Detective Comics #1: O Renascimento matou a Batwoman?


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Kate Kane, a maravilhosa Batwoman


"O que aconteceria se todos esses super-heróis machões saíssem do armário? "  
(Grant Morrison)


DOS NOVOS 52 AO RENASCIMENTO


Admito que fui entusiasta e Totalmente absorvida pela proposta de renovação conhecida como Novos 52 em 2011. A ideia de finalmente entender o Universo DC e de ver heroínas que adorava se tornarem linha A, foi tentadora. Inicialmente, as mudanças foram contundentes: a DC finalmente trouxe a pluralidade de vozes (experiências, visões de mundo) tanto para as equipes criativas quanto para os títulos (nem todas nós vimos por aqui). Acompanhei a Liga da Justiça Sombria (Justice League Dark) até o preço ficar absurdo se comparado à qualidade de papel, da história e do mix, e as scans do que eu não sabia que estava sendo publicado no Brasil (problemas do mixes conjugado à ineficácia da divulgação). O público quer comprar, mas são um tanto abusivas as condições de consumo (atraso de um ano, muita coisa não chega a nós, o papel é de qualidade inferior, mixes terríveis, preços desproporcionais...).

Mas sim, meus xodós dos Novos 52 foram a Batgirl roteirizada por Gail Simone e a continuidade da Batwoman vista na aclamada minissérie Elegy (Detective Comics # 854 - #860) roteirizada por Greg Rucka e arte de J.H. Williams III. A combinação desses dois, revolucionou a existência da personagem não apenas em concebê-la como heroína lésbica, mas também pela qualidade da narrativa a ponto de se conectar com nossos sentidos. Já em Batwoman dos Novos 52, o plot do arco Hydrology mistura super-heroísmo, suspense sobrenatural e detetivesco enquanto os requadros se encaixam de forma criativa, interagindo com o a sequência. Reintrâncias são trabalhadas visual e narrativamente em páginas inteiras de modo que retoma aquela sensação causada pelas apropriações modernistas de Dave Mckean em Sandman. As cores também são um destaque a parte, principalmente se compararmos as scans e as impressões. Há uma variação de vermelho e azul em Hydrology parecida com Saga, que dá um tom particular à história.


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Hydrology #1 (19 de junho de 2012)
  

Sobre meu recorte da bat-família, diria que o pontos altos de ler as duas garotas é a interação tensa entre elas, e o que há de verdade em suas interpretações da realidade. Ler primeiro a Batgirl e depois a Batwoman é uma experiência próxima à sensação de assistir Scandal e depois How To Get Away With Murder. Conhecendo ambos os pontos de vista, juntamos quebra-cabeças, mas vou me ater à Batwoman dada a sua importância no título de abertura da revista Renascimento Detective Comics.

QUEM É A BATWOMAN DAS HQ?


O fato de Kate Kane ser lésbica, em si, é uma ironia em relação à história da personagem e, principalmente, a do próprio Batman. A alegação de "homossexualidade psicológica" imputada ao Homem-Morcego pelo autor de O silêncio dos inocentes (Frederic Wertham), na década de 1950 ,forçou o criador do Batman (Bob Kane) a criar uma solução previsível: arrumar uma namorada para aquele adulto solteiro. Àquela altura ela era a Kathy Kane, uma acrobata um tanto inexpressiva, segundo Grant Morrison. Apesar de ela ter acompanhado as eras seguintes (Prata e Bronze), sua real renovação aconteceu em Elegy (2009-2010), com a justaposição de sua história de origem, a dificuldade de administrar a vida ordinária e o super heroísmo além de encarar sua supervilã e espelho: Alice. Espelho, aliás, é um elemento recorrente, tanto na forma como as imagens são craqueladas, como no aspecto emocional que se duplica e se fragmenta com igual propriedade.

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 Elegy (Detective Comics # 854 )
roteiro de Greg Rucka e arte de J.H. Williams III.

Um dos aspectos mais interessantes de sua personalidade é a insubordinação ao Batman e, portanto, da ideia de divindade nutrida sobre a tríade DC (Batman, Mulher-Maravilha e Superman). Sobre isso, é interessante a edição em que Batwoman encontra Diana e vemos o contraste entre a divindade luminosa da Mulher-Maravilha e a escolha de Kate (que é judia) por performar uma especie de Lilith, de outsider múltipla. O mundo que Kate enfrenta é muito mais sombrio que qualquer outro da bat-familia, e, se você der uma olhada no seu sorriso, perceberá que ela se propõe a ser um mal superior a qualquer outro. 

Curioso que sua injusta expulsão da Marinha (devido à homossexualidade), assim como outras violências, fez dela uma pessoa comprometida com a justiça, mas sem que seja necessário pra isso medidas absurdas (e nada heroicas) como bater em crianças (que é a justiça do Batman Cavaleiro das Trevas). Assim com Bruce (de quem é prima) ela tem responsabilidade na manutenção da desigualdade social porque é uma socialite, mas diferente dele, Kate não é a ricaça entendiada e seduzida por bater em pessoas marginalizadas. É muito claro que em Gotham o mal concreto é gerenciado pelo abismo social de Wayne, mas Kate luta contra o mal sobrenatural.

Não podemos ignorar que o fato de ela ser o total oposto de Bruce Wayne, numa mesma Gotham, tangencia o tema da loucura feminina, porque é difícil ter certeza sobre aquilo tudo ser "real" no contexto ou apenas "delírios". Ainda assim, o vermelho liga uma face à outra: a vida civil é fosca, tons-pastel e cartunesca, enquanto a atividade de heroína é brilhante, preta, vermelha e com sua pele marcadamente pálida. Outra crítica recorrente é o fato de ela ser uma "lésbica femme" ou "lipistik", isto é, que reafirma a "feminilidade" padrão, ao passo que se relaciona com uma policial que tem traços interpretados em nossa cultura como "maculinizados". Essa crítica, alicerçada em fundamentos do feminismo de terceira onda, é relevante porque a performatividade da personagem sustenta as crenças e práticas das pessoas que consomem este quadrinho, afora que compactua com o  silêncio sobre a experiência queer / não-binária.  

"Gostaria, é claro, que fossem dadas oportunidades para artistas que pertencem a minorias sociais para roteirizar, falar e desenhar sobre temas além de seu pertencimento"
Essas contradições, excessos e faltas faz da personagem uma heroína fascinante, complexa e menos previsível que a maioria. Suas questões, os requadros e o ritmo das histórias me absorveram ao longo das edições, até que a polêmica sobre a a interferência editoral (e posicionamento conservador da DC no twitter) de não permitir o casamento entre Kate e sua namorada Maggie Sawyer. Em resposta a isso, os escritores W. Haden Blackman and J.H. Williams III decidiram sair da equipe criativa na edição #26. Eu aproveitei e saí também. Até agora.

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Detective Comics #1 (abril/2017)
originalmente publicada em Detective Comics #934 (agosto/2016)
Roteiro de James Tynion, Desenhos de Eddy Barrows, Arte Final de Éber Ferreira, Cores de Adriano Lucas.


RENASCIDA "EM IRONIAS"


A edição de estreia da Detective Comics #1 (abril de 2017 no Brasil) fez renascer uma versão da Batwoman que gerou um anticlímax pra mim. O "renascer" foi uma renovação apática, se comparada à anterior. E olha, eu sei que a arte e a profundidade dos roteiros que propiciaram a escalonada para a linha A fez da Batwoman de Rucka e Williams III (e até a de Blackman) difícil de ser superada. E se a autoria fosse duma pessoa não-binária? E se fosse uma mulher lésbica? Gostaria, é claro, que fossem dadas oportunidades para artistas que pertencem a minorias sociais para roteirizar, falar e desenhar sobre temas além de seu pertencimento. Espera-se de nós que vocalizemos uma multidão e isso se estende para a personagem. A escassez de personagens LGBT no universo dos super-heróis faz com que desejemos ver refletida em Kate Kane um avanço que, muitas vezes não encontramos no mundo real. Isso é frustrante, mas nada é tão frustrante quanto a Batwoman renascida.

Na revista RENASCIMENTO - Batman: Detective Comics #1 temos as edições (no Brasil o mensal corresponde às quinzenais dos EUA) #934 e #935 em que Batwoman assume a função primordial na bat-familia semelhante àquela projetada desde o início, em 1956. A grande ironia aqui é que, apesar do cabelo raspado de Kate, a "mirada masculina" (the male gaze) atua pra que o público  a reconheça como suporte da feminilidade padrão.

Subsidiária dessa ironia primordial, há o fato de que a personagem criada para provar a heterossexualidade do Homem-Morcego, renasceu no corpo de Kate Kate reivindicando seu lugar de mãe da bat-familia. 

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Os requadros acima são piadas porque:
 1) risíveis porque mamãe e papai morcegos, que tinham interesse divorciados, montaram a equipe maltratando adolescentes
2) o requadro falhou na tentativa de causar terror e retomar o estilo da Batwoman de Williams III


A despeito de sua orientação sexual "desviante" à norma heterossexual, ela mantém nesta história, o papel de gênero presumido "a salvo", tanto assumindo uma relação menos ácida com seu pai (Coronel Kane) e mais colaborativa com o Batman. Uma das coisas que mais senti falta nesta revista foi a das antecipações de Kate Kane. Enquanto nos Novos 52 ela que invadia a casa dos outros, batia no Batman, mal falava, agia sozinha e assumia o manto sem aprovação do Batman ou interesse na bat-familia, Bruce Wayne tentava descobrir a identidade civil dela. Essa superioridade tática e a ênfase na autonomia faziam da Batwoman a personagem mais potente  e complexa da bat-familia, justamente por escolher não pertencer.


Não podemos dizer o mesmo da personagem apropriada pelo roteiro de James Tynion IV. Há muito mais "querer ser o que não é" nesta edição de Detective Comics do que substância e densidade narrativa. A arte também não convence, porque não propõe algo novo, apenas mimetiza o que veio antes. Considerando que, a partir do próximo número, Kate assumirá o lugar do Batman podemos esperar mais ela e menos suas atitudes definidas como reação ao Batman invadindo sua casa e a convocando com uma familiaridade, no mínimo ridícula. 

Não me leve a mal, adoro o Batman, mas não leio mais quadrinhos pra lidar com a arrogância dele sendo acatada sem questionamento. A fragilidade dele por ser quem ele é o torna fluente na linguagem da violência, mas é o questionamento que a Batwoman dos Novos 52 trouxe que revela o que há de mais interessante: o aspecto quebradiço dum ego como o dele. O sequestro no fim da edição é uma boa deixa, mas ainda há muito a melhorar, em especial, em relação à bat-maternidade da Batwoman renascida em ironia. Ou será que uma derradeira morte?


OBRAS CONSULTADAS:
  • GILROY, Andrea, The Epistemology of the Phone Booth: The Superheroic Identity and Queer Theory in Batwoman: Elegy
  • MORRISON, Grant. Superdeuses. Trad. Érico Assis. São Paulo: Seoman, 2012.
  • RICE, Kristen Coppess. Batwoman and Catwoman: Treatment of women in DC Comics. [Tese], Wright State University, 2013.
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