#PretaRead | A Parábola do Semeador é um aviso


 Por Alessandra Costa

É possível ler A Parábola do Semeador e não lembrar de ao menos algo do nosso presente? A distopia de Octavia E. Butler não está em um futuro distante, ela bate à nossa porta com insistência, mesmo que alguns insistam em não ouvi-la. Trago aqui alguns paralelos com nossa atualidade.



Negacionismo


Conhecemos Lauren, a protagonista da história, que interage com pessoas de todas as idades, porém os adultos e idosos são os únicos que conheceram o mundo pré-apocalipse. Alguns recordam com nostalgia de seus tempos de paz, como quando Cory, madrasta de Lauren, em uma conversa com ela, lembra que a cidade costumava ser mais iluminada. Já Lauren, acredita que apesar da correnteza da mudança, muitos se seguram firmemente em um corrimão que, muitas vezes, pode significar um estado de negação.

O então candidato à presidência, Donner, se tornou para estes uma forma de resgatar um passado que era aparentemente mais seguro e confortável.


— Não, não, Donner não passa de um tipo de corrimão humano.
— Um o quê?
— Quero dizer que ele é como... um símbolo do passado ao qual podemos
nos segurar enquanto somos empurrados para o futuro. Ele não é nada. Não tem
conteúdo. Mas tê-lo ali, o mais novo em uma série de dois séculos e meio de
presidentes americanos, faz as pessoas sentirem que o país, a cultura com a qual
cresceram, ainda existe. Que todos passaremos por esse período ruim e
voltaremos ao normal. (BUTLER, 2018, p.73).



Analisando o Brasil de hoje, em que pequenas mudanças sociais que ocorreram nos últimos anos, como cotas raciais, PEC das domésticas e a ascensão da classe C, amedrontaram a classe média que para proteger seu espaço, passou a apoiar pautas reacionárias e políticos que defendem que a ditadura não existiu, que os direitos das minorias são privilégios, que a "família tradicional brasileira" sofre ataques da comunidade LGBTQIA+, a intolerância religiosa e mais recentemente, o negacionismo científico.



Gerações perdidas


Esta passagem citada do livro ocorre algum tempo depois da cremação de Amy, uma menina de 3 anos, morta por um tiro em seu bairro, Robledo. Amy era tratada com descaso por Tracy, sua mãe, pois era o fruto de anos de estupro por seu próprio tio. O ambiente violento, instável e com poucos recursos, modificam as relações familiares, tornando-as traumáticas e interrompendo vidas com potencial precocemente.

No Brasil de hoje, está disseminada a ideia de valorização da vida, da família e da infância, mas as mortes de jovens e crianças nas favelas por conta da violência policial não comovem aqueles que têm esse discurso como bandeira. E não é necessário estar vulnerável no aspecto familiar, como Amy. Ágatha, menina carioca de 8 anos, fazia inglês e balé. Sua família buscava que ela tivesse o mínimo de respeito em uma sociedade racista, sendo bem educada, mas nem isso a livrou das estatísticas do genocídio brasileiro. Uma menina que poderia ter um futuro brilhante pela frente, porém interrompido.

Outro paralelo marcante sobre violência na obra, é o fato de Lauren e sua família estarem acostumados a ter marcas de bala em seu portão, que por sinal é blindado. Podemos relacionar essa situação com a morte recente de João Pedro, menino carioca de 14 anos. Sua casa ficou com 72 marcas de tiros, mas esse fato não gera uma comoção nacional, há na realidade uma normalização desta situação nos locais mais vulneráveis do nosso país.



Converse sobre aulas, não sobre o Apocalipse


O momento em que Lauren conta sobre seus planos a amiga Joanne, esta reage denunciando-os aos pais da amiga. Joanne acha que Lauren exagera quando alerta sobre a necessidade de se preparar para o pior e conversando com seu pai, Lauren entende que nem todos estão preparados para olhar o abismo e precisam de formas mais indiretas de lidar com a proximidade da morte.


(...) Converse com eles sobre aulas, não sobre o Apocalipse. (BUTLER, 2018, p.87).

Ensinar as pessoas sobre plantas, sem necessariamente dizer que isso será útil após uma fuga, seria uma forma de instruir as pessoas para o pior momento, mas sem assustá-las.

Podemos relacionar com a forma como muitos brasileiros têm encarado a atual pandemia. Talvez nosso negacionismo venha do medo de encarar a morte, já que fazer isso é tão difícil e paralisante que se torna mais fácil negá-la. Por isso, em momentos como esses, seguir a estratégia do pai de Lauren pode ser mais produtivo do que assustar e imobilizar as pessoas que não estão preparadas. Lauren, uma garota visionária, tinha essa vantagem e conseguia ser racional em meio ao caos.



Precarização do trabalho


Uma das alternativas que acaba surgindo para estar mais seguro é mudar-se para o bairro operário de Olivar. Em troca de segurança, alimentação e um lugar modesto para viver, profissionais formados que apesar de seu currículo não encontram trabalho, poderiam se estabelecer, mas dependentes da empresa dona do bairro, a KSF. Situação semelhante à das vilas operários do início da revolução industrial, quando a empresa contratante era também a proprietária do imóvel onde viviam os trabalhadores e de todos os estabelecimentos onde eles consumiam, criando um sistema fechado de escravidão por dívida.

Fica explícito no enredo como as relações de trabalho foram precarizadas retomando formas ultrapassadas de organização econômica. Voltando ao início da obra, Donner é eleito presidente com a promessa de retomar a economia em um país arrasado mesmo que isso custe a saúde e os direitos dos trabalhadores e cause impactos ambientais.


Além disso, Donner planeja colocar as pessoas para trabalhar de novo. Ele espera alterar leis, suspender o salário mínimo “excessivamente restritivo” e a legislação de proteção ao trabalho e ao meio ambiente para aqueles empregadores dispostos a aceitar empregados sem teto e dar a eles treinamento e acomodação adequados. (BUTLER, 2018, p.40).

Em A Parábola do Semeador, o trabalho escravo é cada vez mais escancarado. Conhecemos a história de Emery e sua filha, escravizadas em uma fazenda, ganhando através de uma moeda da empresa. Seu marido adoeceu e morreu, ela herdou suas dívidas e teve dois de seus filhos sequestrados. Ela e sua filha, Tori, são compartilhadoras, assim como Lauren, sofrem da síndrome de hiperempatia, que era usada contra elas no regime de escravidão, uma vez que podiam ser torturadas sem o risco de morte.

Descobrimos também que os boatos de que os empregos melhores estão no norte são falsos. Em alguns locais há escravidão e é possível ser empregado para dirigir as pessoas em situação de escravidão ou trabalhar lidando com fumaça tóxica e graves acidentes de trabalho.

Me lembrou um pouco a história da minha família e de muitas outras no Brasil, que vieram do Nordeste em busca de uma vida melhor no Sul e Sudeste. Saíram de sua terra natal na esperança de encontrar melhores condições de vida. Foram importantíssimos como mão de obra para o progresso e modernização dos centros urbanos, mas sem receber o justo pelo valor de seu trabalho, vivendo em locais vulneráveis e ainda sofrendo preconceito. 



Impactos ambientais e sociais


É através de rápidas passagens que Octavia detalha o impacto ambiental produzido pela humanidade no futuro. Coisas que hoje podem ser consideradas, por uma parcela da população, como banal, como a água, no futuro distópico de Lauren torna-se um recurso tão caro quanto a gasolina em nossos tempos. As chuvas acontecem uma vez a cada seis anos e duram pouco tempo. Os recursos estão tão escassos na Terra que, para a protagonista, só poderíamos sobreviver em outro planeta.



O Destino da Semente da Terra é criar raízes entre as estrelas — falei. — É o maior objetivo da Semente da Terra e a maior mudança do ser humano, com exceção da morte. É um destino que devemos buscar se quisermos ser qualquer outra coisa que não dinossauros de pele lisa: aqui hoje, mas amanhã não mais, nossos ossos misturados com os de nossas cidades e suas cinzas, e então? (BUTLER, 2018, p.275)

Em um ambiente despedaçado onde sobreviver é extremamente difícil, é necessário contar com todo o suporte possível de sua comunidade. Lauren sabe que apesar do instinto de sobrevivência ser importante para se manter viva, ela não pode deixar de lado os vulneráveis. Na contramão disso, alguns homens da história, Keith, Marcus, Taylor e Greyson não se permitiram receber ajuda em momentos de dificuldade ou serem questionados e liderados por uma mulher, segurando firmemente o frágil corrimão da masculinidade e pagando o preço por manter ideias ultrapassadas para aquelas situações de risco. Naquela realidade, não faz nenhum sentido um "Mulheres e crianças primeiro".



Sobreviver exige esperança


Apesar de todo esse cenário dramático, a maior lição que Octavia deixou com A Parábola do Semeador foi: Sobreviver exige esperança. Lauren, ao perceber que o pior estava por vir não se entregou ao abismo, acreditou que poderia passar por ele. E uma das passagens que mais transmite esse impulso de esperança e transformação, é quando Lauren decide o nome de sua religião ao observar uma planta e a sua capacidade de se espalhar pelos quatro cantos do mundo, apesar de imóvel:


"Semente da Terra. Eu sou Semente da Terra. Qualquer pessoa pode ser. Um dia, acho que seremos muitos. E acho que teremos que espalhar nossas sementes cada vez mais longe deste lugar moribundo. (BUTLER, 2018, p.101)"

Quase profética, Octavia nos alertou, em uma entrevista de maio de 1999 em Pasadena, Califórnia:


 "[A Parábola do Semeador e A Parábola dos Talentos] São livros que olham para onde estamos agora, o que estamos fazendo agora e para imaginar onde alguns dos nossos comportamentos atuais e problemas negligenciados podem nos levar (...) (BUTLER, 2018, p.417)".

Agora, cabe a nós decidir: Cair no abismo ou sermos Sementes da Terra.




 

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