliza na mesma sequência.

Éramos inundadas por imagens de bad girls na MTV, séries e games que forneciam certo alívio (até um álibi) para escapar do molde de princesa e desejar ser "o impossível". Apesar disso, as garotas da época presente tiveram um Reboot da Lara Croft, além das protagonistas autênticas de ReCore, Horizon Zero Down, Mortal Kombat XL, Remember.me, Dandara e Life is Strange. As jovens de hoje em dia não precisam mais de mulher-fantache, isto é, a materialização daquela fantasia masculina da dominatrix pronta para realizar suas fantasias.

O que não faz sentido é que a dominatrix faça o que o dominado quer. Ou seja: o suposto dominado constrói sua fantasia e a transfere para ser performada por uma personagem feminina supostamente forte, autônoma e "indomável".

Me deparar com isso foi aterrador, mas isso é só uma parte do problema.


Existe um cuidado estético que se choca com a narrativa.


A NARRATIVA E SUAS PARTES


Dominika Egorova (Jeniffer Lawrence) inicia a história explicitando as fatias identitárias que a compunham: jovem mulher, filha atenciosa e excelente bailarina. Na verdade, não ela mesma, porque não temos acesso aos seus pensamentos e visão de mundo em hora alguma: ela é um fantoche que fala, apenas. 

Aliás, por meio de sua atuação como bailarina, Dominika parece domesticar seu "gênio indomável" ao mesmo tempo propiciar a subsistência de si e de sua mãe. A companhia remunerava a profissional oferecendo moradia, subsidiando os cuidados de saúde de sua mãe e mantendo sua vida acomodada na falta de ambição.

É exatamente no ambiente profissional (à lá Cisne Negro) que Dominika sofre uma terrível investida da vida: seu parceiro e uma outra dançaria providenciaram um acidente em cena no qual a protagonista quebra a perna e deve se afastar pra sempre da carreira.

Esta passagem é tanto um comentário sobre sistemas serem compostos por pessoas, quanto uma retórica sobre gênero que nós encontramos com frequência no mundo "real". 

O bailarino é apresentado como um homem incompleto, portanto, fraco e suscetível à manipulação de mulheres fortes. Neste sentido, para não associar a suposta fraqueza moral à homossexualidade, sua aderência à vontade da sucessora é justaposta à cena de sexo no banheiro. E cabe observar que apesar da gravidade da traição do parceiro - que foi ativo em machucá-la - nossa bad girl espanca ambos até a morte e chuta por fim...a garota. Isso acontece outra vez ao longo do filme. Quer dizer: estar sexualmente "livre" não rompe as correntes do discurso sobre "classe desunida".

Sem elaborar sobre isso, Dominika vai tentar se impor ao longo do filme numa frágil oposição ao patriarcado. Acreditando que o destino não é uma determinante, ela (supostamente) liberta a si mesma da fraqueza que sente e se permite seduzir pela vontade de poder. Ao menos, à pequena quantidade permitida às mulheres, na Rússia, nos E.U.A ou aqui no Brasil.

Quem abre a discussão sobre o indivíduo ser agente de seu destino é o tio Ivan Egorov (irmão de seu pai, interpretado por Mathias Schoenaerts), que é uma importante engrenagem do Estado. Prometendo liberdade e poder, ele insere a "própria sobrinha" (para o terror de vilões e mocinhos) numa camada hostil da realidade na qual a violência física e psicológica são rotina. O prazer dele com o sofrimento de Dominika é brutal, a meu ver, porque instiga a vingança como única forma de combate. Também é brutal porque tudo relacionado a ele funciona como dispositivo de manutenção de valores autoritários, seja a sua vida ou a sua morte.

Sua presença ameaçadora, sempre solitário, sem família constituída e, mais uma vez, explicando sua heterossexualidade, solidifica o meu segundo ponto de horror: a superficialidade da abordagem e sua falha crítica. 

Toda a relação dele com a sobrinha é construída por associação de pequenos gatilhos a respeito de pedofilia, misoginia e estupro. Assim que Dominika se vê destituída de sua importância no Bolshoi, ele oferece uma vida "mais emocionante como Sparrow", um tipo de agente treinada para seduzir alvos e arrancar informações. Embora exista uma preocupação em evidenciar nuances da sedução irrestrita, mostrando como fêmeas e machos são apenas corpos para uso, também é verdadeiro que as categorias homem e mulher, no filme, tanto quanto no mundo real, reiteram assimetrias. Para o centro de treinamento Sparrow, Dominika (e qualquer outra) serviria à nação sendo estuprada, abrindo mão de si pra ser vitimada, enquanto os homens também são coisificados, mas na condição de violadores, mantendo viva a sua mediocridade subjetiva: o machismo.

Ser objetificada como mulher é completa antítese do que o tio afirmou: "nós somos iguais". É claro, não existe condição ideal no planeta Terra, mas em particular, Dominika não pode ser igual ao tio porque eles não partem de lugares iguais de objetivo, interesse e poder. A relação de cuidado, uma lealdade acima de qualquer coisa, também é responsável pelo engessamento de Dominika o qual o tio, sem explícitos laços afetivos, jamais conhecerá. As razões para a garota ser seduzida pelo poder, não é um puro deslumbramento com a dominação, mas uma ânsia por libertação que o ponto de vista do filme falha na tentativa de explicitar.



Inclusive, a aterrorizante relação de desejo do tio - que em toda a sua inocência ou falta de desenvolvimento em tela - a mãe percebe, acaba sendo a exposição das estruturas de poder e, mais uma vez, a chance de aprofundar a discussão é perdida.

A reserva que o ar inexpressivo da atriz traz à narrativa emoldura o pacote de beleza associada à da natureza feminina indomável. Todas as reviravoltas tornam a história até interessante, mas reforçam o fato de que uma genialidade agressiva e profundamente sexual estavam represadas até o acidente libertar uma verdadeira essência de ânima.

Essa essência só é explorada por ações ou olhares, de modo que a subjetividade permanece por mais de duas horas de mistério inconclusivo.


RINDO COM O IMPERIALISMO


Por ser um filme sobre espionagem que se passa em território russo, Operação: Red Sparrow se esforça em borrar a dualidade da Guerra Fria, desnaturalizando a ideia de russos como "frios" e "obcecados". Uma frase de efeito particularmente interessante foi:

"A Guerra Fria não acabou. Na verdade ela se espatifou em pequenos pedaços mais perigosos".

Nesta fala e nos detalhes da direção de arte, fotografia e outros aspectos técnicos (talvez o roteiro nem tanto) podemos ver o domínio inteligente da forma, mas, sem dúvidas, isso reacende a velha, rasa e desnecessária oposição ao conteúdo.

A vergonha do filme fica por conta do espião estadunidense Nate Nash (Joel Edgerton). Evidentemente ele não é o salvador óbvio que ofusca sua amada donzela em perigo, mas suas atitudes espelham o colonizador capaz  de enxergar seus próprios defeitos, apesar de tender a disfarçá-los com doses de heroísmo, honra e sacrifício

Garotas desta época são sortudas porque os milímetros de avanço são visíveis, entretanto, fantasmas como esse filme não deixarão de existir. Resta a elas (e também a nós) deixarmos, de uma vez por todas, o desejo de poder se encerrar nas performances de um mero fantoche que fala.

  • Diretor: Francis Lawrence
  • Elenco: Jennifer Lawrence, Joel Edgerton, Charlotte Rampling, Matthias Schoenaerts, Mary-Louise Parker, Ciarán Hinds, Jeremy Irons, Joely Richardson, Douglas Hodge, Thekla Reuten.
  • 139 min


Operação: Red Sparrow estreia nesta quinta, 1º de março de 2018.

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