Yu Yu Hakusho: uma análise em três décadas



por Camille Legrand


“Rapadura é doce, mas não é mole não!”. Para muitos o que é visto como uma expressão tipicamente brasileira, pelo menos na região sudeste (de onde escrevo), para outros será o suficiente para abrir a caixa nostálgica da infância. Falo, se é que ainda não perceberam, de um dos diversos animes reproduzidos na televisão brasileira entre o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000: Yu Yu Hakusho. Os jovens adultos de hoje foram moldados pela, referida por muitos, era de ouro da animação japonesa da qual a criação de Yoshihiro Togashi fez parte com impacto não menor e tampouco restrito apenas às (diversas) frases de efeito da dublagem.

Comigo não foi diferente. De todos os animes que já assisti, e foram muitos, Yu Yu Hakusho é um dos quais sempre retorno e ainda hoje me é possível ter algum tipo de identificação. Não é mais possível, entretanto, ignorar as mensagens negativas que a animação reproduziu em sua trama e, assim, necessário é revisitar o mundo e a época de sua primeira exibição até os dias de hoje - bem como ao longo dos meus anos de vida.

1997 - 2 anos: O primeiro episódio de Yu Yu Hakusho é transmitido no Brasil, pela extinta Rede Manchete.

Apesar de tratar de assuntos considerados mais maduros, como morte, violência e questões sobrenaturais, a trama se passa enquanto as personagens ainda estão na escola, assim como a maioria de seu público quando foi transmitido no Brasil. As personalidades e as preocupações mundanas de Yusuke, Kuwabara e Keiko - os que mais são mostrados como adolescentes “comuns” - são plenamente passíveis de identificação por nós, o público. 

Uma característica típica de desenhos do gênero shōnen são as inúmeras lutas que o protagonista precisa passar para ficar mais forte, se desenvolver pessoalmente etc o que, em mais ocasiões do que o aceitável, pode fazer com que o anime fique maçante e pareça longo demais. A vantagem de Yu Yu Hakusho é que, brutalmente falando, ele só tem 112 episódios nos quais as partes de luta e, por conseguinte, de desenvolvimento das personagens, é incrivelmente compilada e otimizada. Não parece haver perdas significativas ao desenvolvimento da história, ressalto que não li o mangá, mas sim uma forma inteligente de juntar partes essenciais ao gênero e a trama do anime.


É o enredo, entretanto, o maior responsável pela conquista do público em razão da entrega de uma história profundamente densa de forma incrivelmente leve e de fácil compreensão. As diversas oportunidades em que Yusuke estava impotente, principalmente ao longo do Torneio das Trevas, em meio às (várias) quase mortes de seus amigos foram difíceis de assistir, bem como as situações de sadismo e demonstração de poder obsessivos de certos personagens da trama.

A série, sem dúvida, tinha uma qualidade inegável. Afinal, as situações - especialmente as batalhas - faziam sentido e eram logicamente explicadas. A parte principal da trama, ou seja, o serviço de Yusuke como detetive sobrenatural e as distintas repercussões dessa situação (desde a sua quase morte prematura) é o que prende e conquista quem se dispõe a ver o anime, assim não há muito tempo para se prestar atenção em outras camadas da história em meio aos agitados episódios.

2008 - 13 anos: O último episódio de Yu Yu Hakusho é exibido, pela última vez, em televisão brasileira.

O mundo, mesmo que sutilmente, havia mudado em dez anos, assim como a maneira como as tramas de animações eram percebidas. Naquele tempo, eu já havia assistido Yu Yu Hakusho por volta de duas vezes e achava um exemplo perfeito de anime de fantasia, no geral.

Uma característica de grande parte dos animes, especialmente do gênero shonen, que sempre me incomodou, no entanto, é como as personagens femininas são raramente relevantes. Na época, inclusive, talvez fosse até pedir demais que estas personagens fossem mais fortes que os personagens masculinos, mas a possibilidade não me parecia absurda aos treze e com certeza não é agora. Não é em vão, e creio que esse é um ponto em comum entre muitas (hoje) mulheres, que sempre me identificava com as personagens masculinas e praticamente nunca com as femininas.

No caso de Yu Yu Hakusho tem-se cinco personagens femininas regulares - e minimamente relevantes - na trama: Mestra Genkai, Keiko Yukimura, Botan, Shizuru Kuwabara e Yukina. Dessas, a única que possui alguma capacidade séria de luta - utilizando poderes ou não - é a Mestra Genkai, a qual, na verdade, treinou o próprio Yusuke. É ela também, aparentemente, uma das únicas três mulheres do mundo espiritual a ter qualquer capacidade de luta, segundo o mostrado ao longo das diversas batalhas retratadas no anime. 

Quanto aos antagonistas, a história não é diferente. Apenas duas mulheres são retratadas como antagonistas no anime: uma é rapidamente derrotada em meio a uma batalha do Torneio das Trevas e outra, também do torneio, é ignorada e parece não oferecer nenhuma ameaça real a qualquer das personagens masculinas. Além delas, em mais uma sub-representação feminina, existem duas comentaristas do torneio cujo papel não se estende a mais do que a simples narrações pontuais - e eventual objetificação - das lutas.


Cada e todo autor tem a liberdade artística de construir a sua história da maneira e com as personagens que desejar, certo é, entretanto que toda história tem o potencial de infelicitar quem a assiste, e com Yu Yu Hakusho não é diferente. A escassez na diversidade e na importância das personagens femininas no anime é uma forma de moldar a visão social acerca do papel de mulheres na sociedade, bem como de estabelecer limites e expectativas das mesmas sobre suas próprias vidas apesar de, teoricamente, estarmos em uma época mais libertária do corpo e do existir femininos. E isso nos leva ao último ponto.

2020 - 25 anos: E como se percebe a trama de Yu Yu Hakusho hoje? 

Sinceramente, não me lembrava muito da trama de Yu Yu Hakusho quando decidi rever esse ano e, com certeza, não me recordava do machismo escrachado presente no anime. Afinal, é evidente que situações que passavam batidas e eram normalizadas não tem - e nem podem ter - o mesmo tratamento do passado.

De início, vamos ao óbvio: o assédio sexual dirigido a Keiko por Yusuke. O machismo, o descaso e a subvalorização das mulheres por todas as personagens masculinas - sim, até o Kurama em algum ponto - é evidente e cotidiano ao longo da trama. Mesmo a Mestra Genkai, a personagem feminina mais importante na história, tem sua força atual (desde sua primeira aparição até o fim do Torneio das Trevas) diversas vezes menosprezada em razão de sua idade e aparência. 

O caso de Keiko é outra face da mesma moeda. Ambos os tratamentos das personagens são, intrinsecamente, resultado da suas condições de mulheres, independente de suas respectivas idades. Não se trata, apesar das tentativas de fãs (igualmente machistas) do anime em provar o contrário, de simples comentários e situações que ocorreriam de igual forma caso qualquer das duas personagens fosse masculina. Como explicar, nesse sentido, os diversos episódios em que Yusuke - indiscriminadamente - “passou a mão” no bumbum de Keiko ou olhou por baixo de sua saia e fez comentários sobre as suas roupas íntimas?  É fato que o assédio de personagens femininas é utilizado, até hoje, como alívio cômico em animes de diferentes gêneros, porém a persistência não significa adequação. 

Ademais, o avanço - da sociedade como um todo, bem como pessoalmente meu - é capaz de me fazer entender como uma mulher pelada sem motivo nenhum em um anime é uma característica problemática. Mais uma vez a outra face da mesma moeda. Enquanto em relação às telespectadoras femininas a existência dessa mulher, e inclusive da reação dos personagens do anime a sua presença, serve como um lembrete e uma projeção do seu papel na sociedade, quanto aos telespectadores masculinos a personagem serve como entendimento do tratamento que deve ser direcionado aos corpos femininos ou, no geral, aos não masculinamente estereotipados.

Vale ressaltar, em uma análise para além dos “simples” assédios relacionados ao físico das personagens femininas, como é perturbadora a mensagem dos relacionamentos românticos da trama: Genkai x Toguro e Yusuke x Keiko. O primeiro foi superficialmente explorado como relação romântica, de fato só temos um indicativo de interesse dos personagens em uma conversa entre os dois, mas é interessante perceber como Toguro só parecia minimamente interessado em Genkai, quando jovens, por sua aparência física. Em relação ao principal casal da trama, Yusuke e Keiko, a dinâmica não se apresenta com a mesma superficialidade, mas com características abusivas preocupantes. Não apenas o comportamento  assediador e ao mesmo tempo indiferente de Yusuke é um sinal de alerta, mas a reação de Keiko (violenta, mas ainda assim submissa e dependente) reproduz mensagens controversas e perigosas, as quais são normalizadas no mundo real e, diversas vezes, resultam em relacionamentos romantizados apesar de abusivos e agressivos. 


A dualidade de tratamento entre os gêneros binários torna-se ainda mais evidente quando comparamos a caracterização dos assistentes dos detetives espirituais, Botan e Itsuki. Ao passo que Botan é representada com uma personalidade boba, estática, um pouco irresponsável e, bem, de poderes fracos ou mesmo inexistentes - servindo muitas vezes também como alívio cômico quando aparece - Itsuki, o antigo parceiro do antagonista Sensui, é mostrado como uma figura séria, habilidosa e complexa, a qual tem uma função além de simples assistência eventual. É curioso pensar nessa escolha do criador quando, visto que é mostrado que Sensui tinha - desde o início - mais facilidade como detetive espiritual do que Yusuke, faria mais sentido haver um parceiro mais forte e experiente com Yusuke, mesmo que este fosse mulher.

A crítica não anula a obra

A importância de Yu Yu Hakusho para a história do anime como um todo, e especialmente ao público brasileiro fã, é inegável. A trama traz questões profundas e complexas misturadas a um vocabulário leve e a um enredo dinâmico, os quais são capazes de conquistar desde o público mais novo ao mais velho. É nostálgico, também, ver o estilo de animação e o traço clássico típico do século passado (calma, estou falando apenas dos anos 90), bem como os acessórios hoje ultrapassados, como as fitas cassetes. O dinamismo das lutas e dos trejeitos das personagens, normalmente os elementos que garantem e demonstram a qualidade de uma animação, são atemporais.

Ademais, o teor politico e social da obra, apesar de quase imperceptível, é onipresente. Somos (quase) distraídos pelas inúmeras lutas e cenas de comédia da mensagem de superação do anime, bem como das questões existenciais (como a escolha entre poder ilimitado e integridade moral) apresentadas em episódios de pouco mais de 20 minutos. Talvez seja este o grande motivo da atemporalidade da história: a capacidade de discutir questionamentos profundamente humanos em um ambiente completamente inumano, o qual possibilita poderes e possibilidades inimagináveis até mesmo a pessoas, aparentemente, comuns. 

Não é possível ignorar, contudo, os diversos problemas de caracterização e construção da evolução de cada personagem, incluindo-se as reproduções de machismo ao longo dos 112 episódios. O anime é um exemplo incrível tanto do gênero shonen quanto de animações japonesas no geral e deve, sim, ser assistido. Entretanto, as ressalvas e considerações que se percebem hoje não devem ser ignoradas, mas sim, mesmo que desconfortável, apontadas e discutidas. O mundo mudou desde a primeira exibição do anime no Brasil, bem como da primeira publicação do mangá, e a análise deve ser feita de acordo.

Tecnologia do Blogger.