Minha Transição Capilar e a importância de Youtubers Negras na minha vida!

Gabi Oliveira, youtuber no canal De Pretas por Gabi

Felizmente, a minha formação identitária na infância foi bastante positiva, porque tive adultos que transmitiram valores e me inspiraram a ser uma pessoa negra ciente de minhas qualidades e, até mesmo, confiante.

Apesar disso, é fato que à medida que eu crescia, o cabelo se tornava um problema que rondava a minha vida. Não porque eu me incomodasse com ele, nem porque minha mãe "arrancava" as minhas orelhas ao penteá-lo, mas porque eu era a única criança negra na minha sala de aula, na minha rua e no transporte escolar. Eu usava muito o cabelo trançado, inclusive aquela tradição de mulheres trançando, cuidando umas das outras, foi uma sabedoria que aprendi ali na prática com uma das mulheres mais lindas que existe: Ariane. O afeto entre nós veio dessa tenra infância em que eu só queria ter ela como trancista, encaixando esta atividade nas horas livres dela como dançarina e sua vida adulta em si. No meio tempo entre a feitura das tranças e reencontrar Ariane, eu dependia completamente da minha mãe e do meu irmão maior para cuidar do cabelo, assim, o que havia de pior (a meu ver, naquela época) se materializava: rabo de cavalo pra cima, tipo um abacaxi. O prato cheio para - não bullying, mas - o racismo. 

Mini Anne, personalidade semelhante à Moongirl Lunella Lafayette

Quando cresci um pouco mais, minha mãe achou que já era hora de começar a alisar o cabelo. Eu não entendia aquilo, na verdade eu odiava a dor (do que mais tarde aprenderia que era resultado do hidróxido), as feridas e o cabelo totalmente sem volume. Eu morria de vergonha de ter aquele cabelo e inventava desculpas pra faltar aula.

Mas sim, por que que não protestava? Bem, minha mãe costumava dizer que meu cabelo era impossível. Impossível de pentear, porque a raiz era 'junta demais", um cabelo igual ao do meu pai, não ao dela. Cada vez que eu perguntava o porquê daquele calvário físico, emocional e social, mais uma verdade daquele tipo vinha à tona. Esse ritual já não era do meu agrado, quanto o proporcionado pela Ariane, não era interessante, complexo ou inspirador, era apenas uma porta para me sentir "menos que". Eu não queria ter um cabelo liso, mas precisava buscar um, diferente dos garotos que poderiam (e "deveriam") ser carecas. Engraçado que as convenções de gênero me blindaram para a possibilidade de não ter cabelo, se ter era tão dolorido e inexplicável. A quantidade de cabelo sempre rareava, sempre havia pontas e sinais de doença nos fios, e isso me angustiava bastante.

Moongirl and Devil Dinosaur #1 (2015)
Roteiristas: Amy Reeder, Brandon Montclare/ artista: Natacha Bustos / Marvel Comics

Não estou demonizando nem a cabeleireira, tampouco a minha mãe, porque entendo o que levou ambas a este caminho. A grande questão é que, a maioria das minhas amigas negras, contam histórias diferentes sobre o cabelo, no geral, elas queriam ter cabelos lisos, então usavam box braids, apliques e toda a sorte de tecnologias para poderem se sentir bonitas, mais aceitas ou menos agredidas. Elas gostavam de ir à escola no dia seguinte ao alisamento, enquanto eu queria morrer; e essa diferença me fazia sentir mais isolada e "artificial" que ser preta e nerd.

Essa cabeleireira que alisava os meus cabelos e os de minha mãe, ou melhor, "abria a raiz", é a mestra da minha mãe. Ensinou tudo sobre cabelo, colorimetria, corte e tudo o que era necessário nos tempos pré tubos de tinta cor fantasia, na época que só havia preto, loiro e henna e elas tinham que fazer azul. Ensinar este ofício possibilitou à minha mãe ter autonomia financeira e a se sentir confiante e útil ao transformar a vida de outras mulheres por meio da mudança estética. Ambas são negras, mas especializadas em cabelos lisos (ou tornados lisos), por uma questão financeira, por uma questão ideologica estrutural.

É evidente que havia sim, na minha família, uma tia ativista, que insistia que eu deveria parar de alisar o cabelo, assim mesmo: para de alisar! E era uma guerra entre ela e a minha mãe sobre tudo que dizia respeito a mim. Por mais que ela pudesse ser a pessoa capaz de a compreender o que eu sentia, o modo e como ela afirmava que eu "tinha que parar de alisar o cabelo" me fazia sentir minorizada; eu sentia que eu não tinha escolha, porque era uma criança e não tinha o vocabulário para explicar. Ela passou anos, adolescência inclusive, dizendo que meu cabelo alisado era horrível. De fato era, mas eu não tinha ferramentas para sair daquela prisão do pensamento. Eu tinha um salão a meu dispor, mas não o conhecimento para propor a mim mesma, novos rumos.

Os indícios de emancipação começaram a se mostrar, quando vim prestar vestibular em Brasília pela segunda vez. Eu já havia me resignado àquele ritual terrível de dor, couro cabeludo machucado de modo que até arriscava pintar de vez em quando. Minha mãe se desesperou quando passei tempo demais aqui na capital sem meu "tratamento capilar" e ofereceu diversas e desesperadas soluções, daquele tipo que as mães se vêem obrigadas a dar porque o mundo, a família e o pai distante exigem; é terrível que nossas escolhas não convencionais sejam cobradas de nossas mães, que signifiquem o fracasso delas em nós condicionar ao combo feminilidade e branquitude, sobretudo, via alisamento. Esta corda invisível que nos relaciona é comandada por mãos invisíveis, que nem participam efetivamente da narrativa, porque são aquelas vozes internas de cobrança e as vozes externas de "sua filha é difícil, heim". 

TRANSIÇÃO CAPILAR


Três meses em Brasília foram o suficiente para que eu começasse minha jornada de autoconhecimento. Ela iniciou com a raiz natural brotando e se revelando bem macia e fácil, contrariando o que mamãe me dizia. Eu me desafiei a testar, ver até onde esse cabelo me surpreenderia, então parei o alisamento e passei por toda a transição com a certeza de que estava no caminho certo. 

A ideia principal era cortar as pontas aos poucos, mensalmente, para não perder o tamanho. Assim, uma vez ao mês eu ia ao salão perto de casa, bem simples. A cabeleireira ficou muito chocada com o meu objetivo, mas foi precisa no primeiro corte que se assemelhava a um blackpower tal como o possível. Isso aconteceu exatamente duas vezes, porque na terceira eu decidi cortar tudo o que não fosse natural e deixar crescer de onde estivesse.


Calouras no 1º happy hour, da esquerda pra direita: eu, Anne #whitefriend, Carol e Sam #amigasprasempre (2009/2)

A transição capilar, liberta. Na prática, não é fácil lidar com o cabelo que é tanto virgem, quando tem resquício de química na prática; Neste sentido, a minha decisão radical significou pra mim que eu estava sim, mais livre para conhecer o meu cabelo, mas muito cansada de usar produtos paliativos e lidar com a falta de forma. Eu me preparei muito para tomar a decisão, mas já adulta eu reconhecia que aquela dor da infância podia ser resolvida com esse gesto.

Ajudou bastante pertencer ao grupo Afroatitude, formado por cotistas negras e negros da UnB. Lá eu tive contato com pessoas que pareciam comigo e que tinham experiência pessoas que me ensinaram a elaborar sobre as minhas. Além disso, minha outra tia caminhou comigo neste processo, indo ao salão, pensando junto em como lidar com aqueles problemas práticos do cabelo misto.

Tia Edileuza e eu em 2011/2 (?)

São milhares os motivos que levam pessoas a transicionarem, mas normalmente, tende a ser motivado por uma situação de ruptura, uma crise identitaria, abertura para outra forma de consciência. Por estar relacionada momentos de crise, a transição capilar tende a ser é uma fase muitas vezes difícil, mas é completamente gratificante, empoderadora e nos promete uma vida mais leve.

Pra mim, a partir do dia que deixei a química pra trás eu me tornei negra no sentido amplo, complexo, identitário. Eu me tornei consciente, um pouco mais livre daquela vergonha que me assombrava, do desconforto e do deslocamento. Cortar o cabelo a poucos dedos da raiz mudou a gramática da minha identidade e possibilitou o primeiro formato de blackpower!

MAS NEM TUDO SÃO FLORES


Abrir as portas para o meu cabelo natural foi um fechar de portas em igual proporção aquele desespero da minha mãe. Mesmo que a gente não pense tanto no que é ser mulher, em situações como estas, em que sentimos nosso desejo como egoísmo, é óbvio que um sentimento como este jamais paralisaria o meu irmão, e não tem a ver com sermos boas ou mas pessoas, mas pelo modo como o sexismo destina cada um/uma.

Aprendi a dizer "não, mesmo dolorida, mas não aprendi o caminho das pedras do cabelo natural. Aquela época não estava tão disponível o "tombamento" e o "empoderamento feminino negro", de modo que, mais uma vez eu não tinha as ferramentas adequadas, apesar de ter acesso à internet. O que mudou radicalmente minha relação com o cabelo foi a ascensão das youtubers negras. Não sou adepta de maquiagem, salto alto ou look do dia, mas cada vez mais, aplicação de técnicas de pentear, hidratar, lavar, fazer penteados, cronograma, fitagem e tudo o mais que se tornou parte orgânica da rotina.

A princípio, eu dei uma zerada no canal da Joyce Carter, que desvendou diversos aspectos do meu cabelo e me impulsionou a experimentar. É claro que, antes da transição eu já havia lido capítulos do Livro da Saúde das mulheres negras, e que o impacto de "Alisando nosso cabelo" da bell hooks é imensurável na tomada de consciência em relação ao cabelo. E quando falo de consciência, quero enfatizar que me refiro a ter ferramentas de escolhas, seja do convencional alisamento, aplique e box braids ou da trança raiz ou blackpower. É óbvio que não existe "ditadura do crespo", mas sim uma discrepância no fluxo das informações sobre cabelo natural e tratamento químico.

Nos últimos anos, houve um intenso reposicionamento de marcas, dentre as quais podemos destacar a Salonline (cuja divulgação é protagonizada pela cantora Ludmilla) e da Seda (#juntasarrasamos), protagonizada por diversas youtubers negras e pela funkeira Valeska Popozuda. Essa crescente visibilidade possibilita que todas nós apropriemos das ferramentas e técnicas para escolhermos o destino de nossos cabelos.

Uma delas é particularmente destacada na minha trajetória, a Gabi Oliveira do canal De Pretas. Gabi foi a primeira youtuber preta, brasileira, com cabelo igual ao meu, carismática e que pensava duma forma profunda sobre estética e política, e tudo isso me chamou a atenção prontamente. A sua forma de ensinar, explicar e me possibilitar ampliação da consciência através da estética foi um ponto de mudança imensurável. Cada dica, desde as mais simples até o cronograma capilar, tudo fez sentido e ainda faz, porque não é o resultado da equação, como a frase imperativa da minha tia, mas a resolução completa; a cada vídeo, Gabi pega na nossa mão e dialoga sobre possibilidades, oferecendo seu conhecimento para que nós nos empoderemos também. 

Vejo sua produção de conteúdo e influência como o elo perfeito entre a geração de nossas mães e tias que, ou não tiveram acesso as ferramentas ou não souberam nos transmitir e a nossa. É interessante ver o dialogismo à plataforma dela: ao longo destes anos de canal, Gabi me ajudou bastante a me construir, ao mesmo tempo que ela também tem se construído com o contato com tantas pessoas ávidas por conhecimento, para se conectar ao que não tivemos acesso. 

Atualmente, também tenho seguido a Luciellen Assis - embaixadora da Seda 2017 - que é incrível no que tange às consciência politica e estética negra, quanto impecável em seus recortes. Quando ela fala de cabelo e moda, faz sempre recortes explícitos de classe, trazendo suas experiências pessoas e seu rostinho de Lunella Lafayette! Suas resenhas de produtos são como uma conversa com uma amiga que tem um cabelo igual ao meu, que compartilha o que funciona ou não para encaminhar à resultante, em vez de me deixar percorrer a um vasto caminho de tentativas e erros.

Luciellen Assis, youtuber e embaixadora Seda 2017

Toda essa trajetória me fez aprender que ideologias contrárias ao senso comum são bastante difíceis de acessar. Muitas vezes o que nos leva a agir

Isso não quer dizer que somos obrigadas a viver explicando as mesmas coisas o tempo todo e a todo o mundo. Isso quer dizer que, tal como as Youtubers Negras, devemos nos abrir para caminhar junto, trocar conhecimento, indicar formas desta pessoa compreender as questões que a envolvem, bem como se apropriar das ferramentas e técnicas de emancipação. O que estou propondo é que equilibremos a noção de que já estivemos (e em outros aspectos ainda estamos) precisando de um empurrão e que nossa luta atual é contra o Labor Emocional.

Se você não puder sentar e conversar abertamente sobre as questões de raça e classe com alguém que está ávida a compreender, não a interpele com críticas e frases impositivas, indique um vídeo e possibilite a ela que encontre seu proprio caminho, livre de seus olhos revirando, censuras e preguiça de lidar. Diga para ela acessar o:

e, assim trilhar sua própria jornada rumo à emancipação!


CONCLUSÃO


Hoje em dia, o empoderamento estético tem sido uma tônica recorrente nas mídias digitais e isso é maravilhoso. Não podemos ignorar que o capitalismo transforma tudo em produto, até nosso ativismo, mas a visibilidade é inestimável. A visibilidade, aliás, nos proporciona acesso às ferramentas e às técnicas para ativamente nos empoderarmos. No geral, o cabelo alisado é sim um teto para o cérebro, mas tudo o que se refere a pessoas e sociedade não pode ser reduzido. Desde que se trate de escolhas, não há problemas, mas temos sempre de nós certificar


Com Fernanda Neves na CCXP 2016: cabelo saudável, mente saudável

Assim, a cada vídeo que elas produzem nos ajuda a redefinir pensamentos, sentimentos, a consciência e o nosso proprio poder de agência, ou seja, é essencial a atuação das Youtubers negras para a nossa geração de pensadoras, ativistas e pesquisadoras. A Gabi, sem dúvidas é uma das minhas heroínas! E você, qual a sua história com youtubers pretas que são #blackgirlmagic?


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