PERFORMANCES DE BRANQUITUDE ~EMPRESTADA ~ À JUROS

GRITARAM-ME NEGRA 


  1. O cidadão médio costuma ter em seu léxico um conjunto de expressões racializadas que, muitas vezes, nem tem ideia. O óbvio é associar a si mesmo a tudo que é bom/positivo e plasmar o que é ruim/negativo ao seu oposto: à cor preta. Não pensar sobre isso é privilégio branco. Assim como dizer que "inveja branca" é algo positivo. Se tanto inveja, quanto magia são palavras que são qualificadas como boas ou más pela cor "preta" ou "branca", é óbvio que é performance racista. Você sabe o que é branquitude?
  2. A inveja branca é antes uma ~presença de espírito~ que um dado racial (afinal, raças não existem, são crenças que definem interações sociais). No Brasil, as pessoas insistem em dizerem-se ora da "raça humana", ora " meu _____ é negro, mas a minha pele é _________ e não sei como me declarar".
  3. Reina no Brasil a suposta democracia racial, que na verdade, esconde uma hierarquia por raça/cor fundamentada na lógica "pigmentocrática". A partir dessa suposta <<<diferença>>> o sistema empresta (a juros altos) aos "filhos da terra" de pouca pigmentação, a sensação de topo da pirâmide racial e, portanto, emprestam a chance de performar a branquitude. 



"Ei, você é negra! Entendeu? Negra!"

~ as vezes parece que a pessoa esqueceu algumas sequências antes e depois dessa informação óbvia ~


Se você é uma pessoa negra com a pele pigmentada e cabelo crespo, provavelmente já vivenciou pessoas brancas - ou de tez "mais clara" que a sua - que fez comentários aleatórios, não solicitados e não contextualizados que enfatizam o seu/nosso lugar no mundo: "ei, você é negra!"


Isso mesmo, e a pessoa ou te faz lembrar da <<<diferença>>> racial para informar uma situação que você JÁ vive ou para ENSINAR a lidar com as situações que você vivência. E não há nada de necessário.

Com isso, não quero dizer que no Ocidente não seja tudo sobre raça/"cor" porque é sim. Absolutamente tudo é raça e há mais tinta sobre isso do que extensão de mundo (claro que eles não leram nada disso, pois "já nasceram sabendo"). Também não digo que o não-branco é o problema, ele nunca é o real problema, muito pelo contrário, ele é marionete da branquitude acrítica.

Quero chamar atenção à perversidade gratuita presente no ato de lembrar "ei você é negra". Não pelo caráter de verdade, afinal, é Óbvio que eu sei e que me orgulho disso. Também é obvio que não tomo decisões sem levar o fato ~ observável ~ em consideração. O problema é que denominar alguém, tem uma única função: denominar o que você não é... afastar-se do que julga negativo. Não será muita petulância alguém se sentir no direito de afirmar o óbvio para se sentir melhor?

Uau. Sério? Claro que eu tinha esquecido que sou negra, ou que tenho cabelo crespo e sou pobre. Alias, pra que lembrar se sou "lembrada" sempre? (*ironia*).


Na parte do Brasil de onde eu venho as pessoas têm uma convicção muito forte do que elas são (porque se autodeclaram): europeias, vindas por acaso no século XIX ou na década de 40. Essa escola de pensamento mostra uma altivez curiosa, que funciona pela exaltação de si (ocultando até mesmo o rebaixamento do outro). Eles afirmam com naturalidade a função positiva de certas figuras históricas que até a escola ensina que foram criminosos de Guerra. Vivem da agricultura numa terra que não é identificada como "pátria" e se gabam de uma certa nação estilo Atlântida - que não existe mais no mapa-múndi. São racistas cuja vantagem (?) é o distanciamento. Não te cumprimentam, não abrem sequer a janela pra falar com você. E esse "você" pode até ser uma pessoa branca com cabelo e olho escuro. Não perguntam, não respondem e não falam. São inimigos óbvios porque não temem ser racistas, afinal sabem muito bem quem são e o que jamais poderão ser.

Já o lugar onde moro atualmente - a novíssima capital - é formado por uma lógica racial diferente. O padrão de vida é muito alto, então a luta de classes protagoniza ~ aparentemente~ as relações sociais ~racializadas~. Na camada média e universitária a sensação não é tanto a de Suíça, "mas o importante é o dinheiro". Nesse apagamento da racialidade, a polarização não é tão evidente em termos raciais, as conversas ficam na superfície duma paixão pela ignorância. "Sou negrx ou não sou? Prefiro não saber", mas sabem.

Claro que a classe é um elemento importante para a interação social, mas a história confere centralidade à raça/cor como estruturante do sistema de produção e, portanto, das relações sociais, acessos, afetos. Nesta cidade nova em que não há sobrenomes, catolicismo e casamentos seculares, qualquer pessoa da classe média já se considera branca de antemão e mesmo que não diga, pega emprestada a branquitude e age de acordo com ela. E o capital permite mutilações que mimetizam, às vezes, bem. Se for homem é fácil: raspa o cabelo e a barba, veste uma roupa social, anda pela rua de crachá e pronto (!). Quase branco. Mulher é mais complexo, mas há plásticas, progressivas, horror ao sol e outras tantas mutilações que quase deixam uma quase musa romântica do século XIX.


COMIC STRIP #5
"Se um cara me manda sorrir... e eu sorrir...estarei resistindo ao patriarcado?/ Se alguém me chamar de sua rainha negra eu poderia degolar esse alguém imediatamente?/ Meu chefe certa vez me convocou um reunião para agendar a próxima reunião. Isso é um deja vu?/ A sessão de comentários é mais real que a vida real?"


A apropriação do whitesplaning (a explicação branca)


Uma das queixas mais comuns de mulheres é o modo como homens sempre acham que têm razão e explicam o básico da forma mais simplista e desdenhosa, como se mulheres fossem incapazes de entender. esse é o mansplaningSe você já assistiu uma boa comédia negra como Insecure, The Unwritten rulesTales from the Kraka Tower ou Black Feminist Blogger, você já deve ter ideia de como funciona a explicação branca, disfarçada de "não entendi", "você não faz sentido" ou "você não entendeu". E, que tal, um branco cosplay étnico-nova-Era? E que tal, o não-branco que se identifica como branco com trajes "étnicos" para mostrar o quanto apoia os Negros? Ele usa seu empréstimo pra dizer que ele "adora NOSSO estilo, moda e NAMORA UMA NEGRA". Claro que ele explica alguma sabedoria AFRICANA ou insiste em dar uma aula sobre Malcolm X que são parte do SEU povo, então VOCÊ deveria saber...não ele.


Branco quando diz "não sou racista, MAS..."
~hmm... apenas não diga. você é racista sim ~


A inveja branca


Certo dia: Um rapaz branco ~loiro~ jovem fica me observando enquanto leio. Ele fica por um longo tempo, até que solta a máxima: " nossa, você está sempre lendo. Queria ser que nem você". Noutra ocasião, durante um almoço self service, eu preparei um prato e ele disse com os olhos bem abertos: "uau, como está lindo o seu prato!". Não lembro exatamente se foi ele quem citou a "inveja branca" ou se foi o momento que compreendi o conceito, mas essa situação é bastante comum e elucidativa. Por que diabos um homem branco teria inveja de mim? Porque sou incrível, 100℅ maravilhosa, 100℅ cool? Claro que não é essa a percepção dele. É evidente que, pra ele, eu represento não apenas aquela que tem o que ele acha que é dele por direito, como aquela que tem algo que ~não era pra ter~ ne?


[No café...]
"Eu quero um café sem glúten, açúcar, soja, lactose, por favor. Mantenha a espuma"

A branquidade até-até (sou ATÉ negro ou tenho Até amigxs/namoradxs negrxs)


  1. Todo branco é racista. Isso não é achismo, é um fato. A questão é o indivíduo pensar criticamente, qual a função do branco na luta antirracista? Como ele/ela pode contribuir para o fim de seu próprio racismo?
  2. Pessoas com epiderme clara, sobretudo em contextos menos favorecidos financeiramente, tendem a "esquecer" sua condição de negros. É muito mais confortável se identificar com o lado vencedor, não é?

Dia desses, um rapazola veio comentar que namora uma guria negra. Ele estava incomodado porque presenciou uma cena de racismo em que não agiu em favor da namorada. Namorada, aliás, que foi interditada por sei lá quem da família dele por ser "morena escura" e ele a assumiu. Esse "assumir" é ostentado como um troféu, esforço hercúleo. Ora, duas coisas ficaram evidentes nessa história. A primeira é que ele não se incomodou exatamente com o sofrimento dela; o que estava ferido ali era o ego masculino dele que "não defendeu sua fêmea". A segunda foi que ele sentiu a necessidade de conversar comigo sobre o assunto e, assim, se distanciar daquela situação de injustiça social e de violência.

Em seguida, a conversa descambou para cotas raciais, que ele é contra porque "acha errado...". Expliquei a fundamentação teórica, prática e fui totalmente pedagógica inserindo a história acima. Ele negou tudo por "achar" o contrario. (já disse que odeio achismos quando estudos sérios estão sendo ignorados?) Lá pelas tantas, ele disse: "já sei o que você vai dizer: que eu sou branco e por isso sou contra as cotas". Eu respondi "primeiro que você não é branco, segundo que seu achismo é fruto da paixão pela ignorância". Em suma, segundo o sujeito, ele até "tem uma namorada negra" e, portanto, se diz não racista. Na minha leitura: ignora o fator "negro" que o espelho indica, namora uma guria negra pra reforçar a ideia de branquitude, e faz uso do poder emprestado que o colorido concede (até não conceder mais). É típico de não-brancos performando branquitude, enfatizar sua branquidade, vermelhidão, veias etc quando uma pessoa preta é a única interlocutora.



Whiteporn ou o Pornô branco



Pra quem não sabe o que é "pornô branco" vai um exemplo: sentir prazer na espera do suposto fan service (ex. a "perda do braço" da Misty Knight) que depende duma violência gráfica revela muito de vpcê. Não tem nerdice que explique essa ideia de prazer. Isso é século XVI puro. Reveja seus privilégios, seu voyeurismo da catástrofe e seu apego ao cânone também, viu. Curioso como, muita gente progressista diz que Thor mulher é ótimo, mas que Misty com braço não-biônico destrói o conceito dela.

[...] a branquitude refere-se à identidade racial branca, a branquitude se constrói. A branquitude é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivo, isto é, materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução do preconceito racial, discriminação racial “injusta” e racismo (Hernani Francisco da Silva via Geledés)



"DEUS É UMA MULHER NEGRA"




Khoudia Diop é uma modelo senegalesa que se destacou na campanha "The Colored Girl: Rebirth" (O renascimento da mulher negra), de Victory Jones e Tori Elizabeth, que tiveram como objetivo valorizar a beleza negra. Se você der uma olhada no catálogo, todas as mulheres são pigmentadas, a menos que sejam negras-albinas, o que parece dar um contraste exotizante à "lucrativa paleta". Enquanto parte execrável da internet se prestou a violentar Khoudia Diop diretamente, uma parcela mais benevolente me preocupou. Inimigos declarados são "caras maus" rastreáveis. 

Não foram poucos os tópicos em grupos feministas do Facebook que discutiram a beleza "exótica" de Khoudia. Primeiro que as pessoas (sobretudo mulheres brancas) se diziam "apaixonadas" enquanto a chamavam de todo e qualquer tipo de superlativo, mas nunca pelo nome. É mais ou menos a recorrente ideia de que Viola Davis é Deus, ideia que nega tanto o passado de escravidão e Jim Crow, quanto o presente de violências, Suponho que Deus não tem que lidar com papéis em filmes como Histórias Cruzadas (The Help!) e nem com com a ausência de papéis que desembocam em premiações. Enfatizar qualidades não apaga os privilégios simbólicos conferidos pela branquidade.

Outro ponto intrigante nos tópicos foi o modo como as garotas descreviam as qualidades de Khoudia. A maioria delas se referia à modelo como "pintada à mão", como se todo ser humano fosse na verdade branco (neutro? transparente?), e que as demais é que fossem acrescidas de cor. Sinto informá-las, mas branco é uma cor e vocês não conseguiram esconder sua percepção branca sobre o mundo.



Será? Se tiver estômago, leia isso.


Conclusão


Sem dúvidas, o racismo e a branquitude são problemas da sociedade branca, e que nenhuma pessoa negra pode se beneficiar realmente dela. Por outro lado, todas as pessoas são submetidas à mesma realidade social, a ponto de uma pessoa negra sugerir a leitura de "Deus essa gostosa" como uma quebra de estereótipos. Ora, se uma mulher negra num ménage em página dupla for quebra de estereótipo, imagine o que a realidade não é.

Em suma, a ideia desse texto, ao descrever performances de branquitude emprestada ou não, é antes destacar o perigo de ser negro/negra nessa sociedade e não ter consciência negra. É claro que a identidade negra torna consciente uma história inescapável de desempoderamento e dor que se atualiza diariamente e - obvio que não é confortável saber disso o tempo todo - , mas o individuo que não se apodera de sua identidade negra é um alvo fácil dos empréstimos de branquitude. Mal sabem eles e elas que os credores, ao afirmarem que você nem é tão negra assim estão, na verdade, te paralisando, alienando e prestes a lançar juros vitais ao "favor" de te considerar quase igual. Na verdade, todo mundo que não é igual, sabe muito bem que não o é, mas admitir é um problema porque dói. 




NOTA:
(*) Com isso não estou dizendo que negros com pele "clara" são racistas como os brancos, afinal seria muito colorista da minha parte. O que estou dizendo é que o próprio sistema racista ~empresta~ a pessoa menos pigmentada poder para reforcar o abismo entre ser negro ou branco. São apenas engrenagens frágeis e substituíveis.



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