(GUEST) Naquela quarta


por Rosângela Lopes da Silva*


Era uma quarta-feira de uma semana qualquer, dessas que se encompridam em dias que parecem não ter hora para terminar. Exaustos, os ponteiros do relógio seguiam devagar. Já era a oitava vez, talvez nona, que Martha desviava o olhar das tabelas que preenchia entediada para verificar, decepcionada, que o tempo fizera morada nas 11h. Apaixonado, namorava os minutos como se não os quisesse abandonar. Ela, deslizando fortemente os dentes para frente e para trás, pensou ser os apaixonados egoístas. Parou por um instante. Ponderou não ser preciso terminar o trabalho tão rápido. Era meio de semana. Metade do dia.  Quem sabe, metade da vida.
- Por que sempre paro no meio do caminho?
A mesmice dos dias, tão defendida pelos pais para o seu futuro, sufocaram-na de repente. Sempre os mesmos. Repetidos horários para acordar, repetidos horários para dormir. Tudo sempre igual. A mesma mesa, as mesmas tabelas, os mesmos assuntos, os mesmos colegas de trabalho, as mesmas cores, os mesmos sons dos dedos cansados tocando os teclados dos computadores. Os dias se sucedendo como uma eterna manhã nublada de domingo. Tão melancólica. Tão vazia. Perguntava-se como pode os ponteiros do relógio se enamorar do tempo, se demorar tanto em um mesmo lugar.
- Senhora, posso recolher esses papéis?
- Hã?
- Os papéis sobre a sua mesa, senhora.
- Os papéis so... Ah... Sim, por favor!
Ao mover levemente o olhar, viu-se engolida por recortes coloridos, clipes enormes, papéis amassados. À direita, um cesto de lixo completamente cheio.
- Um dia tudo transborda, não é mesmo? Sempre transborda.
- Falou comigo, senhora?
- O quê?
- Nada não, senhora.
Constrangida, desviou subitamente o olhar e, quase sem querer, encontrou no canto esquerdo da mesa um acanhado papel amarelo. Desde as seis, Martha tentava terminar com perfeição a tarefa escrita nele. As letras corridas e emaranhadas gritavam arrogantes: "Refaça as tabelas de preços! A falta de atenção não será tolerada uma outra vez!”.
- Eu sei, pai! Não haverá tolerância uma outra vez, não é mesmo? E já houve algum dia? – Pensou ela ao morder fortemente os lábios impedindo que o pensamento escapasse sonoro.
Desviou o olhar. Colocou uma bolsa azul sobre a mesa. Retirou um pequeno espelho. Contemplou a palidez do rosto e a tristeza nos lábios densos e acinzentados. Coloriu-os de um vermelho intenso. Abriu a segunda gaveta e começou a amaçar cada uma das trinta tabelas que passara o dia anterior digitando. Quando estava próxima do término, passou a rasgar cada folha em pequenos pedaços. Enquanto ouvia o som abafado das partes se distanciando, lembrou-se do que Alice lhe dissera antes de ir. Já havia passado duas semanas desde aquele dia. As palavras, no entanto, se repetiam incessantes: "Tem certeza?". Que poderia ela ter respondido?
À sua frente, alguns papéis eram devorados por um saco azul e passivamente sufocados por um nó dado às pressas. Mordeu ainda mais forte os lábios buscando entender por que ter ficado sem respostas. Talvez não soubesse mesmo o que responder. Ou talvez soubesse, mas escondera as palavras ao constatar o quanto soariam insignificantes. Por mais belas que fossem, elas não levariam embora aquela neblina que a acompanhava desde a infância. Sempre esteve com ela e, ainda que numa quinta ensolarada se recolhesse brevemente para contemplar a brisa, na sexta pela manhã viria sorrateira escondendo o sol.
- Não há certezas. Nunca houve, minha Alice.
- Meu nome não é Ali...
- Ei, por favor, tem como passar o pano sobre a minha mesa? Sem querer, deixei a água cair. – Interrompeu uma voz rouca no fundo do escritório.
- Sim, sem problemas. Já estou terminando aqui.
Sem muita espera, as botas de borracha amarela saíram firmes e barulhentas, uma após a outra, até alcançar a pequena mesa no fundo da sala.  Em pouco tempo, um pano amarelo bebia sedento o líquido que afogava o branco dos papeis. Daquela distância, Marta não pode ver se houve maiores estragos.  Na verdade, fora as mãos negras a conduzir firmes o pequeno pedaço de tecido, nada mais ali prendeu a sua atenção. Não sabe como, mas o vai e vem do tecido, sem avisar, tocou a linha do horizonte desenhada acima das ondas embriagadas pelo sol numa tarde ensolarada de sábado. Sem relutância, o olhar se deixou mover pelo despretensioso ritmo de um vestido amarelo ondeante até cumprir-se naqueles enormes olhos cor de jabuticaba.
- Alice!
 A tarde pareceu se estender em uma Sinfonia de Beethoven. Não entedia de sinfonias ou mesmo de Beethoven. Antes, sentiu, ao vê-la, a mesma sensação que aquela melodia lhe causara certa vez. Sentada sobre o ressalto da janela de seu apartamento, extasiada pelas pequenas luzes fugidias a se esvaecer no vermelho da buzina e dos murmúrios cada vez mais distantes, foi apanhada pelo azul tímido que soou do andar de baixo. Sentiu mesmo que era capaz de tocar cada sopro de vida exalado das notas. Fechou as janelas, deitou no sofá da sala, olhou as linhas do teto, adormeceu. O sorriso de Alice se mostrou tão vivo e intenso quanto aquela sinfonia. 
- O André é mesmo um desastrado, não é mesmo?
- Oi?
- Disse que o André é mesmo um desastrado.
- Sim, ele é.
O amarelo no horizonte emoldurou-se repentinamente. Encobriu-se por prédios e mais prédios até não ser nada mais que um cinza distante e vazio.  Martha procurou novamente o relógio. Onze horas e quarenta e sete minutos. Talvez quarenta e oito. Difícil determinar o lugar exato do ponteiro.
- É complicado ter certeza. É difícil ter certeza. É impossível, Alice. Quando estamos quase a agarrando, já não se sabe se são quarenta e oito ou quarenta e nove minutos.
Em busca de algo a que pudesse se segurar, o olhar encontra no lado esquerdo da sala um pano envelhecido a deslizar com força sobre o chão.
- Alice, você sempre joga água e sabão acima do necessário.
A lembrança veio acompanhada de um sorriso tímido. Escondeu-o rapidamente. Na sala a sua frente, as portas de vidro e as persianas cor de creme inquietas pareciam vigiá-la. Mas, embebecida pelas memórias, convenceu-se de que não havia necessidade de recuar.
- Quanto sabão, arrrrrr!
 Aquele cheiro de sabão em pó. Alice deitada sobre a cerâmica molhada. Aquele olhar. Os olhares. A noite chegando, a noite ficando ao amanhecer, um pano sendo torcido e mergulhado na água embaciada e acinzentada. Nada parecida com as tonalidades de azul, rosa, amarelo e verdes vibrantes que Alice dobrou, meio sem jeito, e guardou na mala cor de vinho. Demorou muito para a nebrina se desfazer dessa última vez. Veio quinta, sábado, segunda, sexta novamente, e nada. Veio novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril e nada dos ipês de maio colorir o dia. A brisa entrou desavisada pela janela e a encontrou no sofá. Martha não sabia ao certo quando deixou a cama e encontrou aconchego ali. Não sabia muito, só não queria ver aquele lindo vestido amarelo perder sua intensidade. Sentindo-se abraçada pela brisa, ajeitou os pés e elevou a coberta até cobrir toda a cabeça.  Ficou lá, até não sentir mais o perfume de sua amada.
- O que eu poderia ter feito?
- Senhora? Oi? Senhora?
- Sim, pois não.
- É meio dia."
- É?"
- Sim, e só preciso arrumar a sua mesa antes de terminar o meu turno. A senhora vai demorar a sair?

Martha, com um sorriso envergonhado, desculpou-se. Olhou profundamente nos olhos daquela mulher a procura de algo que não pode falar, que foi incapaz de pedir. Não poderia, nem a conhecia o bastante. Em um bloco de notas, deixado sobre a mesa, escreveu: "O dia está tão amarelo. Vou nadar!". Sorriu um sorriso demorado, olhou para a lixeira vazia, pegou a bolsa azul e foi. 


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*Rosângela Lopes da Silva é professora do Ensino Médio Básico do estado do Tocantins. Também é mestranda em Literatura na Universidade de Brasília (UnB) com pesquisa em andamento vinculada à linha Representação na Literatura Contemporânea; mais precisamente ao eixo Representação e autorrepresentação de grupos marginalizados na literatura brasileira contemporânea. Possui especialização em Poética da Linguagem: Do signo ao discurso, do verso à prosa (UFT 2012) e graduação em Letras pela Fundação Universidade Federal do Tocantins (2010). Atualmente é integrante do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da UnB.​
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