Tomb Raider: a aventura pessoal de tornar-se sobrevivente

Joslyn Reyes (Mecânica do Endurance)

Minha experiência com videogames começou com o Super Nintendo, passou rapidamente pelo  Nintendo 64 e se instalou por duas gerações de Playstation. Nesse meio tempo teve jogo de computador (PC) também. Nunca havia pensado no quanto isso era uma formação de vida, até me deparar com os vídeos da Anita Sakeesian e jogar esse Tomb Raider (2013). Acredito que não ter visto essa relevância antes tem a ver com o fato de que eu era uma daquelas (ops, no meu contexto, eu era a única aquelA) que não priorizava "o vencer", o "botar banca", os troféus, combos ou resolver TODOS os Quebra-Cabeças (Puzzle). Talvez, até por isso, era vidrada naquelas revistas de detonados como Dicas Truques pra Playstation... apesar de ser óbvio que não era pra mim.

QUEM É A LARA PRA MIM?
Lara Croft (Clique na imagem)

Recentemente estive comprometida em jogar o reboot da  heroína Lara Croft (XBOX 360), experiência que me fez pensar sobre as novas gerações de videogame, a lógica de cada plataforma/console e as jogabilidades. Descobri que, pra além de ser um novo jogo, era uma outra língua que o controle me obrigava a aprender junto à forma de usá-la. Isso passa tanto pela longa resistência à nova geração quanto à transformação de Lara. Exatamente esse turbilhão de coisas me impediu de fazer um Diário de Jogo ou mesmo uma resenha como todo mundo faz e como a brilhante WENDY BROWNEfez.

Tenho jogado desde o primeiro disco da franquia Tomb Raider e, a cada lançamento, eu curtia a única protagonista forte e interessante que eu conhecia nos videogames. As inovações gráficas e o acúmulo das possibilidades acrobáticas de Lara surpreendiam e dinamização  as histórias mais e mais. Uma coisa me incomodava bastante: ela usava o corpo como arma, só era destemida nas expedições porque a convenção social era uma fraqueza absurda. Os calendários retratavam sua nudez como parte mais importante que a aventura, mas assim, óbvio que convencer aquele público a jogar com uma mulher se justificava com "seios fartos" e gemidas a cada situação. Além disso, Lara não era uma mulher qualquer: branca, jovem, britânica, magra, heterossexual, rica e com título de nobreza. Uma arqueóloga que vive bem (= bon-vivant) em estilo livre (conhecimento empírico) gastando sua fortuna para arriscar a vida (assim como outrxs escolhem carros caros pra correr) e ter autorização para saquear, invadir e matar em territórios sagrados no Oriente.

Apesar de ter consciência de tudo isso, Tomb Raider 4: The Last Revelation tem sido uma experiência marcante há quinze anos, pois redefiniu naquela geração de consoles uma forma de contar histórias a partir da interação. Naquela expedição ao Egito, Lara podia pular e balançar-se em cordas, pendurar-se, agachar e, ainda nos recompensava com o "Ahá!" toda vez que encontrávamos alguma passagem secreta. Lembro do meu "irmão maior" me ensinando a jogar e dizendo exatamente isso! Avancemos.

LÍNGUA, LINGUAGEM, JOGABILIDADE E EXPECTATIVA;

Uma das inovações das novas gerações de videogames é que as animações e o jogo em si têm pouca diferença na qualidade gráfica e a transição entre elas pode ser atravessada pela solicitação de comandos com certa exatidão que define a história. Em alguns momentos da saga eu me deparei com a memória de gestos adequada ao controle do Playstation (imagem acima: 3º quadrante) e também pela cor, pelo comando. Então percebi que eu sei jogar Playstation, não exatamente videogame, assim como falo português num universo de diversas línguas.


Assim como uma língua possibilita expressar uma gama de sensações, experiências e tecnologias, o controle define as possibilidades do jogo, portanto,  as possibilidades de ação e desça quebra cabeças. No caso desse Tomb Raider (2013) Lara não tem as duas pistolas prateadas com munição infinita e mira automática, então a forma de lidar com adversários e economia de cartuchos é distinta. Além dos botões de cores/função/localização diferentes, a anatomia do controle do XBOX é plena; a bateria faz pesar mais que a do Playstation (=PS=Play), mas nada impraticável.

O botão direcional analógico esquerdo mais acima é algo que torna bem confortável já que a mão não fica restrita ao espaço simétrico e curto do PS e que o direcional simples tem uso casual. O controle direciona a forma de pensar dentro do jogo, de expressar o que queremos fazer enquanto personagens naquela realidade virtual. A proximidade é tanta que as dolorosas mortes de Lara são percebidas com uma afinidade assustadora. Cheguei a um ponto de fazer de tudo pra não querer senti-la morrer apesar das "vidas infinitas".

O sol consegue ser um presente como na vida ordinária

Por falar em realidade virtual assombrosamente próxima, a trilha sonora, a miríade de cores, o dinamismo e a participação ativa nas animações tornam a experiência do jogo sinestésicas. Ao longo da jogatina, sensações, cheiros, textura, frio e calor são evocadas brutalmente. O sol consegue ser um presente como na vida ordinária, apesar de estarmos numa espécie de narrativa de ação que está sempre no auge da quase morte. Falar em morte, eu privilegiei o aspecto de sobrevivencia e pilhagem de Lara: a grande graça de jogar RPG é que a personagem tem um continente grande de opções de "ser".

ENREDO
Dos melhores presentes da vida. Hei de zerar!

Eu destaquei o Tomb Raider IV em detrimento dos outros porque foi essa a edição que explicou a gênese da antropóloga. Na primeira fase, estamos em treinamento jogando com Lara-adolescente-privilegiada que o pai pagou para ser ensinada em situação real e descobrimos como ela conseguiu aquela micro mochila do gato Félix que cabia o universo. Depois dessa edição, Lara "morreu", deixou de ser Angelina Jolie e todas essas mudanças na história me afastaram até aqui.

*Aviso: spoiler*
O título para XBOX 360 (7ª geração junto ao Play 3 e 8º geração do XBOX ONE e Play 4) teve a árdua missão de ser o segundo reinicio das aventuras de Lara Croft. A história se passa na ilha Yamatai (Japão) onde a protagonista e os seus amigos naufragaram. Além de salvar os/as companheiros/as Lara tem que lutar contra os habitantes, os perigos naturais e "espirituais" da ilha. A jogabilidade foca-se na sobrevivência e na ação surreais. Apesar de ser possível revisitar locais através dos acampamentos (espécie de checkpoint), optei por não fazer e nem por usar facilitadores no mapa que indicavam a localização dos artefatos ou pontos de interesse. Tentei completar missões secundárias, as tumbas de desafio opcionais e puzzles à medida que jogava e completei o jogo em 71% (MS pra quem é da UnB). Adoro o fato de que, quem joga faz o caminho, tanto que depois do zeramento busquei alguns videos no youtube e tive noção do que os produtores disseram sobre "de 15 a 17" horas e 100%.

"Nasce uma sobrevivente"

Tudo é sobre as escolhas, pois trata-se dum Role-Playing Game (RPG) e a maneira como interagimos com personagens e ambientes define o rumo da história. Diferente dos outros Tomb Raider, neste Lara precisa comer, então ela recolhe plantas e mata animais com esse intuito e não tem aquela antiga "permissão" para matar-por-matar animais (não estou dizendo que é massa, viu. me assustou bastante). A interação é bastante violenta, em muitos momentos eu me questionei sobre o tipo de jogo, pois parece uma aventura em terceira pessoa com pretensão feminista mas com combates que agradam o povo do Halo/Counter Strike/Medal of Honor. Apesar disso, adorei o fato de que o jogo não tem aquela história de voltar para resolver puzzles ou soluções únicas! A maioria dos problemas têm soluções variadas e o jogo é "pra frente"! Ok, eu sei que tem a ver com o espaço da mídia, mas, me deixa.

Um aspecto interessante da ilha é que a cada localização temos mudanças climáticas radicais além de objetos de tempos e locais distintos. Ao mesmo tempo que há objetos de uso comum de séculos passados, há a marca forte da presença militar japonesa durante a Segunda Guerra Mundial e de galeões portugueses . Essa sobreposição de momentos históricos junto à perspectiva eurocêntrica que adotamos a partir do olhar de Lara geram uma fratura produtiva em relação ao discurso que as edições anteriores da arqueóloga traziam. Se antes ela representava unicamente a intervenção civilizada, a Europa indo pra outro continente a fim de resolver pendências históricas, o que vemos agora é que a intervenção do capitalismo, ganância e outros valores masculinistas é questionada. Outro aspecto interessante é que a narrativa é protagonizada por Lara, mas há representação de diversidade racial:

O TESTE BECHDEL E A PERSPECTIVA RACIAL
A tripulação do Endurance é bastante diversa racialmente e enfatizo o fato de termos três mulheres, sendo que Reyes e Sam são respectivamente Preta e Amarela. Elas têm certa centralidade na história (e, diferente das estatísticas, sobrevivem) a mecânica porque é contra as escolhas de Lara e a cinegrafista pela estreita relação afetiva com a arqueóloga.

Tripulação do Endurance

Na verdade, Sam passa a ser motriz da narrativa quando é sequestrada pelo sacerdote Matias que deseja trazer a deusa das tempestades para o corpo dessa jovem. Lara se esforça para salvar todos os amigos, mas quando o perigo é direcionado à Sam a jornada só se compara à de Dante Alighieri n' A Divina Comédia! Graças a isso, não é pouca a quantidade de fan-art enfatizando a homoafetividade entre elas [1]. Neste caso, aquela ideia do Teste Bechdel já foi vencida. Temos duas mulheres com nomes, interagindo e conversando sobre algo que não seja um homem.

"Lara Croft rebutada é lésbica?!"

"Não vou a lugar algum sem você"

Sam consola Lara após a morte do gentil mentor Roth. O luto de Lara é uma das passagens emocionais mais envolventes do jogo.

E o que dizer, da relação com a única personagem preta? Reyes é uma mulher preta, mãe solteira e, em certa situação num vídeo de Sam, aparece "sendo elançada para dentro dum quarto". Ela é descrita como "cética" e "temperamental" e contraria Lara por uma visível luta de classes. Apesar de algumas escolhas de Lara serem realmente equivocadas, parece que o objetivo dos criadores era criar uma personagem para ser estereotipada e enfaticamente desagradável. Ela soa agressiva e egoísta em vários momentos, chega a dizer à Lara que se ela for buscar Sam e não voltar a tempo, não hesitará em deixar a ilha sem elas. Naquele contexto essa declaração é violentíssima, mas Lara sempre responde à violência de Reyes com certa benevolência já que ela "sabe que Reyes quer apenas voltar para sua filha". Reyes inclusive é insensível: culpa Lara a todo momento pela morte de Roth.

Jonah Maiava, cozinheiro
Jonah Maiava, cozinheiro.

Temos falha de personalidade e caráter na mecânica que somente é comparável a dos vilões Matias (seita Solarii) e do egocêntrico Whitman que APENAS trai a tripulação. Se temos apenas uma personagem Negra que fala com o pescador de origem polinésia/neo-zelandeza Jonah Maiava a chance do Teste de Bechdel parece funcionar. Dentro da definição estadunidense ele seria uma Pessoa de Cor (=People of color) e, como resiste junto com Reyes, podemos dizer que há duas pessoas não-brancas que interagem e falam sobre algo que não é a terceira pessoa branca (falam sobre o barco?!). Definitivamente é um jogo com comentário político sensível ao feminino, mas visivelmente racista.

Pra fechar essa seção: além de haver a distinção racial, de classe, idade que gera conflito de interesses, a resistência de Reyes pode sinalizar uma tentativa de normatização de gênero, como se ela enfatizasse a descontinuidade entre sexo, gênero, desejo e orientação sexual [2] de Croft. Olha só, como se alguém subalternizada tivesse o "monopólio da normalidade" [1] ou a "norma mítica", como diz Audre Lorde [3]. Eis uma especulação que me assusta neste jogo até mais que o fato de não haver identificação provável com aspectos dominantes. Mais uma vez o problema da opressão é jogado nos ombros de quem é oprimido.

HORRIPILAÇÃO: TRITURANDO, ESMAGANDO, PERFURANDO MINHA PERSONAGEM
As cenas de morte da Lara são terríveis. Acrescentam dramaticidade? Sim. Mas não precisa ter essa descrição tão brutal e horripilante. Violência contra a mulher (na maioria das vezes ela é violentada por homens) é uma imagem naturalizada que deveria ser substituída pelos dizeres "You are Dead" à lá Resident Evil. Abaixo há uma compilação das mortes. Apesar de estar relacionada à imersão, a brutalidade das mortes remonta aquela justificativa das cenas detalhadas de estupro nos filmes. Há tantos vácuos em toda narrativa, precisa mesmo, preencher com misoginia?

Por que isso...

...em vez disso?

Resident Evil 6

EXPERIÊNCIA PESSOAL E FICÇÃO INTERATIVA
Esse jogo redefiniu minha relação com as novas gerações de consoles e, sobretudo, a forma de compreender o ato de jogar videogame. Não sou gamer, mas gosto de histórias e jogos oferecem, cada vez mais, experiências interativas mais realistas. A forma como humanizaram a Lara torna a aventura mais interessante: ela hesita, conversa consigo mesma em voz alta, sente medo, alegria, amor, amizade e vontade de sobreviver. Ela tem emoções complexas, é fraca e forte na mesma medida e é exatamente a emoção que possibilita sobreviver.

Rhianna Pratchett (Escritora do jogo Tomb Raider)
Rhianna Pratchett (Escritora do jogo Tomb Raider)

Os avanços na capacidade de hardware/software convergiram com a complexidade narrativa bastante alargada pelas críticas de Sarkeesian à indústria de jogos eletrônicos. Apesar de termos representação feminina positiva, percebi ao longo do jogo outras que afirmação de outras opressões é recorrente, como racismo, etarismo, homofobia e gordofobia. O apagamento de possibilidades bem como a morte evidenciam compromissos políticos de forma sutil e assim, os valores são transmitidos ludicamente.

É muito positivo o confronto que essa franquia esta buscando travar com o mercado convencional. Apesar das distorções, encoraja garotas e mulheres a explorarem essa forma de entretenimento além de desafiar pessoas não-mulheres a se identificarem com esse tipo de experiência bem menos explorado na mídia. O problema é que dentre as vozes oprimidas escolhe-se certo tipo de experiência mais privilegiada para criar, como é o caso de Rhianna Pratchett. Apesar de ela representar as experiências de subalternização com valores positivos numa narrativa bem construída, a combinação de opressões e o compromisso em erradicá-las não é a pauta principal. Dessa forma é que relembro de um desfecho de Joanna Russ [4] que ironiza o gosto de homens judeus por filmes misóginos: esse mercado que você se filia produz aqueles filmes que assassinam você.

Tropos Versus Mulheres nos videogames



NOTAS:
[1] Embora o jogo enfatize bastante a afetividade/sororidade entre Lara e Sam e a força da primeira em detrimento da segunda ser uma donzela em perigo, acredito que há aí um reforço daquele tipo de homofobia resultante tanto do heterossexismo (oposição atividade/passividade) quanto da impossibilidade de afeto real e profundo entre mulheres pra além da sexualidade. Não pode haver complexidade no cuidado entre mulheres? Ao mesmo tempo que acho que esse jogo é direcionado às mulheres como nunca antes e ela ser lésbica é um ganho pra diversidade nos jogos, acho que é importante não cair na euforia. Tem um recordatório em que Sam fala sobre carregar a sisuda Lara para uma festa cheia de garotos... não acho que é uma passagem inocente. Ah, temos também o momento de refirmar coisas: o affair com o jovem Alex, não é? ((*) BORILLO, Daniel. Homofobia. in LEONÇO, Tatiana; DINIZ, Debora (orgs). Homofobia e Educação. Brasilia: LetrasLivres e Editora UnB, 2009.)
[2] BUTLER, Judith P. Tradução de Renato Aguiar. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.
[3] LORDE, Audre. Age, Race, Class and Sex: Women Redefining Difference. Sister Outsider Crossing Press, California 1984
[4] RUSS, Joanna. A boy and his dog:  the final solution in To Write like a woman: Essays ub femininism and science fiction. Indiana University Press, 1995.
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