Escrita como resistência e assentamento feminista negro


"Eu sei que, enquanto eu escrevo..."
(KILOMBA, 2015)

Às vezes eu temo escrever.
A escrita se transforma em medo,
Para que eu não possa escapar de tantas
Construções coloniais.
Nesse mundo,
Eu sou vista como um corpo que
Não pode produzir conhecimento,
Como um corpo fora do lugar.
Eu sei que, enquanto escrevo,
Cada palavra escolhida por mim
Será examinada,
E, Provavelmente, deslegitimada.
Então, por que eu escrevo?
Eu tenho que fazê-lo
Eu estou incrustada numa história
De silêncios impostos,
De vozes torturadas,
De línguas interrompidas por
Idiomas forçados e
Interrompidas falas.
Estou rodeada por
Espaços brancos
Onde, dificilmente, eu posso adentrar e permanecer.
Então, por que eu escrevo?
Escrevo, quase como na obrigação,
Para encontrar a mim mesma.
Enquanto eu escrevo
Eu não sou o Outro
Mas a própria voz
Não o objeto,
Mas o sujeito.
Torno-me aquela que descreve
E não a que é descrita
Eu me torno autora,
E a autoridade
Em minha própria história
Eu me torno a oposição absoluta
Ao que o projeto colonial predeterminou
Eu retorno a mim mesma
Eu me torno: existo.

(Grada Kilomba - Enquanto eu escrevo *)

I - POR QUE ESCREVER
Tenho lido esse texto poético repetidamente e adentrando mais e mais suas camadas de significação. Elas tocam diferentes porções da experiência cotidiana, porque o conhecimento é exatamente o modo como o mundo se organiza, como falamos dele, como nos relacionamos, como e em quais ideias acreditamos.

Se pensarmos no entrelaçamento do que vivemos diariamente com o passado colonial, através do texto, Kilomba propõe um desafio: romper o silêncio. Se retomamos a imagem da Escravizada Anastácia, (aquela que é usada com significante de mulher Negra desde os livros didáticos de história) perceberemos que a imposição do silêncio é recorrente. Nesse sentido, falar e, sobretudo, escrever, não é apenas uma afronta à ordem, mas uma jornada de desmontar, construir, reconstruir e re-imaginar o que nós somos.

Encontrar o olhar de Anastácia na imagem revela que o silêncio imposto não foi suficiente para apagar quem ela era, o que importava, o que ela sabia. Ela resistiu como lhe era possível. Diversas versões sobre a sua história circulam, mas a versão dela é desconhecida. Sobre a sua imagem, repetidamente reproduzida, apropriada indiscriminadamente, são depositados significados que ressaltam a cultura de silenciamento das mulheres Negras. Seu olhar me diz que não aceitou, que resistiu: o mar vai, mas ele volta.

E isso reforça a necessidade de escrevermos, de expressarmos todas as coisas que nos atravessam. Questionar o que, o porquê e como nos atravessam é uma forma de arrancar de dentro de nós o projeto de heterogeneidade [1] que está em curso desde o início da Modernidade. Pensarmos sobre nós mesmas é uma questão de sobrevivência, de saúde mental de autocuidado. Nesse sentido, a escrita funciona como registro da trajetória que se constrói dia-a-dia.

Não podemos temer a escrita. O mundo em branco, a vida em branco, o lençol em branco e a folha em branco à nossa espera [2] nós já temos. É um "mudo convite", mas que precisa ser limpo em preto, enegrecido, tornado negro (de-ne-gri-do). Quanto mais tivermos reflexões marcadas pela memória, pela arte e pelo cotidiano, maior será a nossa compreensão crítica da realidade e de nós mesmas. Consequentemente, mais enraizamentos provocará: Calecanto provoca Maremoto [3]. Sobre essa obra, de Adriana Varejão, (2004) :

Colocados nos painéis formando um grid, os azulejões fazem referência à maneira desordenada e casual com a qual são repostos os azulejos quebrados dos antigos painéis barrocos. Assim, o maremoto e as feições angelicais impressas nas pinturas formam esta calculada arquitetura do caos, com modulações cromáticas e compositivas, remetendo à cadência entre ritmo e melodia.

Essa disjunção dos azulejos bem reflete a nossa turbulenta construção identitária como projeto de Nação. O que morre, o que é considerado descartável, o que quebrou é substituído desordenadamente: língua, cultura, raça/cor, gênero. Um "fóssil vivo" é capaz de revelar o fundo do mar a ponto de provocar caos na normatização, no modo de conhecer e interpretar o mundo.

O que - simbolicamente - está por trás dessa parede quase homogênea, mas lisa e acabada?

II. ASSENTAMENTO
PAULINO, Rosana. Assentamento (detalhe). Instalação, 2013 **

Na instalação Assentamento, de Rosana Paulino, temos um complexo panorama, bastante explícito sobre a construção identitária das mulheres Negras. Segundo a artista, as fotografias científicas produzidas no século XVIII, no Brasil, instituíram uma percepção engendrada do racismo. Nelas, as escravizadas eram objetificadas, isto é, produzidas, no intuito de descrever "a raça" a partir de aspectos do biotipo. Quando digo "produzidas" quero enfatizar o silêncio e o total desconhecimento sobre essa pessoa como sujeito; construíram "conhecimento científico autorizado" sem ouvi-la. Na obra, esse conhecimento é subvertido à medida que são acrescentados órgãos internos, suturas e raízes. Assim como Anastácia, a personagem de Assentamento, conforme o nosso olhar, pode ser vista em sua humanidade, apesar do silêncio.

A sutura, que não encaixa com exatidão os "pedaços" da imagem, simboliza o trauma da colonização que temos como desafio "refazer". Reconstruir imagens, pensamentos, tradições, emoções: a humanidade. A mulher da imagem, destituída de nome, família, cultura e valores é forçada a suturar, a enraizar numa terra que a expele. Seu coração - o nosso também - denota a dor, o constrangimento, o sufocamento, o silêncio.

Repito: precisamos nos reconstruir. Os diferentes modos de compor e sobrepor linguagens são importantes nesse processo. No processo poderão dizer que "é subjetivo", "que não há importância" ou que "é subjetivo". Pedirão para calar inúmeras vezes. Acusarão. O que temos que manter na centralidade é que estamos em tempos de nos enraizarmos positivamente, isto é, de re-imaginarmos o futuro cientes do passado. Precisamos lidar com o trauma colonial florescendo através das profundas raízes predecessoras.

O sombreamento/desumanização é um desafio diário a vencer, pois o discurso racista/sexista/classista está pronto para nos encurralar psicologicamente tal como fizeram fisicamente antes de forma autorizada. Se questionarem o porquê de escrever poesia hoje em dia [4] (em tempos de romances) ou o porquê de uma Preta gostar tanto de livros [5], podemos lembrar de Audre Lorde (1984):

(...) a maneira em que se materializa a nossa criatividade vem, muitas vezes, determinada por nossa classe social. A poesia é a mais econômica das manifestações artísticas. É a mais oculta, que requer menos esforço físico e menos materiais, e a que pode ser realizada entre turnos de trabalho, em uma despensa de cozinha de hospital ou no metrô, usando qualquer pedaço de papel (LORDE, 1984 - tradução nossa).

A importância de nossa afinidade com linguagens artísticas está no compromisso com a reconstrução de nós mesmas. Esse ideal pode manifestar-se pela estética, teoria, ação política. Pode manifestar-se diante de outros como: penteado, estampa, texto crítico, instalação, tutoriais ou filmes e outras mais. O importante é atravessar o silêncio imposto, importante é falar, não importa o modo que encontramos.

Não são raros os momentos em que, na universidade, eu faço emergir experiências, leituras e conceitos do Feminismo Negro que são desautorizados, deslegitimados e postos à prova de forma leviana por detentorxs da autoridade. Primeiro: fingir que não vê a minha mão levantada; segundo: deixa falar interrompendo; terceiro: dizer "mas isso não é legítimo". Isso, porém, não configura a totalidade da experiência; temos a seguinte ambiguidade nos cursos: o que é importante para mim (como corpo social) é deslegitimado no mesmo movimento em que conceitos de Audre Lorde são tomados como "afinidade eletiva". Dissimulam preconceitos a cada apropriação equivocada de teóricas Negras para imobilizar, para calar cada Preta que sai do lugar de subalternidade, rompe o silêncio e, assim, quebra o espelho narcísico em que estão presas subjetividades dominantes.

O que Audre Lorde chama de "quebrar o silêncio" é fundamental para nossa resistência, construção, reconstrução, desconstrução. Denunciar a violência, porque guardá-la não nos salvará dela, pelo contrário: o silêncio autoriza ainda mais a violência. Precisamos falar sobre nossos traumas, sobre as feridas, sobre os afetos, celebrações, sobre solidariedade e amor: falar sobre como nos sentimos, sobre o que desejamos, sobre o vislumbramos.
Enraizar, florescer, frutificar.

III. O ENCONTRO
Escrever - isto é, romper o silêncio - nos tira do lugar de objeto, nos transforma em sujeitos que se constroem em seus próprios termos (KILOMBA, 2015). O enraizamento, isto é, a re-construção que parte de trajetórias ancestrais. Ela revela uma experiência de renascimento, de encontrar a si mesma e retomar a dignidade. Escrever é como uma cirurgia de extração; é como arrancar as palavras destrutivas que semearam em nós e, ao mesmo tempo, é um processo de acessar nosso interior. Encontrar as memórias, as sensações, a alma, os afetos e dar importância a eles. E fazê-los importantes. Afrocentrar descentrando do masculino, ocidental, heterossexual. É descobrir o que somos pra além do que temos sido habituadas a acreditar que somos. É transformarmo-nos e, assim, vir a Ser em toda a potencialidade além do imaginado.


REFERÊNCIAS
*KILOMBA, Grada. While I write. 2015. Acesso em 25 out. 15.
** PAULINO, Rosana. Assentamento. Instalação, 2013.
[1]BENSUSAN, Hilan. Heterosexuais, heteroraciais, heteroculturais: as colonizações das mulheres negras. Acesso em 25 out. 15.
em 25 out. 15.
[2] CÉSAR, Ana Cristina. Tenho uma folha branca. Acesso em 25 out. 15.
[3]VAREJÃO, Adriana Varejão. Celacanto Provoca Maremoto. 2004 - 2008, óleo e gesso sobre tela, 110 X 110 cm cada, 184 peças, foto: Vicente de Mello. Acesso em 25 out. 15.
[4] LORDE, Audre. Sister outsider: essays and speeches. California: The Crossing Press, 1984.
[5] JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2004. 8.ed.
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