"É uma questão de narrativa": Lesbianidade e Mídia

"Os patriarcas brancos nos disseram:
penso, logo existo. A mãe Negra dentro
de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos:
eu sinto, portanto eu posso ser livre."

Audre Lorde

Nos negam a tal liberdade a partir do momento que nascemos com uma vagina. Pouco a pouco, ela é negada de nós por diversos ambientes, seja dentro do núcleo familiar, da igreja, escola ou comunidade. Nos colocam em caixinhas e somos obrigadas a ser algo que nem sequer podemos opinar, querer ou não, somos convencidas a gostar de coisas que também não nos explicam o porquê. Ser designada mulher numa sociedade machista é ser vítima cotidianamente de todo patriarcado que nos impõe feminilidade, heterossexualidade e cisgeneridade compulsória e branqueamento como um ideal de vida. Desde pequenas nos colocam umas contra outras, aprendemos que um par é um menino e uma menina.

Me coloco aqui como uma mulher nordestina negra e lésbica que acredita, assim como Audre Lorde, que uma característica é indissociável da outra, minha identidade é tudo isso e um pouco mais. Não se divide, não há hierarquia. Sou também comunicóloga, cineasta, pesquisadora, nerd e tenho um relacionamento de amor e ódio pela mídia. Por conta disso tudo que decidi, nesse mês da visibilidade lésbica, discorrer aqui alguns aspectos que julgo ser importante quando se trata de lesbianidade na mídia.

Mídia é um conjunto de meios de comunicação que transmitem informações, ideias, ideais, produtos, entre tantas outras coisas. Nós estamos cercadas de conteúdos midiáticos, já não sabemos ao certo se a arte imita a vida ou seria o contrário, pois chegamos a um ponto que a internet, a televisão, a publicidade molda nossa vida e nosso dia a dia.

No Brasil, como explica Almada (2012, p.26), os meios de comunicação são produzidos e geridos pelos mesmos grupos sociais que há séculos goza de privilégios e fazem questão de continuar perpetuando e legitimando o lugar do outro com mitos e estereótipos, afinal isso continua favorecendo essa estruturas. Tudo isso está fixado no imaginário coletivo e senso comum, afinal não foram ditos e naturalizados em um dia ou um ano, há séculos que diversos aparatos, inclusive a mídia, constroem padrões e definem os lugares dos grupos sociais.

Freire Filho (2004) defende que os estereótipos existem para manter e reproduzir relações de poder, desigualdade e exploração, assim como, para justificar comportamentos hostis ou até letais dentro da sociedade. Assim sendo, existe o padrão e o outro, o normal e o anormal. E claro que a culpa também é sua se você não se embranqueceu o suficiente, ou se esforçou para ser rica e heterossexual né? Meritocracia tá aí pra isso. Não por menos que um grande número de mulheres lésbicas são convencidas desde pequenas que ser heterossexual é normal e tudo que desvirtui disso, é errado, portanto seus desejos devem ser ainda mais reprimidos, ninguém pode saber disso, caso saibam, você será tratada como uma piada, igual a moça da novela.

Rich (1993), explana melhor sobre essa heterossexualidade compulsória:

[...] as mulheres têm sido convencidas de que o casamento e a orientação sexual voltada aos homens são vistos como inevitáveis componentes de suas vidas – mesmo se
opressivos e não satisfatórios. O cinto de castidade, o casamento infantil, o apagamento da existência lésbica (exceto quando vista como exótica ou perversa) na arte, na literatura e no cinema e a idealização do amor romântico e do casamento heterossexual são algumas das formas óbvias de compulsão, as duas primeiras expressando força física, as duas outras expressando o controle da consciência feminina.

(RICH. 1993)

Não é uma preocupação mercadológica e midiática que a mulher lésbica e suas nuances sejam visibilizadas de maneira verossímil. Trago aqui mais uma vez os dados da pesquisa que fiz na conclusão da minha especialização. Nela, notamos que, mesmo com o maior aparecimento de personagens com arquétipos LGBT nas telenovelas da Rede Globo, (pesquisei nessa emissora por ser a de maior audiência no Brasil) nos últimos anos, esses personagens tem gênero e cor muito bem marcados:

1970 – 2016:

  • 80 novelas
  • 156 personagens LGBT
  • 88 gays (5 negros)
  • 28 lésbicas (0 negras)
  • 03 Travestis (1 negra)
  • 09 Mulheres Trans (1 negra)
  • 35 Bissexuais (9 mulheres – 1 negra)

Utilizo então o questionamento de LOURO (2008) para nos inspirar nesse debate:

A pluralidade de identidades e de práticas amorosas e sexuais parece, hoje, mais visível. O que tal visibilidade indicaria? Que os ventos do “novo milênio” terminaram com as diferenças, saudando a multiplicidade? Que se aceita que as posições de gênero e de sexualidade não cabem mais nos esquemas binários? (...) Uma série de condições culturais, sociais, políticas, econômicas vem, desde algumas décadas, possibilitando a multiplicação dos discursos sobre a sexualidade, produzindo a visibilidade das muitas formas de ser, de amar e de viver, embora se mantenham, de modo renovado, divisões, hierarquias, diferenciações. O cinema participa, também, deste processo.

(LOURO, 2008)

Não concordo que estar visível significa, por si só, uma boa representação. LGBTs, na sua maioria, gays brancos e ricos, tem aparecido em telenovelas, filmes, séries, protagonizando e dirigindo produções de grande porte. Em contrapartida, LGBTs negros (ou mesmo as siglas LBT) são quase inexistentes e suas pautas não são lidas como tão importantes. É uma questão de narrativa, não basta pôr, a mesma preocupação que se tem para manter a branquitude ou a heterossexualidade compulsória como algo normal e natural, deve ter com qualquer outra minoria. Colocar personagens como Tamanco (Mart'nália) de Pé na Cova, que não tem sua sexualidade definida, e quando se fala, é de forma ridicularizada, só serve para reforçar as mesmas violências cotidianas. O riso pode ser espontâneo e gostoso, mesmo sem oprimir alguma classe. Não por menos que precisamos estar na frente e por trás das produções.

Agosto está se findando e, com ele, o mês da visibilidade lésbica. Infelizmente, ano após ano, as mudanças tem sido pequenas para o grupo. Nós precisamos ocupar os espaços que pertencemos, as próximas gerações agradecem, da mesma forma que agradecemos às mais velhas. Como nosso assunto aqui foi mídia, vale salientar que muitas de nós existem e resistem no mercado cinematográfico, televisivo, online, publicitário, fonográfico e artístico como um todo. Consumir conteúdo que nos represente é essencial, vamos e precisamos nos fortalecer. Força, sapatão!

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Annie Gonzaga é grafiteira em Salvador

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Asami e Korra em A Lenda de Korra. Apesar da sexualidade de ambas não ter sido
exposta pela série, porque ambas se envolveram com homens antes de se relacionarem
amorosamente, elas formam um casal lindo.

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Rubi e Safira formam a fusão Garnet em Steven Universe

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Amanita e Nomi formam um casal na série Sense8

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Luena e Tchyssola foram o primeiro casal homoafetivo na novela angola Windeck, exibida em 2015 pela TV Brasil

Beliza Buzzolo é uma cartunista brasileira e criadora das tirinhas Na Ponta da Língua que fala sobre o universo lésbico

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Xena e Gabrielle faziam parte da série neozelandesa nos anos 90.
Apesar de não se falar nelas duas como casal, julgo ser importante citá-las.

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Ellen Oléria e sua esposa, Poliana. A primeira é cantora e
apresentadora brasileira e assumidamente lésbica. 

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Cassia Eller, Maria Eugênia (esposa) e Chicão (filho). Após a morte da cantora,
sua esposa precisou brigar na justiça pela guarda do filho, isso numa época que
ainda não se falava abertamente sobre famílias homoafetivas. 

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Leci Brandão, sambista negra e lésbica. 

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"Marias do Brejo", canal no youtube de um casal formado por uma mulher lésbica e uma bissexual.

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Jessica Tauane do Canal das Bee.

Referências:
ALMADA, Sandra. Prefácio. In: BORGES, R. C. S; BORGES, R. (Orgs.). Mídia e racismo. Coleção Negras e Negros: Pesquisas e Debates. Coordenação: Tânia Maria Pedroso Müller. Petrópolis, RJ: DP ET Alii. Brasília, DF: ABPN, 2012. (Compre aqui!)
FREIRE FILHO, J. Mídia, estereótipo e representação das minorias. Eco-Pós, v.7, p. 45-71, agosto-dezembro 2004.
RICH, A. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In: GELP, Barbara C.; GELP, Albert (Org.). Adrienne Rich's Poetry and Prose. New York/London: W.W. Norton & Company, 1993. (Compre aqui!)
LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições [online]. 2008, vol.19, n.2, pp.17-23.
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