TRADUÇÃO: Onde está meu poder? Navegando os limites da apropriação, enquanto mulher negra (Altheria Gaston)


Traduzido por Lucas Pamplona
Revisão: Anne Caroline Quiangala

[*] Traduzido com a permissão da autora

Recentemente viajei de férias ao México, onde comprei dois vestidos que há muito tempo desejava. Esse vestido é conhecido como Chica Poblana. Fui motivada por Frida Kahlo, brilhante artista mexicana e ícone do feminismo, cujos vestidos eram coloridos, elegantes e inspirados pela sua cultura. Seus vestidos e chapéus floridos eram simplesmente fenomenais. Frida foi, inclusive, a musa inspiradora do traje de Halloween de 2014 da Beyoncé. Quando comprei os vestidos no mercado de rua de Cholula, não fui capaz conter minha empolgação.

Contudo, ao chegar aos EUA, relutei em usar os vestidos comprados. Me perguntei se eu, uma mulher negra, poderia ser acusada (e culpada) de apropriação da cultura das mulheres mexicanas. A última coisa que desejo é ofender minhas amigas México-estadunidenses [Mexican-american] e mulheres México-americanas como um todo. Como mulheres de cor (NT: designação étnica genérica para não-caucasianos), travamos a mesma guerra contra o capitalismo imperialista que viabiliza essa apropriação cultural. Sendo instáveis as linhas que diferenciam oprimidos e opressores, e sendo privilégio uma questão de contexto, deliberei se eu, também, poderia apropriar-me de algo de um grupo do qual também sinto fazer parte – mulheres de cor.

Apropriação cultural é algo normalmente chamado à atenção por grupos oprimidos, frente a grupos dominantes e colonizadores, quando esses adotam e praticam de forma não consentida as práticas daqueles. Povos de cor dos hemisférios sul e oeste, assim como povos nativos do continente americano, foram historicamente apropriados e mercantilizados por europeus, tendo sido tratados como um outro exotificado. A fascinação europeia não era uma que compreendia esses povos como sendo de uma humanidade em comum, mas sim como objetos a serem subvertidos, controlados e utilizados para o próprio prazer. Essa subjugação de pessoas de cor estabeleceu as bases para que grupos dominantes usurpassem práticas culturais e delas se apropriassem para benefício próprio.

Um exemplo de apropriação cultural e mercantilização é o rock-and-roll, um gênero musical dominado por pessoas brancas, mas originário do blues e do jazz criado por artistas negros e negras. Músicos brancos cooptaram esses estilos musicais originalmente negros, e os transformaram em um recurso de captação de fama e riqueza. Como é frequentemente o caso com a apropriação cultural, brancos tomaram algo considerado “étnico” e o popularizaram. Essa é a característica que define a apropriação cultural – o uso de poder e privilégio branco para “legitimar” as práticas e tradições culturais dos povos de cor.

A acusação de apropriação cultural também sofre críticas. Com a popularização da viagem transnacional e a imensa diversidade presente nos EUA (NT: E no Brasil!), há quem argumente que já somos frequentemente e intensamente influenciados por outras culturas, e isso ofusca o limiar entre a apropriação e a apreciação, entre o intercâmbio e o extravio cultural. Outros inclusive alegam que uma cultura não pode ser “dona” de um estilo, símbolo, gênero musical, arte, etc., tornando a apropriação, portanto, impossível. Descobri que não há respostas fáceis ou regras comuns ao tentar definir se algo em particular é um ato de apropriação.

Rotular atos específicos como apropriação – ou melhor, desapropriação – é subjetivo e situacional. Se alunos de uma escola, por exemplo, celebrarem o Dia do Índio vestindo roupas características (NT: frequentemente estereotipadas) após terem estudado e aprendido sobre tradições e culturas indígenas, isso pode ser considerado aceitável. Contudo, mesmo quando a apreciação cultural é demonstrada de forma positiva, ainda corremos o risco de que alguém se sinta ofendido.

Conforme refleti mais acerca de estar cometendo apropriação ao usar meu vestido, me fiz as seguintes perguntas, pensando sempre que as consequências são tão – se não mais – importantes do que as intenções.

Reduz? O ato reduz a riqueza da cultura a uma visão estreitada? Frequentemente, atos de apropriação cultural minimizam ou supersimplificam a diversidade ao reduzirem a cultura a alguns poucos símbolos.

Ridiculariza? O ato tira sarro da cultura? Diversas vezes, atos de apropriação cultural exageram ou distorcem as representações visuais da cultura.

Ofende a fé? Se o ato é irreverente frente a práticas e tradições sagradas de um grupo cultural, é um ato ofensivo de (des)apropriação.

É uma falsa caracterização da cultura? O ato é uma verdadeira e precisa representação da cultura, ou o significado real foi distorcido?

Promove estereótipos? Se o ato contribui com estereótipos comuns do grupo em questão, não deve ser feito. Ponto. (NT: tais como blackface e caricaturas)

Desumaniza? Em outras palavras, o ato leva a inferiorização dos membros da cultura representada? Se o ato contribui com qualquer forma de objetificação – a visão das pessoas como objetos de gratificação e prazer, e não como seres humanos dignos de respeito – o ato pode ser apropriador.

Quem se beneficia? Seja através de dinheiro, fama, promoção social ou outras benesses, é importante nos atentarmos se quem veste/atua/demonstra a outra cultura “ganha” ao custo dessa representação.

Depois de seriamente considerar se devia ou não usar meus vestidos China Poblana, decidi usá-los. Não estou tentando "ser mexicana" ou adotando tradições mexicanas. Apenas quero usar belos vestidos que mostram o respeito pelas mulheres mexicanas e refletem minha viagem à uma cidade histórica. Usar o vestido não é reducionista, não é ridicularizar, não é um sacrilégio, não é descaracterizar as mulheres mexicanas, não é perpetuar estereótipos e não desumaniza. Ao comprar estes vestidos de um vendedor local, ao invés de comprar de uma loja online, pude investir diretamente nos artistas que criaram essas peças.

Na raiz das questões a respeito de apropriação cultural existem questões de poder. Como uma mulher negra nos Estados Unidos, que tem alguns privilégios, eu ainda não possuo o poder da branquitude (nem o desejo) de legitimá-lo - de sair da margem para o mainstream - de qualquer prática cultural e étnica.



Texto originalmente publicado como "Where's My Power?: On Navigating the Boundaries of Appropriation as a Black Woman" no site For Harriet em 8 set. 2015.

[1] Altheria Gaston é professora. Cursa doutorado no campo de estudos interdisciplinares na Universidade Cristã do Texas (TCU). Suas áreas de interesse são: estudos de gênero, feminismo negro, interseccionalidade e novas mídias. Contribui regularmente no site For Harriet.
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