Raça, bissexualidade e "transar com gente Negra não é antirracismo"

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Black Sails: Eleanor Guthrie, Anne Bonnie e Max

Existe uma ansiedade LGBT por se ver refletida em algum lugar, bem como a necessidade impositiva dos autointitulados heterossexuais de impor identidades ao que parece "fora da conformidade". Em muitos círculos progressistas, a homossexualidade é reconhecida como legítima forma de amar e de se relacionar, principalmente se isso significa manutenção de modelos tradicionais de gênero (femme + butch, gay "afeminado", lésbica "mal humorada"), de monogamia e de monossexualidade (orientação sexual direcionada a só um sexo-gênero). Apesar de denotar aceitação, muitas vezes, o indivíduo heterossexual/cisgênero acredita que a questão trans* se resume ao entendimento (ou falta dele) que o indivíduo cis tem, e a mesma postura é identificada no que diz respeito à bissexualidade.

Não raro, a cultura pop reafirma o discurso de que bissexuais são pessoas indecisas, "sem personalidade" ou convicção e de que bissexualidade não existe porque "pessoa gosta mais de....... do que de .......... Exemplo de apagamento bi é Orange Is The New Black e a queridíssima do público White Queer: The L Word. Somado ao queerbaiting, o discurso que trata a bissexualidade em termos ofensivos é um dos pilares do arco afetivo de duas mulheres da série britânica Black Sails que nem é sobre mulher tampouco sobre sua sexualidade, mas tem um pouco de ambas.

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Eleanor (Hanna New)

MULHER COLONIZADORA: ELEANOR
Se você já assistiu a série, sabe muito bem quem é Eleanor Guthrie. E, mais ainda: é provável que admire sua nobreza e força de caráter, afinal "ela é uma mulher que vence as condições ligadas ao seu sexo/gênero numa época e lugar hostis". Além disso, ela é filha do governante da Ilha de Nova Providência (olha a meritocracia) e chefia o comércio na ilha flertando com o perigo: ora a coroa inglesa, ora os destemidos piratas. Bem sabemos que a série muito mais é sobre homens que desbravam o mar (em especial o Capitão Flint), mas como já sugeri no texto 10 problematizações em séries LGBT, há discussões válidas. Há quem afirmou até que Black Sails é a série mais Queer da TV!

Sócia de piratas, Guthrie vive à espreita dá metrópole visto que pirataria é crime passível de morte. Então o lugar que ocupa é duas vezes hostil: tanto por enfrentar piratas, quanto a própria Inglaterra. Para sustentar a pressão, ela precisa se impor, blefar, medir forças e manter a palavra de honra e conquistar o respeito dos homens. Respeito que nunca é permanente, nem blindado do escárnio, mas um respeito que investe de poder relativo, sobretudo no campo afetivo-sexual.

Eleanor equilibra a postura de imposição e de feminilidade padrão, de modo que performa um senso de afetividade colonizador: exploratório e contextual. Na primeira temporada, acompanhamos a narrativa da personagem já no meio da ação, inclusive ela não tem grandes flashbacks, então o que sabemos é que um pirata (branco) renomado - Charles Vane - tem como única fraqueza sua devoção à governadora (ao longo da série não é incomum Eleanor usar a sexualidade como arma). Outro affair que ela mantém, muito mais complexo, é com a cafetina (negra): Max (Jessica Parker Kennedy).

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Eleanor e Max

Devido ao fato de Eleanor ser uma personagem secundária e Max terciária, não há informações sobre o início da relação entre elas nem mesmo do background individual. Ainda assim, nos raros momentos em que sua relação é exibida em tela, uma contradição fundamental se evidencia gradativamente. Enquanto Eleanor foi a criança branca, roliça, é que cresceu numa "Casa Grande" com o pai que a amava, Max foi a criança negra que resultou de uma relação sexual entre a mãe negra escravizada (possivelmente violentada) e o pai branco, então ela cresceu observando seu pai ser pra irmã branca o que ele não seria nunca pra ela. A base da relação entre elas é o modo como cada uma vivencia e objetiva sua sensação de desempoderamento por serem mulheres.

Quando estão juntas, ambas nos dão indícios de seus traumas: Max é uma sobrevivente e deposita tudo nessa empreitada; Eleanor, por sua vez, é afetivamente impotente tanto que usa os relacionamentos como fonte de exploração, no caso de Vaine para proteção de seus interesses, no caso de Max para confessar suas fraquezas, receber amor e sentir-se forte. Sendo assim, as relações de Eleanor se pautam muito mais pelos interesses imediatos, que na expressão da afetividade. Sempre que precisa de compreensão, ela recorre à Max e gradativamente a troca de afetos parece uma permuta desleal; Eleanor performa a perversidade em relação à amante como resposta ao ressentimento (trauma) de não poder ter sido criada pela mãe e não poder ter confiado no pai. Perversidade que se ancora no desnível social.

Estar numa relação em que o afeto funciona como permuta, indica que o que está em jogo é o poder, não a sexualidade nem o afeto, e isto faz de Max única e simplesmente um objeto de prazer de Eleanor. Por sua vez, sujeitar-se a Eleanor mostra o quanto se aproximar do poder é prioritário para Max, até mesmo por sobrevivência. Isso parece lógico, porque supomos que Eleanor seria uma espécie de protetora. Uma frase do Cap. Flint se encaixa nisso:

-Todo mundo é o monstro de alguém.

(Cap. Flint)

Eleanor se torna monstro de Max, quando o ressentimento de Vane o leva a acorrentar a - até então prostituta - e permitir que seus homens a violentem sexualmente. Ora, apesar de saber disso, Eleanor foi conivente e deixou sua amante por dias naquela situação degradante. Até que Anne Bonny - uma lendária pirata - usa de seu privilégio e se torna a branca salvadora de Max. Assim como Max, a pirata passou por incontáveis situações abusivas e precisou se tornar badass para sobreviver. Ao longo de sua trajetória, ela conheceu um pirata - Jack - que não a diminuía por ser mulher e eles se casaram. Esse casamento é muito mais um ato de lealdade selado entre os dois que outra coisa, porque o amor que Anne Bonny sente por Max é mais cúmplice e sublime.

Muitas vezes, Max é descrita como lésbica, enquanto Guthrie e Bonny são lidas como bissexuais. A meu ver, a confiança de Max se direcionar às mulheres e, consequentemente sua entrega, e isso faz com que o público interprete a sexualidade isolada do fato de ela ser mulher Negra num contexto histórico em que a escravidão é real e gerenciada por homens, além dos vários abusos sofridos - diferente de suas amantes. É, sem dúvidas, um discurso perigoso o de que o trauma direciona orientação sexual, mas ele está mais contido na narrativa que na minha concepção de identidade.

DESEMPODERAMENTO RELATIVO VS. CONCRETO: MAX
Um dos traços mais marcantes de Max é sua hiper-feminilidade e como, após tornar-se dona do bordel, ela se refere a essa performance como uma arte a ser ensinada porque é rentável. Chamo aqui de hiper-feminilidade o exagero dos traços duma feminilidade padrão, desde a voz infantilizada, maquiagem, destaque nos "atributos femininos" (seios, pernas, silhueta) até o uso da sexualidade como arma. Sem dúvidas, por ser negra, não é uma opção o casamento então, contra a opressão concreta e o desnível de poder, o que ela tem para negociar é uma tentativa de proximidade com o ethos vitoriano, aquela feminilidade estereotipada.


Quando Eleanor se torna cúmplice do sofrimento infligido à Max por Vane e Anne surge como uma escolha afetiva mais acertada, um novo arco se inicia (mais um que não terá desfecho). Max não tem nada a perder em termos de dignidade ou capital social, portanto é livre do ponto de vista da moral sexual e passa a ter uma relação afetivo-sexual fluida com Anne e o companheiro Jack. Assim, preferir se relacionar com mulheres - e negociar com os homens - não diminui a bissexualidade de Max, nem de nenhuma das mulheres com quem se envolveu.

Mais uma vez, Max se relaciona com uma pessoa que parte de lugar social diferente do seu e usa sua noção das práticas e normas sociais para libertar a consciência de sua amante. A autopreservação é um traço essencial da personalidade dela, assim como sua busca por se aproximar de quem tem poder e, principalmente a luta por melhores condições materiais. Diferente de Eleanor, cuja ambição é  o poder em si, Max é leal e valoriza todo benefício feito em seu favor e pensa coletivamente. Ainda que se veja obrigada a trair alguém que ama, ela sempre os protege, porque certamente sabe a fronteira entre o objetivo imediato e o final.

Mercantilização do afeto

Apesar de não sabermos os detalhes sobre as relações de Max - inclusive porque seu arco com Anne é puro queerbaiting- é fato que a personagem não foi feita para ser gostada. Ela não tem tempo em tela o suficiente para desenvolver a potencialidade de suas emoções e, assim, o público se apropria dos tropos racistas e do seu preconceito em relação à bissexualidade e a classifica em termos de racialidade: sensualidade exótica, realizadora dos prazeres carnais, amoral e traiçoeira.

Naturalmente, a oposição discursiva é Eleanor Guthrie, que não é uma donzela guerreira, tampouco uma donzela em perigo. A "Rainha dos ladrões" nada mais é que uma mulher que compreendeu o processo de tornar-se mulher - branca - e vive os privilégios em todas as esferas (apesar de sua profunda solidão). O foco da série nos atributos morais de Eleanor evidenciam que a perspectiva de narração de seu arco afetivo neutraliza seus privilégios e ignora o labor emocional que é demandado de seus amantes, sobretudo, Max. Como uma mulher Negra, letrada e com uma identidade bem-resolvida, Max corresponde a uma categoria social que não é protegida, auxiliada e nem vista como frágil, nem por Eleanor, nem mesmo pela Anne (se comparar à obrigação moral para com Jack).

Sua experiência afetivo-sexual com Eleanor evidencia que a egoísta governadora não via em Max uma parceira, ou mesmo uma pessoa digna de receber amor - entra aqui também o fato de "a pobre menina rica" não ter aprendido a amar - e isso evidencia que o gosto pelo exótico e o projeto emocional dela não tem nada além do depósito de seu peso emocional noutros ombros. Isto é, a representação de Max e de suas relações com Eleanor e com Anne, mais do que conferir visibilidade ao B em LGBTQ+ de uma mulher racializada, é a manutenção do peso emocional exigido de mulheres negras como corpo social.



O dia 28 de junho é o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Em homenagem à data, durante o mês de junho, portais nerds feministas se juntaram em uma ação coletiva para discutir temas pertinentes à data e à cultura pop, trazendo análises, resenhas, entrevistas e críticas que tragam novas e instigantes reflexões e visões. São eles: Collant Sem Decote, Delirium Nerd, Ideias em Roxo, Momentum Saga, Nó de Oito, Prosa Livre, Valkírias e Séries por Elas.
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