25 momentos que deram fôlego a 2016 - Parte 2





Um ano com tantos golpes como 2016 desafiou o nosso poder de resistência. O que fazer diante do constante questionamento sobre o lado que estamos? O que fazer depois de tanta ignorância, grito e mais do mesmo em vez de diálogo e fascismos? Meu professor de história, Mau Mau, frente à minha angústia de sétimo ano, disse que era impossível passarmos por outro Golpe. Foi um alento que me deu fôlego durante muito tempo e, claro, me inspirou à rebeldia consciente, de que precisamos denunciar e pensar criticamente sempre. Ele me apontou também a certeza de que a esquerda é heterogênea, pouco consensual, mas dotada dum mérito único: a autocrítica. O apogeu deste diálogo se mostrou logo no início do tumultuado 2016, quando a minha orientadora me presenteou com o incrível:




COMO CONVERSAR COM UM FASCISTA
(Rio de Janeiro: Record, 2016. 5ed)
Marcia Tiburi

Pra quem acompanha a carreira da filósofa gaúcha Márcia Tiburi, esse livro resulta da elaboração de elementos que encontramos em trabalhos anteriores como Olho de vidro, Diálogo Desenho e Filosofia em comum. A importância da mídia no cotidiano, seu alcance e a substituição do livre pensar (olho) pela programação incessante (prótese) é descrita em Olho de vidro e aponta para a tragicomédia montada pela classe média "bem informada" porque lê e assiste jornal diariamente. Já em Filosofia em comum, longe de qualquer viagem sobre conspiração, Tiburi lança sóbrio pensamento sobre o que nos cerca numa linguagem acessível,  nos intrumentaliza para ler nossa rotina de forma crítica e convida a redescobrir nossa curiosidade.

A maioria dos ensaios reunidos em Como conversar com um fascista foi publicada na coluna de Tiburi na revista Cult, textos acessíveis no site da revista com prefácio do deputado Jean Willys. Um dos textos mais célebres dá título à obra, que já começa nos provocando. Como lidar com o nosso Outro, o fascista? Ora, isso já pressupõe que nós não costumamos pensar sobre nossas próprias atitudes e pensamentos de raiz totalitária. A obra é um convite a pensar em nossas ações, também. Mas vamos do início. Ao longo dos ensaios, Tiburi elabora o conceito de fascismo desde sua história até a sua apropriação na política brasileira contemporânea (altamente baseada em House of Cards, dizem as fãs de Netflix). No início de 2016, as redações escolares de jovens da capital federal, bem como sua atitudes cotidianas frente ao contexto político, me desesperaram de tal maneira que os ensaios e a palestra da autora na Universidade de Brasília ajudaram a "segurar a barra". A compreensão do fenômeno foi um primeiro passo pra saber lidar com o desespero global e local, as panelas, os rojões e as piadas misóginas. E nem vou citar os haters que ora se apresentam. Meu desespero no início do ano me fez procurar entender melhor a onda de conservadorismo e foi, sem dúvidas, a obra que salvou meu ano.





REMEBER•ME
(Plataforma: Xbox 360 (Playstation 3 e PC) / Lançamento: 2013
Produzido pelo estúdio francês Dontnod Entertainment e publicado pela Capcom

Pra quem vem das gerações de PlayStation 1 e 2, esse jogo reacende nosso amor pela jogabilidade, distopia e visual dum Resident Evil 2 com o adicional da trama política mais profunda e em Paris. Nós assumimos a pele de Nilin, uma rebelde que foi "desmemoriada" por uma agência que vende memórias (a Memorize). Começamos em 2084, na cidade de Neo-Paris e o desafio é recobrar a identidade e as memórias afetivas de Nilin. Neste mundo distópico, a multinacional Memorize oferece um implante cerebral que permite digitalizar memórias e compartilha-las em tempo real. Cabe ressaltar que os salteadores [leapers] são individuos desumanizados pelo seu vício em memórias alheias a ponto de seus implantes [Sensen] se desintegrarem. Entendendo que a memória é um direito humano, o grupo classificado como erroristas [errorists] lutava contra a desumanização dos humanos frente à sua falta de recursos para adquirir memórias. Nilin é ajudada por seu único amigo, Edge, ao longo do processo de recuperar suas memórias. O que eu acho mais excepcional é que, explorando os ambientes encontra situações que enxerga com criticidade: assédio, a hierarquia social, a coisificação do ser humano, a vigilância...

A lição de que memória é poder e possibilita a luta por direitos é muito forte e absolutamente necessária. O fato de a protagonista ser uma mulher forte e de seu melhor amigo, Edge, ser negro possibilitou uma quebra de paradigmas considerável no mundo dos games... E também explica o porquê de ser raramente citado. Ainda não zerei, mas esse jogo vale muito a pena!




PIECES OF SPACES
Don Giovanni Records
Sammus [ Enongo Lumumba-Kasongo]

Sem sombra de dúvidas, Pieces of Space da rapper estadunidense Sammus foi o álbum que eu mais ouvi em 2016. A voz jovem da pos-doutoranda somada às letras que tratam da experiência de ser Preta, Nerd, rapper e acadêmica dá nome à nossa experiência no Burning Hell e, desse modo, faz existir. Letras como 100 percent e Weirdo desnudam a sensação de desconformidade e desolação cotidiana num mundo racista e sexista cujos símbolos nos ignoram a todo tempo. Elas mostram a maturação artística de quem havia escrito e performado 1080p. no EP Infusion de março de 2016 e quebrado o silêncio sobre saúde mental das garotas e mulheres negras. A batida e as rimas são muito bem produzidas e, pra quem ouviu os trabalhos anteriores da rapper, será possível descobrir nesse álbum o quanto ela se mostra mais à vontade e madura. Há referências à altura de Akua Naru, Destiny Child, Jean Grae o que reforça o poder do Feminismo Negro como conhecimento transmitido principalmente pela música. Já a faixa Perfect Dark trouxe uma reflexão sobre #nerdiandade: a representação de heroínas negras, tão pertinente que sustentou um artigo em que comparei a retórica da representação da Capitã Marvel à da Tempestade!

Ouça Pieces of Space aqui!





WHAT HAPPENED, MISS NINA SIMONE?
(Netflix, 2015)
Liz Garbus

Esse documentário foi uma das coisas mais terríveis que eu (re)assisti em 2016. O comentário retórico reforça o senso comum de que Simone era apenas um gênio com sofrimento mental. Primeiro que a narrativa tenta enganar aos/às expectadores/as inserindo registros de voz, vídeo e diários de Simone como se fosse ela a narradora de sua própria história. Segundo que os maiores espaços de fala foram concedidos ao ex-marido abusador e à filha ressentida. Isso gera um desesperador resultado no qual a memória da cantora é, no mínimo, desrespeitada. Nem a violência doméstica, nem seu laudo de bipolaridade ou mesmo as forças deformantes duma sociedade racista, e duma vida violentada pela irmandade branca de branco são considerados "o que aconteceu à Simone". Esse documentário me revoltou tanto que eu produzi um artigo sobre essa iniciativa tão rentável ao abusador, que teve mais espaço pra violentar a vítima mesmo após sua morte.






WINTER
(Century Media Records, 2016)
Oceans of Slumber

A banda texana de Gothic Metal Oceans Of Slumber lançou em 2016 seu terceiro álbum de estúdio, o primeiro com Cammie Gilbert nos vocais. A cantora, ainda que não seja a primeira mulher negra à frente de bandas "extremas" se mostrou icônica porque quebrou muitos paradigmas com uma naturalidade admirável. No estilo "Beauty and Beast" ela e o guitarrista Sean Gary formam um dueto com uma nova forma estética pro Gothic Metal. Uma guria negra com a voz melodiosa, mas também presente cantando a dor e o sofrimento é uma imagem familiar no blues, mas curiosamente apagada do meio heavy metal... o que leva a grande maioria pensar que não existem mulheres negras no metal, ora!

single que dá nome ao álbum, Wintertem uma construção clássica e é viciante. O álbum apresenta ótima produção (pra quem ouve metal, só de ver Century Media records já é óbvio) com letras e melodias muito bem acabadas. Se eu tivesse visto Cammie há dez anos atrás talvez eu tivesse sido uma adolescente menos desencaixada, mas nunca é tarde!





Leia também:
25 Momentos Que Deram Fôlego A 2016 – parte 1 por Camila Cerdeira

Tecnologia do Blogger.