#PretaRead: Classe e raça no início da campanha pelos direitos das mulheres


#PretaRead: Classe e raça no início da campanha pelos direitos das mulheres
por Naira Évine

Nesse capítulo, Angela Davis já traz à tona um caso que ocorreu e 1840 e, a meu ver, é muito interessante observar a semelhança com tantos casos que ocorrem ainda hoje, de pessoas que chegam à militância e esquecem que muitas pessoas vieram antes e lutaram tanto quanto. É necessário que haja um respeito aos mais velhos. Ela conta que Stanton viajara para Londres com seu marido para a Convenção Antiescravagista Mundial e a partir dessa sua primeira reunião antiescravagista como esposa de um líder abolicionista, anos depois ela escreveu:

Começava assim, e ali, o trabalho missionário pela emancipação da mulher na “terra dos livres e lar dos valentes.
(...)
Quando ela escreveu (com Susan B. Anthony, em History of Woman Suffrage [História do sufrágio feminino]) que, durante sua conversa com Lucretia Mott, em 1840, 'começava assim, e ali, o trabalho missionário pela emancipação da mulher', seus comentários não levaram em consideração as lições acumuladas ao longo de quase uma década, durante a qual as abolicionistas lutaram por sua emancipação política enquanto mulheres.

(p.58)

Apesar de não terem suas pautas levadas à frente nessa convenção, foi a partir de muitos anos de luta que elas conseguiram aliados homens, como por exemplo William Lloyd Garrison e Nathaniel P. Rogers. Davis alerta que o fato do abolicionista negro Charles Remond não ser citado por Stanton em seus escritos é um fato intrigante, pois segundo o mesmo ele tinha motivos de sobra para defendê-las e questionar essa exclusão por parte dos homens, afinal ele só estava ali porque muitas mulheres pagaram sua viagem. Inclusive cita que recusou sua cadeira na convenção por conta disso.

Angela Davis conta um pouco sobre a vida de Stanton que, resumidamente, era filha de um juiz conservador, que estudou grego, matemática e cavalgava, mesmo sendo atividades exclusivamente masculinas. Além disso, antes de casar, ela estava estudando direito com seu pai e após o casamento e até mesmo a convenção citada anteriormente, ela se tornara uma dona de casa, esposa, mãe e “nem sempre conseguia contratar empregadas domésticas”, pois eram raras em Seneca Falls, Nova York, onde residia.

A vida de Elizabeth Cady Stanton apresentava todos os elementos básicos do dilema de uma mulher branca de classe média em seus aspectos mais contraditórios. Sua dedicação para obter os melhores resultados acadêmicos, o conhecimento adquirido como estudante de direito e todas as outras atitudes adotadas para cultivar sua força intelectual – tudo isso havia sido em vão. Casamento e maternidade a impediram de alcançar os objetivos que ela havia definido para si mesma quando era solteira.

(p.60)

Por isso, em 1848, oito anos depois da convenção, após contatar com Lucretia Mott (que não se viam desde então) e falar de sua vida doméstica, decidiu organizar a primeira convenção pelos direitos das mulheres em Seneca Falls. Ela percebeu a partir do exemplo da luta antiescravagista que era possível batalhar pela igualdade.

A partir daí, a história parte para uma outra fase: O Sufrágio Feminino. Stanton destacava que reivindicar o direito do voto das mulheres era algo necessário, mesmo com muitas pessoas discordando, como seu marido que prometeu – e cumpriu – sair da cidade caso ela tentasse, Lucretia Mott achou excessivamente radical e a única figura pública que esteve apoiando desde o início foi Frederick Douglass. Ele cita que não haviam argumentos contundentes para rebater essa proposta, como ele mesmo cita:

Se a inteligência é a única base verdadeira e racional para um governo, conclui-se que o melhor governo é aquele que extrai sua existência e seu poder das maiores fontes de sabedoria, energia e bondade à sua disposição.

(p. 61)

Dentre as cerca de trezentas pessoas que compareceram na Convenção de Seneca Falls, pouco a pouco as mulheres foram retirando seus nomes e apoio à causa, afinal a imprensa, os cleros, dentre outros poderes persuadiam todos e todas de que aquilo era um absurdo. Mesmo com a figura masculina do Frederick Douglass à frente apoiando seja através da sua oratória ou do seu jornal, não era fácil ter tantos apoios. Douglass cita no seu texto "The Rights of Women":

(...) não há no mundo nenhum motivo para negar à mulher o exercício do direito de votar ou a participação na criação e na administração da lei do país.

(p.62)

Em dado momento, a autora faz o questionamento, "Mas por que tudo isso?" em relação a resumir a luta das mulheres (de todas as mulheres, no caso) no sufrágio e logo depois responde com questionando:

Enquanto consumação exata da consciência do dilema das mulheres brancas de classe média, a declaração ignorava totalmente a difícil situação das mulheres brancas da classe trabalhadora, bem como a condição das mulheres negras tanto do Sul, quanto do Norte. Em outras palavras, a Declaração de Seneca Falls propunha uma análise da condição feminina sem considerar as circunstancias das mulheres que não pertenciam à classe social das autoras do documento.

(p.64)

Alguma semelhança com os tempos atuais?

A partir daí a autora traz diversos questionamentos às mulheres que se preocupavam tanto com o sufrágio que esquecem, por exemplo, que mulheres brancas também estavam no proletariado passando, há décadas, por situações terrivelmente desumanas. Ela questiona se o sufrágio é tão importante quanto a vida das mulheres que trabalharam como maioria da mão de obra nos anos de 1830 quando a indústria têxtil ainda era o principal setor da Revolução Industrial. Quando a convenção de Seneca Falls nem era imaginada, essas mulheres organizaram paralisações e greves contra as opressões de gênero e classe que sofriam. Angela Davis afirma que "elas mais do que mereciam o direito de serem enaltecidas como precursoras do movimento de mulheres". Mas houve uma trabalhadora que, de todas as mulheres presentes na Convenção de Seneca Falls, fora a única a exercer o direito de voto, ela se chamou Charlotte Woodward. "Ao comparecer à convenção, seu objetivo era buscar conselhos sobre como melhorar sua condição de trabalhadora". (p.66) Como a própria disse:

Eu queria trabalhar, mas queria escolher meu serviço e receber meus pagamentos. Era uma forma de rebeldia contra a vida em que nasci” (p.67).
"O fato de uma mulher branca associada ao movimento antiescravagista pudesse adotar tal postura racista contra uma menina negra no Norte refletia uma enorme fraqueza da campanha abolicionista: seu fracasso em promover uma ampla conscientização antirracista. Essa grave deficiência, largamente criticada pelas irmãs Grimké e outras líderes, infelizemnte foi transferida para o movimento organizado dos direitos das mulheres" (p. 69).
"As líderes do movimento pelos direitos das mulheres não suspeitavam que a escravização da população negra no Sul, a exploração econômica da mão de obra no Norte e a opressão social das mulheres estivessem relacionadas de forma sistemática.

(p.75)


A partir desses questionamentos trazidos por mulheres brancas pobres que foi colocado também como meta do movimento a igualdade no mercado de trabalho. Se entender a questão de classe entre as mulheres brancas já foi algo difícil, imagina entender sobre as particularidades de outras mulheres, como as negras. Não houve nenhuma mulher negra participando das conferências em Seneca Falls, muito menos menção àquelas que ainda sofriam com as consequências da escravidão e com o racismo cotidiano de norte a sul do país. Não por menos que em 1837 as irmãs Grimké já haviam exposto o racismo aristocrático dessas mulheres brancas.

Outro ponto em comum nas lutas anteriores tanto de mulheres brancas quanto de mulheres negras era o direito à educação. Mesmo tendo sido uma batalha de anos, tendo exemplos como a professora Prudence Crandall, infelizmente não foi mencionado sobre isso na convenção. Um caso que chama a atenção teve como vítima a filha de Frederick Douglass, pois ironicamente, fora proibida de assistir as aulas com as colegas brancas. A diretora a frente dessa ordem era abolicionista. A partir daí podemos refletir que havia uma deficiência de conscientizações tanto no movimento de mulheres quanto o abolicionista.

Agora vem uma das partes que acho mais interessante do capítulo. Dois anos após a convenção em Seneca Falls, aconteceu a Primeira Convenção Nacional dos Direitos das Mulheres em Massachusetts e, por iniciativa própria ou a convite de alguém, o que não importa, lá estava presente a Sojourner Truth. Homens hostis à luta também se faziam presentes e ao som de vaias e agressividades, foi ela quem "salvou" o evento.

O líder dos provocadores afirmou que era ridículo que as mulheres desejassem votar já que não podiam sequer pular uma poça ou embarcar em uma carruagem sem a ajuda de um homem. Com simplicidade persuasiva, Soujourner Truth apontou que ela mesma nunca havia sido ajudada a pular poças de lama ou a subir em carruagens. "Não sou eu uma mulher?" Com uma voz que soava como "o eco de um trovão", ela disse: "Olhe pra mim! Olhe para o meu braço", e levantou a manga para revelar a "extraordinária força muscular" de seu braço.

(p.71)

Claro que todo seu discurso que refutava tanto os argumentos da supremacia masculina, quanto dos argumentos baseados no cristianismo não era voltado apenas aos homens em questão, mas também à todas aquelas mulheres brancas que apesar de celebrar seu feito, foram contra a presença daquela mulher negra e alta no palco com o direito à fala. Com essa pergunta, Soujourner também expôs "o viés de classe e o racismo do novo movimento de mulheres" (p. 73).


Como uma mulher negra marxista, para Angela Davis é imprescindível que se pense no capitalismo também como um sistema de opressão o que, para a época, era meio absurdo. Muitos abolicionistas eram totalmente contra todas as manifestações vindas de pessoas do proletariado. "Como regra, pessoas brancas abolicionistas ou defendiam os capitalistas industriais ou não demonstravam nenhuma consciência de identidade de classe" (p. 75), esse tipo de pensamento e atitude estava intrínseco também no movimento das mulheres.

No final do livro a autora se concentra nos acontecimentos do período da guerra civil, no qual as mulheres foram convencidas a apoiar a causa da União e nessa defesa país afora elas perceberam que se há algo que unia os Estados Unidos inteiro, essa opressão se chama racismo. E finalizo com uma fala da Angelina da Grimké ao defender que todos esses movimentos deveriam juntar forças e responder à resolução proposta por Susan B. Anthony de associar os direitos das mulheres à libertação do povo negro.

Alegro-me imensamente que a resolução nos una ao negro. Sinto que estivemos com ele; que o ferro entro em nossa alma. Verdade, nós não sentimos o açoite do senhor dos escravos! Verdade, não tivemos nossas mãos algemadas, mas nosso coração foi arrasado.

(p. 77)

DAVIS, Angela. Classe e raça no início da campanha pelos direitos das mulheres. (In) DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 57-78.
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