Quando a palavra é preta sempre!


Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas [...]

Conceição Evaristo (1)

Tatiana Nascimento e seu (preciosíssimo) olhar visionário, isto é, aquariano.

da escuridão de onde vim, pessoas eram marcadas a ferro por serem ditas não-humanas. Sequestradas, escravizadas, estupradas, assassinadas. Parentesco y ancestralidade roubadas. Eu que não sei o nome da mãe da minha bisavó, sei disso por dentro.

Tatiana Nascimento

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Há uns meses atrás, quando titubeava sobre criar esse blog, passei uma semana inteira pensando em como minha amiga Tatiana se identifica simultaneamente com a negritude e a nerdiandade - também o burning hell, de certa forma. Isso porque é mais fácil entender processos a partir de outrem. Eu mesma fui identificada dessa maneira: "A menina que escreve bem, que sabe português, que é inteligente". E, como isso afetou a socialização durante muito tempo, ser nerd foi uma forma de identificação que me desse controle (ou legitimação) disso que é pura resistência ao racismo, segmentada pelo capital cultural e a classe. Identificar-se como "inteligente" é um tipo de centro de gravidade... E fratura-se a razão e a emoção, a mente e o corpo, o texto e a imagem. E como fazemos o dia-logos (2), a amarração ou a sutura entre essas carnes visíveis e invisíveis?

Sob o véu da estética subjaz o caráter político de toda experiência

Márcia Tiburi (2) p.10

Em nossas vidas, tudo é sobre a desmistificação do racismo. Desde o uso de drogas, à legalização do aborto, ao sexo, à socialização, à generosidade, aos afetos. E o centro de gravidade cobra seu preço: ficcional e/ou academicamente. Nesse sentido, a política de Tatiana tem vazão estética em seu blog PALAVRA, PRETA!

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Na teia literária de Carolina Maria de Jesus, Audre Lorde e Conceição Evaristo, temos uma poesia repleta de expressões coloquiais que circundam a vida da autora: a conciliação entre racionalizar e politizar os afetos, visibilizar a lesbiandade Negra, somar o feminismo que percorre o ser a ponto de tornar-se "crise crítica", a matriz africana, a urbanidade permeada de amor à natureza, a jovialidade. Tudo costurado como as fitas coloridas construídas na dança, suturadas como poesia, como necessidade primária, ponte para as outras subjetividades - nunca luxo (3). Notei que a simplicidade da forma e do conteúdo parece uma forma de véu que oculta a alquimia verbal das mais profundas e mais filosofais que eu já li. Plasma desde dentro algo que me atravessa, pela incontrolável ansiedade e angústia: o desejo de autoria (4), ou seja, a vontade de seguir os passos das escritoras que a antecederam e de expressar o que a linguagem falogocêntrica faz parecer inviável.

Vejo três tipos de tendências formais que se mesclam na Palavra Preta: a) a fala comum, coloquial, b)a narrativa em verso, poesia prosaica e c) cenas específicas do cotidiano. Já o conteúdo, creio que é centrado no afeto, entrecruza o feminismo, a sororidade Negra, as confidências, as descobertas e aquilo que nos uniu: a vontade de ter uma banda de rock.

O suporte eletrônico, o layout aparentemente simples oculta o esmero de um livro costurado à mão. um livro das horas

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Enquanto a chamada "alta literatura" se preocupa com experiências específicas que não fazem outra coisa senão (tentar) nos confinar, a literatura da ansiedade, da voracidade e do ódio - "quem tem consciência tem ódio" - se dirigem ao nosso interior como que o conduzindo à própria cosmogonia (pós colônia) em reconstrução. Noutras palavras, o lirismo de Tate grita em uníssono com outras vivências de jovens Negras:

XIRÊ

vi o que as pretas faziam de branco da cabeça aos tornozelos, que nos pés iam descalças
alguém cochichou
“tão ensinando o santo dançar”
intuí:
tão é ensinando corpo a santar.

Escolhi o poema "Xirê", por conta da temática que está em minha genealogia e na minha pele. Trata-se duma palavra em Iorubá que significa roda, é a dança utilizada para a evocação de Orixás. Embora as religiões de matriz africana não façam parte da minha prática, a esteira de influencia marginal(5)que se insere na poesia de Tatiana me deixa surpreendentemente em casa. A extensão, a oitava maior da escala alegre, a surpresa decorrente do fim súbito - tudo isso me chamou pra esse poema. Me chamou pra desvendar.

A voz poética, o eu-poetante, se mistura a outras vozes. A primeira camada é a voz que enxerga numa mescla de pertencer e querer pertencer; a segunda é uma voz interlocutora que diz o que é dado "estão ensinando o santo a dançar", porém, a terceira camada acessa pela intuição o conteúdo oculto: entre o ver e o não ver, fica pouco evidente que é o corpo humano suporte do santo, ele que tem que ser preparado, não o contrário como os "olhos de ver" levam inocentemente a crer. Pra isso o neologismo "santar": um verbo que parece relacionado à expressão "Assentar o santo" que é passar pela iniciação ritualística.

Atravessou-me a subjetividade que intui, que reverencia o mistério, a tradição, mas como neófita que acessa por si mesma algumas das verdades (ainda) não ditas. Então, o mundo insolúvel oferecido pelas convicções políticas - utopias - revela por essa poesia que a solução está nas coisas simples e que elas ocultam o que há de mais sofisticado: a sociedade está em crise com o eu e se contenta com quaisquer respostas prontas, complexas ou não. Xirê DESNUDA que a intensidade e os caminhos tortuosos não são a unívoca solução pro caos. Afinal, a tortura pra redenção não existe na lógica Iorubá. Não uma poesia messiânica que a leitura burguesa esbranquiçada adora num altar.

A tessitura dissonante de Tatiana desafia exatamente pela não pretensão e pela chance de vislumbre para não xs iniciadxs que também compõem o corpo social de resistência. Não iniciadxs que se oferecem a coser - "feias as fadas, lindas as bruxas - conjuntamente a reconstrução dos (abençoados) novos tempos.

*Mais literatura da Tatiana em: histórias de antes do mundo ser mundo



(1) EVARISTO, Conceição. Da calma e do silêncio in Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyal, 2008 p. 70-71.
(2) TIBURI, Márcia; CHUí, Fernando. Diálogo-desenho. São Paulo: Editora Senac, 2010.
(3) Em seu trabalho de traduzir-dar voz às poetas Negras Lésbicas, Tate soma a sua própria voz: "[...] o que fazemos tocadas pela assunção de Audre Lorde (1984b), também poetisa negra lésbica, teórica e ativista, de que poesia não é luxo [...]
(4) Vou ficar devendo a referencia dessa vez.
(5) Refiro-me à tendencia da poesia brasileira, também chamada "mimeógrafo", na década de 1970.
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