Cammie Gilbert é o notável marco do Gothic Metal!

Oceans of Slumber: À dir - Dobber Beverly (bateria), Sean Gary;(Guitarra & Vocais), Cammie Gilbert (vocal), Anthony Contreras  (Guitarra & Vocais), Keegan Kelly (Baixo & Vocais). (faltou Uaeb Yelsaeb, responsável pelos teclados/sintetizadores)

Apesar de o Heavy metal ser um campo hostil, minha formação adolescente foi enraizada na cena do metal, especificamente, em território capixaba. No caso, trata-se dum pertencimento à "cena", em grande parte, virtual devido às limitações da idade, ao racismo engendrado, à nerdiandade e às experiências frustradas em montar bandas - o que me deu espaço para muitas reflexões.

Além disso, cenas locais ligadas ao metal e a suas vertentes são completamente guiadas por valores tradicionais e supremacistas que se tornam verdadeiros modos de vida. Um dos gêneros em que isso é mais notável é o Gothic Metal e o Doom.

"Encontre algo que ame e deixe que isso lhe mate" (Kinky Friedman)

HIPER-FEMINILIDADE COMO TECNOLOGIA DE GÊNERO RACIALIZADA

De modo geral, Gotchic e Doom são gêneros são mais teatrais e tributários do gótico literário (século XIX) que foi uma resposta ao Iluminismo (século XVIII), que valorizava a razão, a objetividade e a lógica, e não trouxe soluções às angústias do âmago burguês. Esse estilo é marcado pela valorização do inconsciente, das experiências emocionais e por se apropriar de narrativas celtas e vikings para marcar seu centro identitário, afinal, a resposta do Romantismo não foi mera oposição: ele ainda partia dum ideal de sujeito centralizado, com identidade essencializada, presa ao passado glorioso dos castelos, círculo arturiano e magia (Claro que há uma profunda contradição nisso, que não abordarei neste texto pra não estender a contextualização).

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As bandas de Gothic Metal mainstream tendem a ser constituídas por homens instrumentistas, (sendo que ao menos um deles deve encarnar a fera com seu vocal gutural), e uma vocalista principal que deve representar a pureza virginal lânguida e a inocência púbere. Noutras palavras: há uma moldura que possibilita apenas às mulheres dentro do padrão de feminilidade, passividade, vulnerabilidade, fragilidade e pureza, interpretar esse papel.

"Não sei se eu poderia dizer que sou completamente headbanger, porque não sei o que isso significa" (Cammie Gilbert via  Invisible Orangers

Outro ponto relevante é que o timbre das vozes também é um sutil requisito que leva o papel de "bela" é a ser sempre performado por mulheres que já eram consideradas belas para os poetas românticos: alvíssimas, macérrimas e "delicadíssimas". Observa que meu exagero no uso de superlativos objetiva conceituar a presença de mulheres no Gothic e Doom metal como performance de Hiper-feminilidade, ou seja, destacar o modus operandi da tecnologia de gênero racializada.

Essa estilização é um excesso que reafirma padrões de sexo-gênero e relaciona o feminino (sexo biológico) aos problemas com o pai (complexo de Elektra), ao horror simbólico do estupro (fantasmas, monstros, estado de sítio) e o retorno do recalcado (caverna, mãe terra). Os covers de "O Fantasma da Ópera" indicam que as perguntas e respostas que constituem a raiz do heavy metal ( blues ) é apropriado como tendência à imagem "bela e a fera" (beauty and beast) profunda e silenciosamente excludente. Não é de admirar que garotas racializadas abandonem o estilo - na pior das hipóteses - busquem se aproximar dos padrões de beleza brancos.


Essa tentativa de aproximação é uma jornada inconclusiva porque o paradigma mais sólido é a racialidade e o racismo. Épica, After Forever, Within Tamptation, Nightwish, Lacrimosa, Lacuna Coil e Theatre of tragedy são algumas das bandas que eu e minhas amigas mais ouvíamos no ensino médio e, assim como a maioria das underground, todas elas refletem o mesmo paradigma de raça/gênero. Gostar disso só foi possível porque eu evitava enxergar as vocalistas de bandas locais exagerando em cosméticos, corpetes e tratamento capilar e porque não tardou até as pesquisas me levarem às bandas formadas por mulheres (principalmente The Donnas e Scatha) e isso, sem dúvidas, foi mais significativo.

Apesar de estilos próximos, como death metal e thrash metal, propiciarem o deslanchar duma Angela Glasgow (segunda vocalista do Arch Enemy), duma Rebecca Scwab (primeira vocalista da Scatha) e duma Angélica Burns (Scatha) a presença de mulheres negras é muito menor que a de brancas. Isso tanto evidencia o privilégio de escolha, quanto a toxidade que os padrões de feminilidade branca impõem às mulheres, em especial negras: impotência, intervisibilidade e inexistência. É evidente que esse panorama é replicação das tecnologias sociais como racismo, sexismo que regem o mundo no qual o nicho, chamado aqui de cena, está inserido.

CAMMIE GILBERT E O NOVO PARADIGMA DO GOTHIC METAL

Nascida em Houston (Texas), a vocalista do Oceans of Slumber, Cammie Gilbert, representa um imenso avanço nas fronteiras tradicionais de vertentes do heavy metal. Isso porque ser uma mulher negra no metal é vivenciar o racismo engendrado no nicho e os constantes apontamentos na comunidade negra que ainda busca por "autenticidade negra". Sua presença foge aos padrões de hiper-feminilidade e o poder de sua voz, mesmo quando soa melodiosa, permeia o gênero de outros estilos e abre uma nova era no metal meainstream.

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Sua posição de evitar rótulos é fruto do amálgama de influencias musicais proporcionada pela programação da MTV e, também da comunidade batista onde prevalece o hip hop, R&B e country. EM entrevista para o site Invisible Oranges,  em 15 de março de 2016, Gilbert afirmou que a sua busca é muito mais pela sensação que pelos limites dos gêneros musicais.

Segundo a equipe Invisible Orange, não apenas a aparência física de Cammie Gilbert significa uma progressão do metal, tradicionalmente dominado por homens, como seu background adiciona mais do bravado (típico do heavy metal e hard rock) e avança em relação ao estereótipo de
hiper-feminilidade associado à narrativa expressada por vocais líricos e orquestras.

A performance de Gilbert é impactante porque é construída junto à melodia. Em entrevista ao LiveReviewer, ela afirmou que não são gestos programados, porque  "sua dança expressa o modo como sente a música no momento". Essa série de emoções refletidas nos gestos e corporeidade trazem a certeza de espontaneidade e paixão ao público e rompem com o padrão de apatia e languidez do gothic metal tradicional. Ao ser interpelada sobre o modo como classifica o gênero da banda, ela respondeu que percorrem um caminho eclético porque "o prazer não tem fronteiras musicais".

Fonte: site oficial da banda 

Realmente, o segundo álbum de estúdio do Oceans of Slumber e primeiro com Cammie, Winter (2016), apresenta elementos de rock progressivo, gothic, doom e associa a expertise da cantora ao que estava sendo feito antes, de modo que classificações podem ser mais eficazes se identificarem elementos faixa-a-faixa. Há oscilações nas passagens, que podem soar clean ou sujas, sinfônicas, marcadas por contratempos e melodias complexas e muito feeling, tudo contribuindo para uma visão de música como experiência, muito além das repetições. Numa emocionante passagem da entrevista ao Invisible Orange, Cammie relatou que:

Estamos aqui para vivenciar e proporcionar a catarse ao público, também estar disponível para mostrar suporte para as coisas para as coisas que as pessoas estão passando. Embora eu não tenha tido nenhum modelo real no qual pudesse me espelhar, os comentários nas redes sociais demonstram que a minha presença é importante. Uma garota negra escreveu que se identificava com o que eu sou, onde estou e com o que tenho feito. E ela escreveu: "obrigada, agora você é um modelo pra mim" e isso é muito bacana.

(GILBERT via INVISIBLE ORANGE - tradução livre)

O fato de Gilbert ser negra faz com que muitos jornalistas e o público geral demandem explicações e enxerguem tanto "muita leveza" quanto "elementos de R&B" no jeito de cantar, mas, por outro lado, é um notável marco no nicho do metal e aponta novos rumos para o gothic metal.

Ainda que não seja a primeira mulher negra à frente de bandas "extremas", Cammie Gilbert se mostrou icônica porque quebrou muitos paradigmas com uma naturalidade admirável. No estilo "bela e fera", ela e o guitarrista Sean Gary formam um dueto com uma nova forma estética pro gothic metal e tornam a atmosfera do single Winter teatral mesmo sem a imagens. O single que dá nome ao álbum, "Winter" tem uma construção clássica de gothic e é tão viciante que só perdeu o posto de mais música mais ouvida por mim porque a Sammus lançou dois discos em 2016.

Em suma: Cammie Gilbert é uma jovem negra com a voz melodiosa, mas também com timbre potente e presença, que atualiza o feeling dum estilo musical dominado por brancos, e não apenas isso; Ela muda os paradigmas de dentro do espaço privilegiado (metal mainstream) e, sem dúvidas, veremos um impacto positivo nos próximos anos. Afinal de contas: a própria cantora afirma que "quer ter a certeza de que o que [o público] recebe seja positivo e empoderador, não qualquer coisa chamativa e descartável". Você tem dúvidas disso?




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