Apenas (mais) um pensamento inocente

Não é que eu
Seja racista...
Mas existem certas
Coisas
Que só os NEGROS
Entendem.
Existe um tipo de amor
Que só os NEGROS
Possuem,
Existe uma marca no
Peito
Que só nos NEGROS
Se vê,
Existe um sol
Cansativo
Que só os NEGROS
Resistem.
Não é que eu
Seja racista...
Mas existe uma
História
Que só os NEGROS
Sabem contar
... Que poucos podem

Entender.

(Ponto Histórico - Luiz Carlos Amaral Gomes - pseudônimo Ele Semog)


É REPETITIVO, CÍCLICO, COTIDIANO E CORRIQUEIRO
Esses dias eu estava conversando com uma mulher (negra) sobre a maquiagem de zumbi que eu vira na internet e pretendia testar. A ideia era testá-la pra fantasia de Halloween para uma festa que sempre tenho sido convidada, mas que nunca fora. Nesse instante, uma terceira pessoa, branca, disse:

- Halloween meus ovo!

E mais, a prescrição:

- Quero ver você festejar o dia do Saci Pererê [1]!

Minha primeira reação foi: "Oi?". Daí eu disse: então eu tenho que apoiar a folclorização? Porque, até onde eu sei, o Saci jamais ascendeu ao lugar de mito ou de arquétipo, nacionalmente, no senso comum. O que eu não disse: pra mim, Halloween nunca foi algo que me interessasse. É um aspecto cultural que não me toca. Mas assim, estudar literatura gótica, pra muita gente, pode significar que tenho a "mente colonizada", não é? Tanto que perguntar a minha opinião sobre o tema sequer passa pela cabeça deste alguém.

a)Posto: o enunciador tem testículo e se sente poderoso para impor opinião não solicitada. Homem-cis sempre se sente a vontade para emitir opiniões sobre o que não lhe diz respeito porque, em sua mente, tudo o que se conhece *tudo que foi tocado pelo ímpeto colonizador* lhe pertence.
b)Pressuposto: a interlocutora (eu) é mulher e foi simbolicamente agredida. Ênfase no que "falta" em mim e excede nele. Mas, neste contexto, o que significa não ter testículos? Significa que essa pessoa quis deixar evidente sua leitura de mundo de que o importante, o que prevalece é antes o falo. Quem tem falo, fala.
C)Subentendido: ele sabe que sou capaz de pensar criticamente, mas insiste em exercer poder reafirmando sua localidade e minha absência. Achou que fosse silenciar. Aliás, a fantasia colonial foi essa. Controlar o que eu devo ou não me identificar. O mais letal desse “subentendido” é a afirmação de minha “inabilidade crítica” ou “inocência” para captar o “meu engano”.

Ele não faz ideia do quanto isso foi violento, porque em sua cabeça de “não sou racista” ele não fez nada, além de “me ajudar a sair da ignorância”. Isso, seu povo (europeu) tem feito há tempos com o meu (africano) há muito mais de quinhentos anos, excluindo nossa humanidade, nossa perspectiva, nossa sabedoria e nos explorando com a sua justificativa que deixa pra trás sua responsabilidade. Certamente há sempre alguém para limpar o que ele deixou atrás. E eu sou apenas uma “raivosa” e “alienada”, veja que surpresa: isso é tão verdade que é preciso meu silêncio para ele provar essa soberania. Ele pensa isso dos seus amigos intelectuais revolucionários? Ele diria que seus amigos devem TODOS se identificar com o Visconde de Sabugosa? TODOS eles reduzidos a um pequeno e caricato milho falante? Acho que não. Suponho que preferem ser um Prestes, afinal: “cavaleiro da esperança” parece mais honroso. Glória do sul, lembremos disso.

A dissociação entre o que ele disse e o que ele acha que disse é um paradoxo paralisante porque impede qualquer diálogo. De forma alegórica, ele me força a optar por:

D) aceitar a domesticação, porque ele tanto está dizendo que “preciso me reafirmar dentro de símbolos que são meus” como está me violentando simbolicamente pela negação da minha capacidade cognitiva. Aceitar porque a associação violenta entre NEGRITUDE - DELINQUÊNCIA - SOLIDÃO - ABANDONO não é explícita e pretende que eu aceite que a violência não existiu. Se eu não aceitar ele pode chorar, gritar e negar até a morte, além de criar o grande mal estar que se instaura quando o racismo é denunciado.

SOBRE OS LADOS DA FORÇA
Curioso pensar que nós, "do lado certo" (mais à esquerda), não temos coesão nenhuma. Que a coesão e inconsistência da direita quase chegam a causar inveja. Mas não, não. É impossível "desver".

"Entre direita e esquerda eu contínuo Preta", disse Sueli Carneiro certa vez, à Caros Amigos. É isso, sou sempre mulher-Preta, as duas características juntas. As pessoas brancas podem não acreditar conscientemente nessa relação, não importa, mas elas ditam regras do que é melhor eu fazer "porque sim". Apenas.

Mulheres (como categoria social) não têm "ovos", "colhões" (não me refiro à biologia, mas ao símbolo) e, portanto, não precisam enfatizar seus órgãos sexuais, o seu poder de colonizar. Sua necessidade de dizer que Hellowen não é o meu lugar. De orientar a minha militância, já que o Saci é negro. É como se eu tivesse sendo barrada numa entrada. Como se tivessem solicitado credenciais.

Ou eu sou obrigada a glorificar aquela figura, se eu não quiser que a minha militância seja questionada. Engraçado que cair no descrédito é fácil. Na perspectiva dele, eu tenho que aceitar o projeto de nação caso eu queira acessar o direito de existir. E, acaso, ele sabe o que eu acho de Halloween e do Dia do Saci? Não, ele não sabe, não se importa e, o pior, automaticamente, seus olhos me leem como não autônoma, não pensante: como Mulher Preta, tal como os predecessores dele, os Iluministas, por exemplo. Ou nossos colegas filósofos.

Olha que tal:

1. Ele acha que preto tem que se reafirmar (+), mas (-)
2. Ele (branco/homem) está sitiando o meu direcionamento político porque sou Preta/mulher (-)

3)Ele tentou me realocar na nação branca "dos híbridos" em nível simbólico. Em absência, ele disse que eu não posso desejar ameaçar o poder. Ele afirmou que não posso pertencer. Afirmar que sou Preta serve pra me excluir duma modalidade de diversão e, ao mesmo tempo, me encarcerar numa lógica colonial. O garoto (o homem infantilizado) mutilado física e psicologicamente é tudo o que o homem-feito da afirmação deseja que eu seja. Só que ele ainda quer mais, quer que eu seja tudo isso, porém mulher, porém calada no lugar que ele deu pra eu me fixar.

Esse modo de estar "mais à esquerda" não se preocupa em questionar as instituições no sentido de Projeto de Modernidade que se estabelece nas Pós Colônias. É só "Brasília é linda" e "Brasília é excludente" e a "crítica" morre aí. Estar do lado "certo" é suficiente para fixar sua política cotidiana passando por cima de subjetividades com o seu trator de privilégios.

Em vez disso que ele me ofereceu, eu posso encarar a falta de responsabilidade e empatia que ele demonstra. Isso graças à consciência do mecanismo de silenciamento que dá vida ao racismo cotidiano. Eu posso me firmar nas imagens positivas e, assim, ter certeza de que "O que parece errado, geralmente está". Essa disjunção, esse afirmar-negar no mesmo ato, é o tipo de estratégia que não funciona mais quando compreendemos conscientemente. Não existe desver. Não preciso pensar nas razões pelas quais a Shingai Shoniwa me inspira, sua imagem diz muito sobre emancipação das performances de negritude [2] que brancos tanto gostam e sobre agenciamento, isto é, sobre agir por você mesma.

Shingai Shoniwa: cantora, compositora e baixista da banda inglesa The Noisettes.

Minha opção é:

E) Você não entendeu, você está errado: eu sou quem eu quiser, eu me identifico com o que eu quiser. Você não tem domínio sobre mim, independente dos muxoxos e de sua carga interdisciplinar. Eu me identifico com a frase de Grada Kilomba (2010):

Importamos [imagens] porque é empoderador.

Grada Kilomba

A esquerda tradicional e nacionalista tem uma vontade de reafirmar a brasilidade de forma romântica, oitocentista, abraçando a bandeira, morrendo pela fraternité. Sem pensar que símbolos como o "Saci", o "Negrinho do Pastoreiro" e o "canto das três raças" só são bons (=neutros) pra ele que ressalta. Nesses mitos, o negro e a Negra não são reconhecidos como escravizados, em vez disso, são eternizados como seres naturalmente escravos. Nós não somos obrigadas/os a nos fixarmos em imagens de resignação, crime, sofrimento e exploração.

Óbvio que temos um contexto, uma língua e uma história que não são intercambiáveis. O ponto é que "Cidade de Deus" não empodera mulher Negra nenhuma. A Globeleza não empodera ninguém. Chica da Silva só aparece como a grande Jezebel. E, alias, Chiquinha Gonzaga é globalmente a eternamente amedrontada "namoradinha do Brasil"... branca.

Como vemos, ou embranquece ou banha de crime, pecado e maldade.
Você quer ser isso? Eu não.
Então vamos de Dandara, Shonda Rhimes, Beyoncè, Oprah, Shingai Shoniwa, Michelle Obama, Grada Kilomba, Beatriz do Nascimento, Viola Davis, Ava DuVernay, Angela Davis, Patricia Hill Collins, Audre Lorde, Tempestade, Afua Richardson, Nina Simone. E quantas lembrarmos.

CONCLUSÃO
Essa situação de racismo que eu vivi mostra que pessoas próximas, ativistas, atuantes nos violentam de forma sorrateira e diária. Até que se tenha consciência desse tipo de processo, a investida do/a agressor/a vai fundo na mente de quem sofre e implanta ideias nocivas do que se manifesta como auto-ódio. Este não passa de um engano: uma pessoa negra que perpetua ideias racistas e racialmente engendradas não tem consciência política sobre o seu lugar, porque agir como o opressor NUNCA vai te por em pé de igualdade com ele. Vai apenas te manter abaixo dele, assim como manter o silêncio sobre a violência cometida por ele. O silêncio só salva o agressor, lembrem-se sempre irmãs.

Audre Lorde



NOTAS
[1] o que está sendo discutido aqui não é a legitimidade ou não do Saci como símbolo de negritude, mas a tentativa de enclausuramento da negritude neste símbolo. Obviamente tenho uma opinião contrária aos símbolos nacionalistas porque nada mais são que a incorporação de fantasias coloniais, quando se trata de pessoas negras. O Saci pra ser um signo de negritude tem que ser muito descolonizado, porque ele não apresenta valores positivos para as crianças. É tão humilhante quanto a Tia Anastácia porque está encarcerado na escravidão como escravo (inerentemente), ou seja, é destituído da historicidade, da violência e a escravização.
[2] Segundo Grace D. Gipson (2012), citando DuBois, a performance de negritude é exatamente o comportamento de um indivíduo negro que se vê sem lugar e, como alternativa de sobrevivência, performa o que os brancos gostariam que performasse (estereótipos): rapper, hipersexualidade, hiperforça, humor, selvageria, não entendimento...Trata-se dum processo de Dupla consciência, ter ciência de si, mas agir pela ideia que o outro faz de você. Em suma: se não performa o "negro que elxs querem" você não pode falar, mas se performar tem alguma chance. É um grande engano, como todo o castelo de cartas racista/sexista/classista, afinal, "agir como se fosse" mostra bem a impossibilidade de "ser igual".



REFERÊNCIAS
GIPSON, Grace D. Performance of Blackness/Whiteness and DuBois’ Double-Consciousness in the film Bamboozled. Acesso em 28 nov. 15.
KILOMBA, Grada. Plantation Memories: episodes of everyday racism. Budapeste: Unrast, 2010.
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