A Amiga Gorda em Lady Bird

Contém spoilers

No final do ano passado assisti com muita expectativa ao filme Lady Bird (Greta Gerwig, 2017). No geral, a produção foi bem recepcionada pela crítica, e foi o único indicado a melhor filme da premiação do Oscar deste ano a ter uma mulher na direção. O fato de termos uma mulher dirigindo um filme que tem como protagonista outra mulher já é um bom motivo para conferirmos a história, cujo enredo apesar de não ser inovador acerta ao retratar de forma mais realista e por vezes desapaixonada a vida de uma adolescente que vive numa cidade pequena e vê (assim como em vários outros filmes sobre adolescentes estadunidenses) o fim do ensino médio e o ingresso numa faculdade como um momento de virada e início de uma nova vida.


Por Jaqueline Queiroz

A história é centrada sobre o ponto de vista de Christine McPherson (Saoirse Ronan) uma adolescente de 17 anos que prefere ser chamada de Lady Bird e que não aceita bem a condição de classe média baixa de sua família, além de sofrer com a ideia de não conseguir livrar-se da forma da vida entediante que acredita levar na pequena cidade de Sacramento. Lady Bird estuda como bolsista num colégio confessional católico e sua família está passando por uma fase de dificuldades financeiras. O pai está desempregado e com depressão, e por conta disso a mãe está trabalhando em mais de um turno num hospital para bancar todas as contas da casa.

A meu ver, a mãe Marion McPherson (Laurie Metcalf) é a melhor personagem da trama, pois ficou com ela o peso de sustentar financeiramente e psicologicamente a família que é composta também por um filho mais velho adotivo e não branco. Um dos pontos altos da narrativa ocorre quando é explorada a relação conflituosa entre mãe e filha, as atitudes egoístas da Lady Bird que se coadunam e são coerentes com a fase da adolescência são colocadas na parede pela mãe gerando os melhores diálogos do filme.

A AMIGA GORDA EM LADY BIRD
Dito isto, vou agora me ater a um ponto da história que me inquietou e chamou a minha atenção pelo fato de não ser a primeira vez que um tipo de personagem é retratado do mesmo jeito dentro da cultura pop. Estou falando da Amiga Gorda, aquela que dentro de algumas histórias é a melhor amiga da protagonista e vive praticamente em função dela, ouvindo e vendo as suas histórias como uma espécie de telespectadora, pois pressupõe que nunca poderá viver as mesmas experiências. Ela é responsável por ajudar a amiga magra a obter êxitos em seus planos, inclusive os amorosos.

Existe em inglês um termo próprio para isso o qual é bastante usado entre os adolescentes nos colégios nos Estados Unidos. Chama-se “The Duff” e significa “Designated ugly fat friend” que pode ser traduzido como “típica amiga feia e gorda”. Aqui no texto usaremos o termo Duff não como endosso a uma prática discriminatória, mas para exemplificar a ocorrência do uso do estereótipo de forma problemática. Mesmo quem não conhece o termo com certeza já viu uma Duff sendo retratada.

Barbara Holland, a Duff da primeira temporada de Stranger Things.

Celina, a Duff da novela teen mexicana Rebelde.

Em Lady Bird temos como Duff Julie Steffans (Beanie Feldstein ) uma menina insegura quanto a sua própria aparência e que tem na figura da Cristine como a sua única amiga dentro da escola. Filha de pais separados Julie é boa aluna, tira notas altas (ao contrário da Lady Bird que é mediana) e tem um crush pelo professor bonitão de matemática. O ponto problemático da personagem da Julie assim como das outras Duff é o fato da amiga gorda parecer estar sempre numa posição de subserviência e "coadjuvantismo", como se estivessem ali apenas para ajudar e ser ponto de apoio da amiga magra.

Lady Bird e Julia se desentendem num determinado momento do filme e param de se falar, o rompimento teve como motivo o fato de Lady Bird ter começado a dar mais atenção para outra amiga (magra) e estar mais próxima dos amigos do seu namorado. Compreender as relações de amizade como substituíveis é algo complicado e questionável, mas durante a adolescência esse transitar entre outros grupos e a facilidade em criar e romper amizades é muito comum. O ponto problemático para mim acontece na forma como a amizade entre a Julie e a Lady Bird é retomada.

Lady Bird e Julie.

Após seu namorado desistir de ir ao baile de formatura Lady Bird decide que vai assim mesmo e adivinhem quem ela vai procurar para não ir sozinha? Isso mesmo, a amiga gorda que ela deixou em standy by. Caberia nessa cena um diálogo franco com a Julie expondo seu ponto de vista sobre a forma com que foi tratada, mas isso não ocorre e as duas vão ao baile como se nada tivesse acontecido. Fiquei muito incomodada com essa cena porque dá a entender que a Julie estava o tempo todo esperando a amiga voltar e pronta pra dizer sim, sem ao menos conversar sobre o quanto a atitude da Lady Bird não foi a de uma boa amiga.

Vivemos numa sociedade gordofóbica, em que raramente é mostrado nas diversas mídias mulheres e meninas gordas em posição de enaltecimento e felicidade com o seu corpo. O desenrolar de uma cena que mostra a reconciliação de duas amigas sem debater o quanto a amiga magra era o elo problemático da relação com a amiga gorda é de certa forma um reforço à ideia de que a menina gorda é uma coadjuvante eterna sempre a espera do retorno da protagonista magra que dá sentido a sua vida. Num filme dirigido por uma mulher esperava mais sensibilidade no tocante a essa questão. Em tempos em que a palavra representatividade ganha força e é posta em prática ainda que de forma lenta, me surpreendo ao constatar o quanto ainda é diminuta a presença de mulheres e meninas gordas em posição de destaque dentro das produções midiáticas e que fujam do clichê da gorda divertida ou atrapalhada.

Fiz um esforço para lembrar alguma personagem gorda da cultura pop que conseguiu escapar do script comum de ser a Duff e a única que tenho como referência é a Velma do Scooby Doo, que não é necessariamente gorda, mas carrega fisicamente os signos que geralmente são atribuídos a uma Duff. A Velma dos desenhos foge a regra porque ela não está em uma posição de inferioridade em relação aos outros personagens, é peça fundamental para que os mistérios sejam resolvidos e tem sua personalidade de nerd bem construída e desenvolvida ao longo dos episódios.

Recentemente houve uma polêmica envolvendo a caracterização da personagem para um novo filme em live action. Nessa versão a Velma aparece como uma garota gorda, o que causou o descontentamento por parte de alguns.


A resposta dada diante da colocação machista e preconceituosa foi certeira ao identificar o que causou incomodo no criador da postagem. Na perspectiva de muitos homens as personagens femininas precisam sempre carregar os atributos que eles elegem como atrativos e a fuga dessa suposta regra é algo ruim além de ser culpa do Feminismo opressor e aniquilador de homens (contém ironia).

Uma maior presença quantitativa e qualitativa de mulheres e meninas gordas representadas no áudio visual teria como efeito positivo a diminuição de pensamentos como este. Sair da exceção e virar uma regra saudável dentro das narrativas faria com que as pessoas entendessem com mais naturalidade que as pessoas gordas podem ser protagonistas de uma história, assumir múltiplas características e funções e não apenas ser muleta para a personagem magra. Problematizar e combater os clichês como o da Duff é passo importante para que tenhamos representações mais responsáveis sobre as pessoas que não estão dentro do padrão imposto.
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