10 livros essenciais para estudar HQ sendo Feminista Negra Nerd

Minha pilha real!

Desde que ingressei na universidade pública, para cursar letras tenho em mente o quanto a aprendizagem é um caminho transformativo e libertador. O curso de Letras Português (língua portuguesa e respectiva literatura) é mais amplo que a maioria das pessoas acredita ser, então meu desafio ao longo da graduação foi o de testar essa elasticidade e me propor modos prazerosos de experienciar os pilares pesquisa e extensão. Noutras palavras, meu objetivo sempre foi estudar o objeto pelo qual eu fosse capaz de me apaixonar no processo, fazer das matérias obrigatórias links duma jornada de pesquisa e transformação de meus pensamentos. Neste sentido, os quadrinhos foram o ponto de ancoragem afetiva que nortearam minha primeira fase da formação como pesquisadora: na primeira iniciação científica, apaixonada pelo horror e envolvida com a produção underground deste gênero (Almanaque Gótico), comecei o processo de entendimento da linguagem, o porquê entendo HQ como arte, mas não é literatura, métodos de análise e de compreensão e, claro, o porquê de tanta atração pelo gênero horror.

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VI FiFi - congresso sobre ficção científica no qual falei sobre Y: O último Homem (2013)

Outro ponto marcante, foi inserção no campo científico através das Jornadas Internacionais de Histórias em quadrinho, promovida pelos professores Waldomiro Vergueiro, Nobu Shinen (USP) e Paulo Ramos (UNESP) na Escola de Comunicação e Artes (ECA- USP) bienalmente. Outro evento acadêmico importante foi Jornadas de Romances Gráficos promovido pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, coordenado pela professora Regina Dalcastagnè (UnB).

Considero os eventos formativos porque a comunidade acadêmica interessada em quadrinhos se reúne sem ter que justificar seu cospus e sem ter que explicar quem é Stan Lee ou a trajetória da heroína Fóton, o que torna mais dinâmica e verdadeira a troca de conhecimento. Verdadeira no sentido de que as pessoas conhecem o objeto e o método, então o que sugerem é realmente material relacionado ao que você disse. É maravilhoso não ser única numa mesa de congresso falando de quadrinhos pra plateias que só amam ler os clássicos.

Nesse processo, escrevi artigos sobre elementos surrealistas em Os Livros da Magia (Vertigo), Apropriação do gótico no arco Hábitos Perigosos de Hellblazer (Vertigo) e o backlash que a Nova Capitã Marvel representa. Na última iniciação científica, fiz um estudo comparativo entre a representação de duas heroínas negras: Tempestade (1975) e Destiny Ajaye (2008). Por fim, minha monografia foi sobre O Grotesco feminino em Y: o Último homem (Vertigo).

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Destiny Ajeye é a protagonista da série Genius, ilustrada por Afua Richardson. Falamos dessa HQ aqui.

Atualmente, estou finalizando o mestrado em literatura sobre representação de personagens negras nos quadrinhos. A partir dessa trajetória acadêmica (que também é pessoal), escolhi dez obras essenciais do meu ponto de vista como mulher negra feminista nerd. Sem dúvidas, a limitação numérica desta lista fez com que outras obras saíssem, e que me ater a quadrinhos também eliminou outras.

Obs: a ordem está relacionada à historicidade, seguida de métodos de análise e, por fim, análises em si.
Obs2: Além das imagens, inseri links nos quais vocês podem encontrar as obras.


10. Quadrinhos: história moderna de uma arte global (2014)

(Dan Mazur e Alexander Danner)
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Escrito por Dan Mazur e Alexander Danner, Quadrinhos: História Moderna de uma arte global é uma narrativa ampla sobre o as cinco últimas décadas da arte sequencial. Abrange comics, fumetti, mangá e toda a variação franco-belga, de modo que é útil tanto para te ajudar a escolher o seu foco, quanto para consulta de conceitos e relações, aproximações e inspirações entre as obras. Além disso, as ilustrações têm ótima qualidade, referências, explicações e tornam o texto mais agradável (é sempre bom ter imagem quando falamos de HQ, né?). O fato desta tradução ter uma revisão técnica assinada pelo Waldomiro Vergueiro eleva ainda mais seu valor acadêmico.

9. Superdeuses: mutantes, alienígenas, vigilantes, justiceiros mascarados e o significado de ser humano na era dos super-heróis (2012)

(Grant Morrison)
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Superdeuses é um imenso ensaio no qual o próprio Grant Morrison conversa conosco sobre sua experiência pessoal e profissional na cultura pop. Ele relaciona os produtos culturais com sua trajetória desde a infância, informa valores, Marcos históricos e sempre conecta com uma visão sócio-politica. É verdade que ele é um dândi - um vaidoso - e que não se envergonha disso, portanto ele personaliza as informações, floreia as conexões de quadrinhos, música, literatura e moda e faz isso numa ótima costura. Esse livro dá uma panorâmica dos costumes e revela o modo como os quadrinhos se constituíram e se mantém como substrato da nossa sociedade.

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8. Marvel Comics: a História Secreta -2013

(Sean Howe)

Marvete que sou, sem dúvidas vejo Marvel Comics: a História Secreta como excelente fonte de pesquisa. O jornalista Sean Howe reuniu entrevistas, relatos e tudo o que você possa imaginar para tecer essa narrativa sobre a história da Editora Marvel, desde seu primordio. Sua descrição é bastante sincera e explica rodas as crises economicas e editoriais alem de detalhar o modo como o império Marvel foi construído a partir do esmagamento físico, emocional e profissional de muitos artistas que passaram por ela. Há anconragens fantásticas entre a descrição de artistas, empresários, descrição do mercado, criação de personagens e isso tudo revela o que há de melhor é o que há de pior nesta corporação.

7. Comics da imigração na América (1994)

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Normalmente estudos sobre HQ ignoram que a história dessa linguagem é indissociavel da história dos E.U.A e, por história dos EUA quero dizer as contradições sociais geradas pela imigração e pelo sistema escravocrata. Comics da Imigração da América é composta por capítulos que servem como ponto de partida para quem se interessa por história cultural, identidade étnico-racial e origem/construção e reiteração dos estereótipos racialistas.

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6. MULHER AO QUADRADO: AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NOS QUADRINHOS NORTE-AMERICANOS: PERMANÊNCIAS E RESSONÂNCIAS (2007)

 (Selma Oliveira)

Resultado da extensa pesquisa de doutorado da professora Selma Oliveira, Mulher Ao Quadrado é essencial para qualquer pesquisadora brasileira interessada em quadrinhos. Isso porque ela não apenas constrói um panorama da representação de heroínas nos comics entre 1895 - 1990 como analisa o entrelaçamento, a repercussão com as ideologias concorrentes, conquistas de direitos e o imaginário social que tanto constrói os signos apresentados nas HQ como é regida por eles. Oliveira também analisa a aparência de diversas personagens à luz dos elementos visuais carregados de discursos sobre a mulheridade. Outro aspecto que torna essa obra relevante para nós é a relação que ela estabelece também com os fatos do Brasil incluindo as consequências do mercado dos EUA aqui e a nossa recepção e resposta ao "lá".

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5. Black Comics : politics of Race and representation (2013)

(org. Sheena Howard e Ronald L. Jackson II)

Essa coleção de artigos e ensaios intitulada Black Comics (sem tradução), organizada pela Sheena Howard (pesquisadora negra queer) e Ronald L. Jackson II recebeu o prêmio Eisner em 2014, na categoria Melhor trabalho acadêmico, por ser uma obra tão importante, necessária e bem construída. Os artigos são divididos em três partes: quadrinhos até aqui (a diferença entre Black comix e Black in The comics, Jackie Ormes e tiras de jornal), representação de raça e gênero (Vixen, Pantera Negra e discursos de raça e gênero) e quadrinhos como comentário político (exemplos e métodos de analise retórica dos quadrinhos). São todos ensaios acadêmicos e cobrem uma ampla área de estudos e interesses: autores, personagens e tudo o que possa interessar a acadêmicas pretas nerds no processo de construção de negritude a partir de HQ. Apesar desta obra se restringir ao contexto estadunidense, ela é muito valiosa para pensar no modo como a diáspora de certa maneira converge experiências.

Resultado de imagem para 4. Linguagem HQ: conceitos básicos4. Linguagem HQ: conceitos básicos (2012)

 (Nobu Chinen)

A maioria de vocês deve conhecer como livros básicos o Desvendando Quadrinhos (Scott Mccloud) e mesmo o Quadrinhos e Arte Sequencial (Will Eisner), que são clássicos. Por esta razão, eu acredito que Linguagem HQ possa ser uma indicação útil pra você (caso não conheça os clássicos, recomendo leia também!). Durante o doutorado, o professor Nobu Chinen (USP) lançou esse livro panorâmico que, ao longo de 7 capítulos, discute de forma breve e com referências visuais, o conceito de HQ, elementos da linguagem, formatos, mercados, diagramação e os processos de produção. É recomendável para artistas e para estudantes iniciantes porque introduz os conceitos e tudo o que é necessário para estudar HQ. Também é recomendado para você que já conhece bem a linguagem e estuda há tempos. Isso porque a obra de Chinen é uma excelente referência para consultar - e, vai por mim, é sempre bom ter esse livro à mão quando for escrever artigos!

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3. Risca #1 - memória e política das mulheres nos quadrinhos (2015)

 (várias autoras)

Resultado de imagem para Risca #1 - memória e política das mulheres nos quadrinhosSe você chegou a este blog certamente já ouviu falar do site Ladys Comics. A equipe é formada por Mariamma Fonseca, Samara Horta e Samantha Coan, amigas apaixonadas por quadrinhos num mundo em que as pessoas ainda pensam que HQ é coisa de garotos brancos heterossexuais. No site elas apresentam, divulgam e analisam artistas e acadêmicas que se identificam como mulheres, bem a contribuição de seus trabalhos no âmbito nacional e internacional. Neste intuito, lançaram em novembro de 2015 a revista Risca (tornada possível via financiamento coletivo). Esse primeiro volume trata da presença de mulheres no mundo dos quadrinhos a partir duma perspectiva transversal e interseccional, ou seja: conferem visibilidade à produção artística e acadêmica de mulheres negras, lésbicas, trans e ainda discutem o modo como astistas abordam o aborto em HQ. Os textos abordam os temas de forma tão profunda e séria quanto responsável e acadêmica (não academicista!) que já li a minha milhares de vezes. A postura editorial da revista indica rumos para o estudo e produção de HQ por mulheres e inclusive esse cuidado reflete o potencial político que essa equipe materializa na organização de seus eventos.


Lady's Comics
O Encontro Ladys Comics foi marcado pela interseccionalidade. Na imagem acima o registro a palestra “Jornalismo e Quadrinhos”, mediada por uma das fundadoras do Lady’s Comics, a jornalista Mariamma Fonseca, com as convidadas Rebeca Puig (Collant Sem Decote), Fernanda Café (Pac Mãe), Gabriela Borges (Mina de HQ) e Daniela Razia (Preta, Nerd & Burning Hell). Confira a cobertura do Delirium Nerd.

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2. Má feminista (2016)

 (Roxane Gay)

Feministas brasileiras academicas que se formaram na década de 1990 se construíram a partir do clássico Tendências e Impasses, organizado por Heloísa Buarque de Hollanda. Tendências e Impasses é obra fantástica que possibilita a feministas de qualquer área do conhecimento encontrem seu rumo acadêmico. Eu arrisco dizer que Má Feminista tem o mesmo potencial, para os novos tempos, ao menos para estudantes da área de humanas. Isso porque os ensaios da escritora e quadrinista Roxane Gay, partem do pessoal para o político entrelaçado sua experiência pessoal como mulher, negra, bissexual e acadêmica. Partindo de sensações desse nosso tempo, Gay questiona os paradigmas do feminismo como moldura inatingível à medida que revela e analisa seus prazeres culpados (guilty pleasure) da cultura pop (livros, filmes, músicas). Ela tanto discute o conceito de feminismo como teoria e pratica, quanto evidencia que nossos conflitos são atravessados pela cultura de massa. Seu processo de formação como pessoa, acadêmica e público é costurado com muito humor, sagacidade e acidez de modo que oferece a você leitora um diálogo sincero sobre ser uma "feminista imperfeita", mas acima de tudo, com senso crítico aguçado e autocrítica saudável.

Se vocês buscarem análises desta obra, sem dúvidas encontrarão muitas críticas à tradução brasileira. Minha edição é essa (editora Novo Século) e concordo com as críticas. Apesar disso, sem a tradução muita gente não teria acesso ao conteúdo então recomendo ainda assim. Se você puder ler em inglês recomendo que compre, afinal no geral o valor não tem se diferenciado tanto assim. Em suma, seja como for, leia essa obra apaixonante e passe a seguir Roxane Gay no twitter e nos quadrinhos de Black Panther: World of Wakanda!

1. To Write like a Woman (1997) 

(Joanna Russ)

Resultado de imagem para to write like a womanO primeiro livro que a minha (aquela época potencial) orientadora sugeriu que eu lesse foi To Write Like a Woman: Essays in Feminism & Science Fiction (sem tradução), da escritora de ficção científica feminista Joanna Russ. Russ se posiciona do inicio ao fim como escritora e crítica feminista judia e lésbica e, principalmente, como feminista nerd. Isso nos aproxima do que ela propõe na obra, que é uma coletânea de ensaios publicados em jornais e revistas, nos quais ela explica a teoria desde os conceitos básicos de fantasia, ficção científica e do gótico. À medida que nos provoca e intriga com muito humor e ironia, Russ nos ensina o caminho das pedras para análise de obras escritas por e sobre mulheres o que é muito importante para iniciantes e avançadas. Se para uma iniciante é difícil entender como se aplica o "pessoal é político" na escrita acadêmica, para a pesquisadora experiente, o desafio talvez seja encontrar modos criativos de se apropriar da teoria e produzir textos acadêmicos mais atraentes. Um exemplo de texto inspirado pela escrita de Joanna Russ é a minha análise da heroína Misty Knight na série Marvel: Luke Cage que você pode conferir aqui.

Já conhece alguma dessas obras? Tem interesse em alguma delas? Comenta ai o que você achou da minha lista e se deseja uma parte 2, ou se deseja um top 10 cinema, terror, gótico...enfim, até breve!

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