GUEST POST - Batalha Campal: Descobrir-se negro nos espaços da Fantasia épica.

Por  Lucas Pamplona*


Sempre fui nerd. Ao longo da minha vida, tive contato com todos os nichos nesse nosso universo – começando com videogame, passando pela literatura, cinema, RPG e HQs. Aos 17 anos li meu primeiro mangá (Chobits), e isso marcou o início de uma nova (e curta) era otaku na minha vida, em especial pelo motivo pelo qual esse universo tanto me cativou: os eventos de animê. Os grandes eventos de animê, frutos do desejo de unir um fandom até então praticamente desconhecido. Com esse relato, busco compartilhar um pouco da minha vivência nesse meio e a relação com a negritude. 

Um evento típico de animê reúne centenas de fãs e cosplayers frequentando diversas lojas/quiosques/espaços alugados pela organizadora dentro de uma instituição (tipicamente escolas ou universidades), gastando rios de dinheiro para conhecer gente que também gosta das mesmas coisas que você, talvez para comprar colecionáveis diversos, beber mupy ou simplesmente participar dos eventos lá presentes.

Um desses inúmeros eventos consistia em uma pequena arena fechada em um canto qualquer, onde uma empresa conhecida por “Batalha Campal” oferecia aos pagantes a oportunidade de se digladiarem por alguns minutos em uma simulação (regrada) de combate medieval, utilizando-se de “letais” espadas compostas de um cano prensado entre placas coladas de borracha macia cobertas por silver tape. Por alguns reais, você poderia se transportar para dentro do seu personagem predileto, e lutar contra algum outro desconhecido em um pequeno torneio. 

Descobri, eventualmente, que a tal Batalha Campal se estendia para além dos eventos locais de animê. Era um fenômeno global, organizado, que ia pelo nome de Swordplay, e os eventos que tínhamos no Brasil eram apenas uma versão miniaturizada oferecida por uma empresa com o intuito de capitalizar em cima de um nicho já conhecido, por exemplo, nos EUA.

Como curiosidade, faço questão de distinguir entre duas categorias de prática de simulação em fantasia. O swordplay, descrito acima, é diferente do LARP (Live-Action Role Playing), na qual o combate físico é opcional e se dá mais valor aos elementos de enredo, atuação das personagens e a qualidade estética das armas e fantasias.


"Larp" - Quadro 1: Machado Larp feito por mim/ Quadro 2: Espada Larp
(arma  confeccionada com material sofisticado, com finalidade cenográfica)



A partir daí se organizaram as ligas de clãs da Batalha Campal no Brasil. Descobri que alguns estados já contavam com grupos grandes de swordplay, com suas próprias regras e padrões de armas e uniformes. E num piscar de olhos, eu estava envolvido e participando de treinos semanais de um dos mais proeminentes clãs no estado de São Paulo.



"Boffer" - Quadro 3: Machado Boffer/ Quadro 4: Master sword boffer
(arma de contato feita de materiais leves para prevenir ferimentos) 


O clã seguia temática de Templários. Éramos todos uniformizados e titulados e organizados conforme uma hierarquia pseudo-baseada na história militar medieval cristã e nesses momentos encenávamos. Ao treinar ou ao lutar contra outros clãs, de certa forma abríamos mão de nossas identidades e assumíamos uma identidade simbólica dos guerreiros templários que queríamos ser. Eu, pelo menos, me entregava por inteiro. Era a primeira vez que eu participava de um grupo grande, onde havia pessoascom as quais eu me identificava. Foi também a primeira vez que eu descobri que havia gente tão nerd quanto eu, e gente diferente de mim também. Tinha gente alta, gente baixa, gente rica, pobre, hetero, gay... 

E branca. O que mais tinha, era gente branca. 

Veja bem. O universo de fantasia medieval, de fantasia épica, sempre esteve cheio de gente branca. É onde mais têm auto representatividade, já que podem criar uma simulação das vidas de seus antepassados europeus, revivendo lendas e histórias baseados em contextos eurocêntricos, com personagens e atividades típicas do homem europeu. Seja na realidade ou na ficção. Rei? Europeu. Feiticeiro? Branco, europeu. Ferreiro? Artesão? Cavaleiro? Euro-euro-europeu. 

Templários? Europeus. Opa. 

Então, não era tão fácil assim viver o personagem na íntegra, pois aquela caracterização, nem na realidade nem na ficção, representava um modelo de personagem que fizesse jus ao adolescente negro que o vestia. Eu tinha tudo: Tinha a arma, o uniforme, a disciplina, a diligência... Mas, não tinha umsenso de identidade de personagem. Eu não queria pensar nisso. Na verdade, eu nem sabia, mas não tinha recursos ou maturidade para fazer a reflexão sobre a forçada de barra que era pra minha autoestima permanecer naquele contexto. Não queria pensar que tinha gente que apontava OBJETIVAMENTE que era “estranho” ter ali um templário preto, tampouco queria refletir sobre o fato de que mesmo estando pela primeira vez entre tantos nerds, eu ainda me sentia um estranho no ninho em função do que achava ser um detalhe. Mas lá permaneci, sofrendo quieto. 

Avançando dois anos. Saí desse clã, e junto a um amigo, fundamos um segundo clã que cresceu rapidamente. A temática era baseada vagamente na mitologia e estética celta/tolkeniana, e mesmo sendo algo que nasceu dos nossos esforços conjuntos, deixei a história se repetir por mais um ano, soterrando o (potencial) negro dentro de mim para me manter em atividade em um universo que não me solicitava estética ou culturalmente. Mas lá permaneci, sofrendo quieto. 

A vida, eventualmente, se encarregou de me afastar desse meio. E a partir daí, os questionamentos referentes a negritude x interesse por fantasia épica começaram a surgir, embora eu ainda não houvesse encontrado espaços legitimados para a discussão dessas questões.

As coisas começaram a mudar quando comecei a me dar conta da importância da representatividade. Quantos homens negros foram estes guerreiros medievais, ou pelo menos eram representados como tais, seja na realidade ou na ficção? Quantos homens negros, para todos os efeitos, não morreram nas mãos destes mesmos caricatos guerreiros? Quantos homens negros, afinal, ocupam espaços de protagonismo (ou qualquer espaço sequer) nas histórias de fantasia épica clássicas ou modernas? 

E aí veio o questionamento final. Estaria eu relegado a ser fruto de um povo sem histórias bonitas comreis e castelos e guerras durante longos invernos? Seria eu apenas fruto de um povo escravizado e mais nada?

Qual era o uniforme que eu deveria ter vestido? Certamente não um uniforme simbólico, mas esse uniforme real que hoje visto. Que representa a história de um povo guerreiro, perdido, mas não esquecido. Que foi ao inferno mas voltou mais forte, e que a cada dia luta para reconquistar seu legado. E esse legado vive em mim. 

Quer algo mais épico?

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*Lucas Pamplona tem 25 anos, é psicólogo e professor. Suas paixões são cozinhar e jogar videogame, mas também curte livros, quadrinhos, suas diversas coleções, e jogos de tabuleiro. Prefere ficção científica à fantasia épica. Nerd, preto e idealista, valoriza obras e discussões que atravessem essas realidades.


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