Aphro-ism: Por que precisamos dum veganismo negro?

Arte do projeto Black Vegans Rock criada por EastRand Studios 

Aphro-ism, segundo a teórica Negra e estadunidense Aph Ko, soa como um "aforismo" ou seja, uma verdade em si mesma, ao mesmo tempo que contém seu nome "Aph" e, de certa forma, "Afro"/Negro indicando uma ideologia centrada no pensamento e na experiência negra diaspórica.

Ela afirma que acrescentar o sufixo "ismo" é a abertura para interrogar os "ismos" da cultura pop (como o racismo, sexismo, capacitismo...) e, portanto, norteia os ensaios sobre justiça social, estudos de mídia, teoria crítica da raça e estudos da mulher. Essa multiplicidade de pontos-de-fuga desenha uma nova proposta de diálogo sobre um novo modelo de pensar antigas questões. Isso decorre do fato de Aph ter em vista que apenas novas abordagens podem oferecer mudanças reais e permanentes, dentre os pontos centrais de discussão estão os conceitos de Humanização/Animalização e o Veganismo Negro [Black Veganism].

Aph é mestra em comunicação e estudos midiáticos e produtora digital indie, amplamente conhecida pela criação (e atuação) da webserie Black Feminist Blogger; ela também fundou o movimento Black Vegans Rock a partir da listagem de cem notáveis indivíduos negros que são veganos, não apenas por "estilo de vida" ou "saúde", mas como prática política e ferramenta teórica e crítica. Assim, na empreitada de teorizar a relação entre racismo, sexismo e especismo ela convidou sua irmã, Syl, para pensar junto. Deste diálogo surgiu a coletânea de ensaios chamada: Aphro-ism: essays on pop culture, feminism and Black veganism from two sisters (Lantern Books, 2017, 202p).

Alguns dos ensaios presentes no livro foram publicados entre 2015 e 2016, no site Aphro-ism, bem como um vídeo intitulado Revolução do pensamento [Thinking Revolution] em que Aph Ko descreve "como" e "por que" a sua abordagem crítica é fundamentada na fissura entre os conceitos de "humano" e de "animal". Segundo Aph Ko, a constante comparação entre pessoas racializadas - em especial, negros escravizados - e a exploração dos "animais" pela indústria e ciência é lugar-comum na retórica vegana (branca), e isso indica sua total falta de comprometimento com o antirracismo, já que naturaliza a ideia de  que pessoas racializadas "são como animais".

Aph Ko em Revolução do Pensamento

Se você estiver familiarizada com o conceito de corpo abjeto, desenvolvido por Judith Butler em seu artigo Corpos que pesam, entenderá melhor o que Aph e Syl propõem como "animal": um campo de experiências e identidades desumanizadas que são caracterizadas como "dispensáveis" ou "menos valorosas" e "menos conscientes" que as humanas. Segundo as irmãs Ko, a abjeção em relação ao homo sapiens racializado é fundamentada pela lógica de que o conceito de humano, em si, é eurocêntrico, masculino, heterossexual, ao passo que os demais homo sapiens, que desviam desta norma, são conceitualmente animalizados. Essa perspectiva torna naturalizada e justificada a exploração, exposição, expropriação e todo o tipo de violência simbólica e física aos animais não-humanos e aos "nem tão humanos assim".

Apesar de elas serem completamente contra a ideia de comparar negros aos animais de espécies que não sejam homo sapiens, muita gente não compreendeu sua proposta teórica e a reduziu ao slogan equivocado e sensacionalista: "Aph Ko dá um berro ao afirmar que comer carne é equivalente a fortalecer a supremacia branca". Na verdade é, e não precisamos ser teoricas interseccionais para compreender que a base ideológica de qualquer opressão é a supremacia branca, masculinista, capacitista e imperialista, mas o meu ponto é que o aphro-ism é uma proposta tão radical, isto é, vai à raiz dos conceitos e fenômenos, que a interpretação de texto pode ser um desafio para quem deseja se manter convencional.

Assim como um individuo minorizado está sujeito à violência, não raro, possuem privilégios em algum outro campo que o possibilitam tensionar e fortalecer aquele projeto antropocêntrico. Para Aph e Syl, é exatamente essa visão de mundo colonizadora que justifica a categorização de corpos de "animais" serem comestíveis e invalida a conquista de direitos. Fica evidente, portanto, que as irmãs não estão apenas atacando o hábito individual de comer carne, mas sim, o discurso que viabiliza essa atitude com tamanha naturalidade. Se não é socialmente aceito que comamos nossos amigos, cabe interpelar o porquê de soar natural comer o corpo do animal, bem como seu leite, ovos, além de consumir tudo aquilo que envolve a exploração sem que tenhamos que pensar a respeito "porque, afinal, somos human0s" (ou quase, segundo aquela lógica). Apesar de insistirem na inserção do animal/animalização nas análises e descreverem como o veganismo negro é uma forma de ativismo antirracista, antiespecista e anticapitalista que enfraquece a supremacia branca, o tom é de conversa, de questionamentos teóricos, não aquela abordagem - no geral, do veganismo mainstream  - de que "os negros DEVERIAM ser veganos, pois, do contrário são antirracistas hipócritas". Aph e Syl são feministas, negras, acima de tudo, #BlackGirlMagic propositivas.



Syl estudou filosofia e, atualmente, está escrevendo um relatório explorando as formas de vida, a partir de Wittigenstein. Deste modo, unindo referências acadêmicas e também da cultura pop, a colaboração entre as duas irmãs vai a fundo em questões, desde acantores, personalidades e obras, até o ativismo sustentado por grandes veículos que empregam, inclusive, ativistas negras e negros. Embora citem nomes, a crítica é sempre cirúrgica, honesta e objetiva, de modo que não há espaço para leitor algum interpretar como simples "querela". A propósito, podemos até citar uma frase da filósofa francesa Simone de Beauvoir, que a filósofa brasileira Djamila Ribeiro costuma reiterar: "Quando as pessoas querelam, elas não raciocinam bem". E olha, posso garantir: Aphro-ismo é um brilhante exercício de pensar, impactante e inspirador, que, apesar de chacoalhar nossas convicções, nos dá fôlego para caminhar além dos rumos que elas indicam.

Ao longo de 19 capítulos, as Ko se aprofundam em análises da compartimentalização dos movimentos sociais contemporâneos à medida que apresentam novas maneiras de entender a conexão entre formas de opressão e ainda oferecem caminhos conceituais de avançar as discussões, a teoria e as práticas nos conduzindo até certo ponto. A constante lembrança, nos ensaios, de que é importante olhar para o futuro, procurar por novas soluções e modos de expressão - inclusive a arte da capa - localiza as irmãs Ko como legítimas afrofuturistas e nos impulsionam a buscar nossos próprios caminhos para o futuro.

Aphro-ism é impactante porque rompe as molduras que nos condicionam a ver  os problemas sociais que impactam todos os indivíduos categorizados abjetos, minoritários, de modo virtualmente isolado. Por mais que nos declaremos feministas interseccionais, muitas vezes, a nossa compreensão se atém a observar o fenômeno das conexões e compreender que mulheres Negras existem. Isso não é o suficiente, segundo as irmãs Ko, porque essa ferramenta de análise dificilmente propõe um passo além da relação de poder, da violência no "aqui-agora". 

Nos primeiros capítulos, há a implosão de diversos conceitos que são assentados em nossa militância feminista e, por mais positivo que seja o tom, a falta de solo firme pra pisar gera um desconforto avassalador. Já no Capítulo 5, Por que a confusão é necessária para envolver o nosso ativismo, Aph não oferece respostas fechadas e concretas, mas convida a explorar este terreno de confusão e instabilidade como desafio, vivenciar o desconforto aberta à mudança de perspectiva, aos novos questionamentos, à confecção de uma nova "prova real" e, por fim, uma arquitetura conceitual que incorpore novas vozes e uma teoria que caminhe junto à prática.



Com isso, as autoras entendem que a prática vegana popular [mainstream] não inclui a perspectiva e a experiência de pessoas negras, tampouco respeita nossas lutas. Elas criticam a prática vegana que se recusa a combater a "animalização" como uma manifestação do controle discursivo que sustenta as opressões, afinal, não se trata unicamente de aderir a uma dieta, mas a se propor a aderir a uma nova perspectiva e avaliar constantemente a horrorosa retórica da diversidade que insere corpos racializados, mas dispensa o conhecimento, as subjetividades e visão de mundo.

É particularmente interessante o modo como elas entendem a simultaneidade: apesar de nossos idiomas forçarem a escrita horizontal à direita, gerando por si só a hierarquia de valor que não deveria haver, nossas memórias vestibularescas nos leva ao ReFiClOFaGE: Reino>Filo>Classe>Ordem>Família>Gênero>Espécie, de modo que a especificidade ou semelhança entre os seres segue para a direita! Essa lógica especista se assemelha demais à racista, porque são tecnologias sociais que interferem no modo como diferentes "tipos de humanos" são tratados de forma diferenciada. Se o abismo conceitual entre o "humano" e o "animal" é usado como justificativa para a violência, para as irmãs Ko, não é a afirmação de nossa humanidade que oferecerá caminhos emancipatórios; ao contrário, elas afirmam que é necessário uma mudança no horizonte conceitual, uma redefinição do humano e do animal fora da moralidade e dos discursos liberais atrelados  à colonidade. Nem a desglamourização do "humano" ('somos todos macacos'), nem a elevação do "animal" são modos efetivos de contrahegemonia, portanto, é preciso pensar mais sobre essa questão. Afinal de contas, pensar linearidade e evolução positiva é ineficiente quando se interroga o real:

"(...) Porque ativismo é sempre sobre crescimento e aprendizagem, nunca permanecer no mesmo lugar conceitual por tempo demais" (Aph Ko)

Racialismo, raça e racismo tem sido pensados de forma superficial, pela maioria das pessoas, como se o problema fosse um fenômeno epidérmico, ligado ao corpo, à pele e aos tipos de cabelos. Uma vez que a branquitude é a percepção de si como não-raça, eles e elas tendem a não examinar sua contribuição para o sistema racista; por outro lado, o interesse em "como é ser negro ou negra no Brasil" é uma tônica comum àquelas pessoas que se intitulam "antirracistas" porque se consideram "pessoas boas", crentes que o racismo é um problema moral.

Como o nosso foco aqui não são as pessoas brancas, cabe enfatizar que o sistema atinge a todas nós, de modo que a liberação requer que todas ajamos de forma diferente e que reavaliemos nossas atitudes, comportamentos e visões de mundo. Assim como descrevi a importância do autocuidado, de não responder a trolls e beber água sempre, em Será que você sofre da síndrome da discussão racial fadigosa, Aph e Syl sugerem que paremos de agir como faxineiras de espaços virtuais de pessoas brancas (Capítulo 2), porque isso só mantém a ordem colonial enquanto nos impede de desenvolver nossa epistemologia para o futuro.

Essa busca por uma nova epistemologia desestabiliza até mesmo o #BlackLivesMatter, não desqualificando sua importância, mas mostrando que ele só arranha a superfície do problema, porque, segundo Syl:

"Se nossa visão artística, nossos empreendimentos teóricos, nossos construtos são completamente desvalorizados e sem lugar no mundo, mais carne e sangue nunca convencerá Ninguém de que nós temos o direito de estarmos aqui" (Syl Ko)

Bem, eu sou vegetariana há alguns anos e, apesar de não consumir carne, mas sim os derivados de leite e ovos, fui levada a pensar um pouco diferente. A maioria dos alimentos convencionalmente considerados sofisticados, fora a socialização em si, são baseados em comer carne; sair para comer em lugares convencionais, ou até mesmo na casa de familiares vira uma questão de incômodo para a maioria das pessoas. Se você é uma mulher, possivelmente esta mudança na dieta se torna perceptivelmente política em ambientes familiares, porque todos questionam os porquês da nossa escolha, se você está substituindo a proteína anima, então começam a argumentar com base em falsa-simetria (por exemplo, passam a ver as plantas como seres vivos tão sensíveis quanto os animais que mais a frente comerão), insistem que somos radicais, "que é uma fase" e que, ele ou ela "não consegue comer/não consegue cozinhar sem carne". Esse festival de privilégio "humano" informa o quanto os achismos são parte inalienável da lógica a qual estamos combatendo. E, particularmente, me fizeram ter consciência das tecnologias de gênero tensionadas duma só vez.

É claro que não existe militância perfeita, mas a autocrítica pontuada por Syl, em sua jornada de consciência racial, indica a importância de focar na trajetória. Incluir os conceitos de humanização/animalização deve estar somado à abrir-mão de não pensar sobre as opressões, isto é, não basta não comer carne, se você não enxerga problemas em Pokémon-Go. Embora nós não sejamos criadoras dessa lógica colonizadora, o fato de pertencermos a grupos minorizados não nos inibe de reproduzir discursos que fortalecem a matriz de opressões (mesmo que tomando performance de branquitude emprestada a juros).

Aph Ko

Ainda que apresentem o veganismo negro como uma proposta política mais eficaz que a maioria das outras, Aph e Syl Ko não ignoram as dificuldades de seguir contra a corrente de convenções, e isso é muito animador. Não raro, as formas de militância de pessoas oprimidas são tão ansiosas por mudanças que acabam agindo de modo impositivo, revirando os olhos e colonizando a qualquer preço e reduzindo seu caráter propositivo, dialógico e construtivo. Generosidade de compartilhar conhecimento é o completo oposto de BrancoExplica e de OmiExplica, que desejam impor o que é melhor para nós; dito isso, Aph e Syl insistem que uma horizontalidade radical em todos os sentidos, afinal:

"Na nossa imaginação cultural, a pior coisa que se pode ser é um animal. E ninguém sabe disso melhor que os negros, que há gerações são chamados de animais pelos brancos, são maltratados e torturados” Aph Ko via HuffPost

Se o racismo promove uma equiparação discursiva especista, uma nova forma de compreender e se relacionar com o "animal" é um desafio da comunidade negra que está empenhada em combater as desigualdades desde a sua raiz. Além do mais, à medida que nos focamos em nosso comportamento, bem-estar e leituras, menos tempo temos para organizar "bagunças alheias", sugere Aph no Capítulo 2. Isso também é verdade no que tange o trabalho gratuito em redes sociais, que são "gratuitas", mas exigem demais de ativistas: "quando um produto é grátis, provavelmente você é o produto".

Em suma, o tom de conversa nos capítulos nos convidam a nos apropriarmos de aportes próprios, dialogando de maneira efetiva com a teoria, a cultura pop e nossas práticas cotidianas. Com uma linguagem acessível e evidente rigor acadêmico, as irmãs Ko bagunçaram as minhas convicções tão profundamente que não demorei a compreender que "confusão é um sintoma da descolonização". E é por isso que recomendo a leitura, mesmo para quem está menos familiarizada com o inglês: não há como ser a mesma depos do Apho-ism, nem em teoria, nem em prática.


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Embora eu tenha lido em ebook (que recomendo pela praticidade de acesso imediato ao dicionário!), a edição física tem folhas em papel reciclado, devido à proposta de engajamento da editora, que publica, em geral, livros relacionados ao veganismo como teoria e prática política.




REFERÊNCIAS


BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do"sexo" in LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 2.ed. (Compre aqui).
KO, Aph; KO, Syl. Aphro-ism: Essays on Pop Culture, Feminism, and Black Veganism from Two Sisters (English Edition). New York: Lantern Books, 2017. (Compre aqui)
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? Disponível em: <www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/quem-tem-medo-do-feminismo-negro-1920.html>.
TERTO, Amauri. 'Black Vegans Rock': Conheça Aph Ko, ativista que luta pela presença negra dentro do movimento vegano. Disponível em: <www.huffpostbrasil.com/2016/05/10/black-vegans-rock-conheca-aph-ko-ativista-que-luta-pela-pres_a_21695610/>.
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