Precisamos reconfigurar os limites do horror!
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Momento de grande ambivalência em Corra (Get Out) |
Por Anne Quiangala
Muito antes de eu ter lido As Quatro Estações, Stephen King já era um cidadão típico do norte global: o valentão que intimidava garotas “estranhas” para se sentir melhor consigo mesmo (KING, 2015). Em algum momento, ele entendeu que poderia transformar isso numa discussão profunda com a pitada especulativa e, com ajuda de Tabitha, escreveu Carry: a estranha. Essa conscientização, devido ao alcance da voz de King, foi um ponto de partida relevante para pensarmos amplamente sobre a experiência de terror dum ponto de vista feminino, mas não foi o suficiente, pois o autor continua tendo uma opinião conservadora no que tange a diversidade na representação.
Sem dúvida, as pesquisas e o trabalho de divulgação que as acadêmicas do horror como Ashlee Blackwell e Robin R. Means Coleman são essenciais para termos, não apenas esta conversa como referencial adequado para ler produtos culturais de horror negro e de horror com negros. O problema é que esta perspectiva crítica só nos é apresentada depois de termos consumido a história do horror e os clássicos, de uma perspectiva única.
Gosto de citar o prefácio de As Quatro Estações porque nele, King engajou quem achou que apenas leria histórias de terror numa conversa séria sobre os horrores da humanidade – em especial o holocausto judeu – terem transformado a literatura de horror em algo muito mais leve que o real. Até aquele momento, eu nunca havia parado para pensar sobre a política que envolve o horror, mas pudera: a perspectiva do monstro e do medo socialmente marcados não tinha nem metade do alcance dos filmes, séries, jogos e quadrinhos de terror. O extinto selo Vertigo prometia falar sobre horrores da vida urbana, sobrenatural, temas adultos... mas na maioria das vezes, os problemas sociais relacionados à raça, mais descreviam que discutiam.
A questão é que, durante muito tempo, o ponto de vista de King e de autores com um local social semelhante ao dele representava tudo o que o mainstream queria que entendêssemos de horror, salvo os editores amantes acríticos de Lovecraft, claro - mas, na prática, eles convergem em alguns pontos (qualidade antes de representatividade?). Antes disso, no underground acadêmico, teóricas feministas expandiram bastante a perspectiva da ficção especulativa (o Gótico, Horror, Terror, Ficção Científica) como comentário social, mas também esquecendo que, mesmo nos países desenvolvidos existe mundo para além "dos suburbios".
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Octavia E. Butler está nesta foto. Ela é a única pessoa preta no registro de participantes do workshop de escritores de ficção científica e fantasia da Clarion com Harlan Ellison (sentado), em 1970. © Jay Kay Klein. |
Perspectivas e existências estavam fora das dimensões consideradas, até então, e não apenas pela ausência de sujeitos. Pessoas marcadas como Outro, como diferentes, eram empurradas pra fora da fronteira do horror; elas sempre existiram, mas em um contexto comandado pela lógica excludente, só existiam como o horrífico em si na temática de autores que se determinavam "neutros".
Além de editores de revistas reconhecidos, que ativamente negavam histórias produzidas e/ou protagonizadas por pessoas pretas, havia uma camada mais externa de exclusão.
As perguntas sempre excluíram, desde “o que o homem do norte global teme?” (o sul global codificado na figura do monstro) até “o que a mulher do norte global, impedida de trabalhar, teme”? (as violências do lar). Neste meio tempo, a Segunda Guerra Mundial se tornou o ápice no imaginário dos horrores vividos pela humanidade. Daí o medo passa a atravessar o “humano”. Mas quem, afinal, é humano? E quem é coisa? Outra forma de agrupar é: vidas que importam e corpos que não pesam.
Arrisco dizer que a popularização de teorias pós-coloniais contribuiu para a desnaturalização da ideia de que “humano” é mero sinônimo de “homo sapiens”, bem como marcou “a inominável” branquitude e suas consequências de forma multidisciplinar. Isso revelou ao grande público as lacunas interpretativas no repertório convencional do horror, terror e gótico. Ao deslocar os sujeitos e os questionamentos, o horror precisou ser redimensionado. Já os monstros sociais, precisam ir além de “reconhecer privilégios”: precisam entender que representam monstros pra alguém, e que senso de qualidade estética, o repertório de clássicos e o "gostar" também marcam localização social. Ninguém deve se sentir estável neste lugar, devemos sempre nos perguntar: "o que vem depois?" e agir da forma mais coerente, dialogando com outras perspectivas sobre tudo o que parece básico e natural, como o medo, o horror e o Outro.
Neste sentido, King abriu as portas pra minha reflexão, teóricas como Joanna Russ ampliaram ainda mais meus questionamentos, porém, foi o trabalho de Ashlee Blackwell em seu blog Graveyard Shift Sisters que empurrou de uma vez por todas a produção de mulheres racializadas para o centro de análise de uma forma acessível, criteriosa e comprometida, inclusive, em divulgar a produção de acadêmicas do horror negro. Isso significa que precisamos ir além de consumir as obras, e buscar perspectivas críticas alinhadas com a história, objetivos e interesses do grupo social minorizado em questão.
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A noite dos mortos-vivos é um excelente ponto de partida para pensarmos no quanto o horror é um gênero potente para elaborarmos traumas históricos e seus desdobramentos presentes. |
Tenho certeza que o terror negro de Jordan Peele impactou a sua perspectiva sobre a moldura do gênero horror tanto como a minha. Corra trouxe ao senso comum o fato de que medo e monstro espelham locais de fala, e revelou algumas das questões que a maioria de nós que amamos o terror não estávamos nos fazendo até então. E notemos que, mesmo em Hunters, que é uma série sobre a vingança de judeus contra seus algozes, Peele nos lembra de que horrores reais da humanidade não foram fabricados e nem se restringem ao século XX. A sutileza reside no fato de que ampliar os limites do horror não é sobre “quem sofreu mais”, mas sobre descolonização plena e reparação: a destruição da supremacia. Daí em diante é ouvir, consumir e equilibrar a balança e as molduras na ficção e fora dela!
Em vez de ampliar as fronteiras, deveríamos tornar mais nítidos os problemas e enfrentá-los sem medo. Neste sentido, reconfigurar os limites do horror não é apenas sobre incluir narrativa, corpo e perspectivas "diversas", mas lutar contra o próprio conceito de fronteira, já que é ela quem define o que cabe do excesso. Reconfigurar os limites do horror é implodir e explorar um território novo: amplo e poderoso o bastante para que possamos todas, todes e todos existir.
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