A desumanização das mulheres negras não heterossexuais em Dear White People e She’s Gotta Have It.

Esse texto foi originalmente publicado aqui

Há duas séries cujas temáticas rondam na questão racial, são excelentes objetos de debates para interseccionalidades, mas que pecam na forma como tratam os relacionamentos entre mulheres negras. Estou falando de Dear White People (Cara gente branca) e She’s Gotta Have It (Ela quer tudo). Ambas séries foram lançadas pela Netflix, são inspiradas em filmes e foram produzidas e protagonizadas por pessoas negras.

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Antes de mais nada, não estou desqualificando a importância das séries. Muito pelo contrário, sou fã de ambas. Espero ser escura no texto, minha intenção é apenas expor meus incômodos. Afinal, criticar é sempre necessário.

Esse texto contém spoilers.

Em Dear White People há um casal de mulheres que, por não ter profundidade das personagens, aparenta ser formado por uma bissexual e uma lésbica. Ambas negras. Uma delas, Neika Hobbs (Nia Long) é bissexual, professora e noiva de Monique (Zee James). Apesar do relacionamento sério, Profª Hobbs trai sua noiva com o ex-aluno, filho do reitor, Troy Fairbanks. Monique (Zee James) apareceu duas vezes na série, não sabemos sua profissão ou qualquer outro detalhe e tem pouquíssimas falas.

A imagem que se cria das duas personagens é que a bissexual é promíscua e a lésbica é, além de chata, um objeto que está ali para ser útil em algo. O que reforça ainda mais a imagem negativa que se faz das mulheres não heterossexuais. Há um falocentrismo por volta desse discurso que me deixa incomodada. Faz parecer que a mulher bissexual “sente falta” de algo no relacionamento com a Monique e só não está com Troy por ele ser um aluno e mais novo. Pessoas externas enquadram a Profª Hobbs como uma mulher lésbica, ao ouvir isso, Troy até cita para o amigo “não comigo”. O reitor pergunta quando será o casamento de ambas, Monique olha para a noiva com um ar de indireta e responde “boa pergunta”.

Até mesmo no silêncio, há discurso. Não estou dizendo que os relacionamentos entre pessoas do mesmo gênero devem ser romantizados na mídia e tratado como se fosse algo perfeito. Porque não é. Nenhum é. Mas porque justamente essas personagens não possuem profundidade e uma humanização como os heterossexuais?

Em She’s Gotta Have It, Nola Darling é uma personagem incrível. Muito bem construída ao longo da série. Como a mesma diz “sou uma obra em construção”. Em um dado momento ela cita ser pansexual e adepta do poliamor. Até o episódio quatro (#BoraAmar: Sexualidade fluida) Nola estava se relacionando apenas com os três homens (cis) da sua vida, mas após assédios e episódios de machismo, ela decide fazer uma limpeza interna. Para tanto, faz-se necessário não se relacionar com homens. Após expor essa decisão no início do episódio quatro, ela diz “vocês acham que eu não consigo? Isso não quer dizer que eu fique sem sexo”. Nesse momento é apresentada a personagem Opal, uma mulher lésbica, negra, mãe solo, dona de um viveiro de mudas, ex-namorada da Nola.

Mais uma vez a mulher negra pansexual é vista como falocêntrica, “bi de balada” e, principalmente, promíscua. A mulher lésbica é vista como um objeto substituível. Um homem sem falo. O relacionamento não dá certo pois Opal exige compromisso e seriedade de Nola. Opal até diz em sua primeira aparição “não quero me deixar levar já que me dei mal da última vez, mas estou solteira, então é melhor aproveitar”. Isso demonstra que Opal sabe que ela está ali para substituir os homens quando Nola cansa deles. Isso é problemático para a imagem das duas.

Em um momento do episódio Nola se vê entre Opal e um dos seus homens. A partir da reação da namorada, Opal questiona se ela sente vergonha de ser vista com uma mulher e Nola diz não ser pessoal. Elas conversam e Opal expõe que não adianta Nola tentar prometer um compromisso que ela não pode cumprir. Com isso, terminam o relacionamento e voltam a amizade. Nola diz que apesar de ter doído muito o término, ela decidiu voltar para os homens de sua vida.

Da mesma forma que se tem tido um cuidado de construir uma imagem humana e positiva de homens e mulheres negras, por que ainda insistem em negar a existência de mulheres negras que se relacionam com mulheres? Essa pergunta é retórica. Mulheres pan/bissexuais são mal vistas por homens e mulheres. Lésbicas são vistas como um objeto substituível e sempre disponível, homens sem falo (por isso vai sempre faltar algo), desesperadas por compromisso, radicais e sérias demais.

Percebi um padrão na construção dessas personagens e isso é um problema. Primeiro que a negação da heterossexualidade para uma pessoa negra, não é nem levada em consideração. Quando citada, diminuem nossa dor. Não estou falando que isso é um problema das pessoas negras, na verdade há um conjunto imenso por trás disso que daria um outro texto. Estou apenas expondo que esse apagamento é tão real que ultrapassa nossas vivências e vão para as telas.

Essa não preocupação com a imagem positiva de sujeitas que são violentadas cotidianamente é algo que precisa se falar. Cansei de ouvir mulheres heterossexuais objetificando mulheres lésbicas. Lembrando de nós quando os homens as decepcionam. Cansei de ouvir que mulheres bissexuais são promíscuas e descompromissadas. Essa imagem é reforçada de diversas maneiras. A mídia também constrói o imaginário coletivo.

Pertencemos a um não-lugar. Somos mal vistas em diversos ambientes. Somos apagadas, silenciadas, violentadas e diminuídas. Numa sociedade falocêntrica e heteronormativa, negar a heterossexualidade é uma resistência cotidiana. Mas dói.


Por Naira Évine
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