Pantera Negra: o que aprendemos com M'Baku?


Por Anne Caroline Quiangala

Por mais próspera que seja Wakanda, não temos aquelas imagens de ostentação e desperdício de alimentos que caracteriza a maior parte das realezas europeias nos filmes. Sem dúvidas, Pantera Negra é, antes de qualquer coisa, um filme de super-herói, e não há razão pra se pensar em comida, não é?

Receio que não.

Se, por um lado, isso é um sutil comentário sobre valores e ênfase num traço distintivo, por outro, também é verdade que um herói tem assuntos importantes - de vida ou morte - pra tratar. Isso seria inócuo, não fosse a sequência em que Nakia (Lupia Nyong'o), Shuri (Letitia Wright), Ramonda (Angela Basset) e Everett Ross (Martin Freeman) se veem sob custódia do então oponente de T'Challa, o líder da tripo Jabari, M'Baku, em terras - surpreendentemente? - gélidas.

Primeiro é construída uma cena de rendição da mãe e da irmã de T'Challa, remontando uma situação convencional em nosso imaginário. Provavelmente, por serem mulheres, em qualquer outro filme, estariam entregues à própria sorte, sujeitas aos caprichos de uma masculinidade que havia mostrado interesse em desafiar o chefe da família real durante seu ritual de posse. De fato, no primeiro momento, constrói-se um clima de desconforto e de perigo, pois o líder dos Jabari age de forma rude, ameaçadora e rancorosa com a família deposta, e, por isso ocorrer nas suas terras, parece uma ótima oportunidade pra revanche. Contudo:

É possível ser homem, criticar condutas e ainda assim, não ser abusivo.
Não demora pra essa imagem de brutalidade cair por terra - ou neve, se você preferir assim. A performance de masculinidade dele, junto à gestualidade codificada no ocidente como "tribal", "primitivo" e "canibal" somada à entoação do UH-UH-UH, funcionam como um conjunto de elementos que resgatam as representações de negros nos quadrinhos e filmes que significam, até aquele momento, perigo. M'Baku ameaça:

Eu vou picar vocês em pedacinhos e...

"...E nada", afinal, aquele homem corpulento e de terras geladas é vegetariano. Esta quebra do clima de ansiedade das despossuídas funciona também pra gente cair na real.

A leveza com a qual M'Baku liderou a situação mostra que o personagem que pareceu outrora apenas arrogante, teve suas razões para desafiar T'Challa (além do fato de ter o seu direito). Seu senso de humor mostra o quanto o temor das irmãs wakandanas nada mais era que total desconhecimento sobre ele e sua tribo:

Pessoas não se resumem à tradição, aparência e nem à ignorância do observador sobre o íntimo delas.
O temor que sentimos junto à Ramonda (Angela Basset) mostra que, apesar de serem cinco tribos  que formam Wakanda e terem cadeiras no concelho, a família de T'Challa tem sido portadora da coroa há gerações e todo esse tempo sequer se dirigiu àquelas terras. Isso também soa verdadeiro sobre a divisão dos recursos do país.

Se o motivo do humor pra você está ligado, simplesmente, ao fato de não achar natural que um homem negro, forte e guerreiro poderia ser vegetariano, isso significa que você não tem uma compreensão continental da África. Evidentemente, aprender tudo sobre a África pela televisão que enfatiza a inventividade alienígena, em detrimento da inteligência humana, faz tudo o que parece sofisticado soar incompatível com negritude.

M'Baku não explica se é ovolacto, se come peixe ou, ainda, se consome derivados de leite, mas sua "piada" rompe o mito de que a carne é a principal fonte de proteínas, e que homens corpulentos precisam disso pra sobreviver. Para muita gente pode soar ilógico ele viver no gelo e não comer carne, mas abre espaço para pensar no quanto não é necessário estabelecer uma relação hierárquica com os animais.

Erik Killmonger (Michael B. Jordan) e W'Kabi (Daniel Kaluuya)

A toxidade masculinista está vinculada à exploração dos animais
Algumas pessoas poderiam argumentar que Wakanda não é um país capitalista, e que, portanto, a relação com os animais não é exploratória, entretanto, o personagem W'Kabi (Daniel Kaluuya) cria animais (tecnológicos) para fins estritamente bélicos. Talvez seja realmente mais cômodo usar os recursos de origem animal para se vestir e se alimentar, mas isso remonta uma lógica de exploração que volta e meia se converte em outras violências. Exemplo disso é que seu ressentimento para com o Pantera Negra se torna combustível tanto para depor T'Challa, quanto pra apoiar um líder que violenta mulheres, idosos e, ainda, destrói o templo e as plantas ritualísticas da nação.

Neste sentido, é brilhante que um personagem íntegro e profundo como M'Baku represente a escolha dum estilo de vida vegetariano. Numa só piada ele questiona os estereótipos e nos leva a associar masculinidade negra saudável ao rompimento com supremacias políticas e éticas. Colonização, exploração e destruição de corpos é uma sequência lógica da qual nem mesmo Wakanda está livre, mas, diferente de qualquer outro lugar, suas contradições são passos de indivíduos que caminham rumo a um futuro cada vez mais justo, igualitário e - por que não? - cool, que nem o grandalhão Jabari.
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