Razões pelas quais a vida é estranha

Menino Clay

*Aviso: spoiler*


Os porquês e as coisas

Após tantos textos maniqueístas, a primeira impressão que tive ao assistir 13 Reasons Why (Os 13 Porquês) foi a de que a série era uma espécie de Life is Strange,  sem superpoder, mas com todas as escolhas erradas (ora, mas o jogo não dá quase sempre no mesmo lugar?) e a trilha sonora certa.
Eu já sabia que a série era sobre uma garota (Hannah) em profundo sofrimento provocado por atitudes ou omissões de 13 pessoas. A série é conduzida pelo áudio que ela registrou em 7 fitas k7 antes de se suicidar. Em cada lado das fitas ela contava como e por que cada pessoa estava envolvida com a sua morte. Quem está ouvindo as fitas é o amigo/crush Clay, um nerd típico, que é muito mais um indivíduo com privilégio masculino de não pensar sobre o que é ser homem - tampouco mulher - que uma pessoa horrível.

Eu sei, pode parecer estúpido da minha parte dizer isso, afinal "não pensar" é uma definição possível de privilégio. A série foi eficaz ao fazer pensar no quanto é diferente a apropriação do privilégio para matar ou para não conseguir entender. O Clay é do segundo tipo, porque ele acha elogioso pra uma garota estar numa lista de objetificação. Apesar disso, o fato de ele parar quando ouve um "não" e ir embora quando mandado ir, mostram um caráter básico (não faz dele "homão da porra"), e uma tentativa de acertar, bem diferentes dum Bryce, Justin, Alex, Zack e ... Marcus.

Assim como Clay não pensava sobre o sistema que o privilegia (sexismo), Hannah não pensava sobre o que é ser um homem de origem latina e gay, afinal, “Tony era o único homem que não encarava seus seios”. Privilégio é assim mesmo, estar distante do problema porque ele não existe pra você. A diferença é o modo como nós nos comprometemos em aprender e discutir.

É a partir dessa premissa que a série aborda assuntos importantes como sexismo, violência contra a mulher, privilégios sociais e saúde mental.
Aborda, mas não discute de forma coerente e sincera. Tanto que, boa parte das pessoas identificou problemas discursivos nos primeiros episódios e desistiu. Problemas como a romantização do suicídio, a culpabilização de terceiros e a possibilidade de desencadeamento de outros suicídios são apresentados nos primeiros episódios como condução narrativa. E vejo nisso um problema de narratividade do tipo que faz o público desistir, nem que seja pra olhar para o teto.
Como você conquista o público mostrando que a garota se suicidou e quer culpar, post mortem, a todos inclusive o boy o qual ama? Como ter empatia por uma pessoa a todo tempo arrogante e mal educada?
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Hannah


“A Hannah não foi feita pra gostar”


A garota é apresentada como uma adolescente rebelde comum, sem índices de desequilíbrio químico (diferente de Clay) e, portanto, a causa e a consequência são distorcidos num primeiro contato. Eu mesma me irritei com a persistência da garota em ser desagradável ao mesmo tempo que deseja tanto ser compreendida e amada. Com o passar do tempo, (exatamente nos 3 últimos episódios) a estranheza foi fazendo algum sentido.

Se por um lado, a edição, fotografia, trilha sonora e tudo que envolve a experiência audiovisual atraem quase qualquer público, por outro, a narrativa é uma série de desencaixes e situações inverossímeis que afasta. E não falo de problemas que Syd Field alerta, mas da estranheza dos comentários retóricos e a maestria da “máquina do mundo” (a convergência de fatos improváveis).

Elenco + Selena Gomez

Minha Estranheza

Podemos dividir a série em três faixas: os episódios de 1 a 5 (em que você acha que conhece a história) de 6 ao 9 (inversão) e do 10 ao 13 (o “aaaaaaaah sim”).
Por mais que sua postura como público seja a de tentar compreender melhor cada personagem, a primeira impressão de Hannah é a de que ela é uma garota socialmente padrão, levemente inadequada e totalmente azarada. Ela parece arrogante e o que se mostra é uma personalidade interessada em ser apreciada, sem se esforçar para ser agradável, isto é, um paradoxo.
A medida que o conteúdo das fitas vai sendo apresentado, descobrimos que as atitudes de algumas pessoas  culminam em situações trágicas que estão além do que o indivíduo faria intencionalmente. Além disso, é importante notar que muitas das 13 razões são pessoas que pertencem a minorias sociais.
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quase todas as razões


Apesar de não ser psicóloga nem diagnosticada (e talvez ser questionada por escrever sobre a série) alerto que a minha abordagem tem origem no famoso "ver racismo em tudo", alicerçada em obras de Grada Kilomba, Frantz Fanon e
Waleska Zanello. Não poderia ser diferente, já que sou uma pessoa negra e faço e vivencio tudo como tal.

Meu ponto aqui é o de que bullying e racismo são violências distintas e que é importante discutir isso. A minha adolescência (ou melhor, toda a minha trajetória escolar) não foi estranha, ela foi marcada por violência estrutural - simbólica, física, epistemológica e burocrática. Não estou hierarquizado o sofrimento, apenas enfatizando que bullying e racismo são experiências distintas.
Apenas uma perspectiva do lugar de privilégio como a branquitude imagina que fazer uma série diversa e quebradora de estereótipos significa vilanizar minorias sociais e contar experiências duma pessoa racializada na pele duma garota branca.


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Mr. Potter  (orientador) e Mrs. Bradley (professora) 

Enquanto representação da realidade social é imprescindível para que o maior número de pessoas compreenda a relação entre sofrimento mental e hierarquia social,
a vilanização de todos os negros da série transmite uma mensagem negativa. Marcus, Mr. Potter são estereótipos de homens negros mais à direita, ao passo que as garotas Shuri e Jéssica são inquestionáveis líderes de torcida. Aparentemente nenhum deles experienciou racismo, nem ouviram falar.

O cuidado que houve em fazer um mosaico grotesco de diversidade não para por aí. Tanto o herói quanto a heroína românticos (brancos) buscam se envolver com pessoas negras e até serem amigos de LGBT+ para evidenciar o quanto não são racistas nem homofóbicos, embora pertençam ao padrão social. Com isso não quero dizer que brancos não sofrem, mas é necessário abordar a diferença entre ser inadequado e ser odiado por ser quem você é, AFINAL ter medo de existir é diferente de sentir desconforto.

Apesar do desejo de ser inclusiva, a série errou ao tentar quebrar certos estereótipos e apagamentos ao passo que visibilizaram outros. É verdade que a maior parte das séries adolescentes não apresenta garotas asiáticas fora do perfeccionismo, “fofura” e feminilidade fetichizada, mas ao apresentar uma garota asiática LGBT+ filha dum casal gay como a grande vilã, 13 Reasons Why não acrescenta discussões válidas sobre a interseccionalidade raça/gênero asiática (quantas personagens asiáticas lésbicas você já viu na TV que não fossem para deleite masculino heterossexual?). A forma como é abordada a situação de armário de Courtney é perversa porque leva o público a odiar simplesmente por ignorar estatísticas de violência e correlacionar o espectro LGBT+ a desvio de caráter. Um tanto medieval fantasiado de diversidade?

Não, "só" bastante ofensivo.

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Justin, no fim das contas, não é enquadrado como "mau caráter", mas sim resultado duma família abusiva.

Faltou discutir o quanto o social influencia o plano psicológico quanto mais distante você está das normas de aparência e de comportamento, de raça, gênero, etnia, sexualidade e classe porque, na série, tudo se prende à moral e ao caráter.

Sexismo (como outras opressões) é uma força deformante que atua sobre o ego e nem sempre ele tem defesas suficientes, porque sua construção já é imersa à opressão. Lembre-se que as opressões preexistem e moldam o que somos e como reagimos antes de sermos capazes de elaborar sobre. Hannah (objeto ficcional) não apenas vive essa realidade como foi criada por ela (roteiristas) recriando imaginários, experiências e visões de mundo tradicionais (eurocêntrica, heteronormativa, classe média).

Meu primeiro questionamento foi: em que planeta se passa a história? Pra além de situações improváveis (como a placa que causa a morte dum amigo próximo) o que me parece mais estranho é a história vilanizar pessoas que normalmente estão do lado do objeto da oração, isto é, são os que sofrem bullying, racismo e homofobia.

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Jessica não apenas é líder de torcida como namora Justin AND é considerada mais "bonita", enquanto Hannah é considerada mais "gostosa" pelos boys da série









"A grama do vizinho é sempre mais verde"


A expressão "em maior ou menor grau", se aplicada a 13RW, me leva a pensar na falta de proporcionalidade entre estuprar (Bryce), encobrir um estupro (Potter) e derrubar uma placa (Sheri) e Ir embora (Clay). Por mais que seja compreensível (não justificável) a lógica de Hannah sobre quaisquer ações terem consequências, tudo acaba em escolha errada (desmedida) que gera uma ação trágica. As sequências da série levam a crer que o vilão de Hannah é muito mais o Destino (saído de Sandman) que o rico, loiro, heterossexual, mais velho e popular Bryce, aliás, não ele, mas a estrutura social que o criou e o mantém.
Essa desproporção embaralha o antagonismo social do ocidente (construído em fundações racistas, masculinistas e capitalistas) que dão papéis muito específicos para os atores sociais. Neste caso, minha crítica não é unicamente sobre assemelhar-se ou não ao real (verossimilhança), mas às improbabilidades cobertas por tintas grotescas de diversidade.
Pense na série Skins. Se já é levemente improvável que a Mini seja uma "abelha rainha" dadas as sardas e as companhias, qual a probabilidade dum grupo de negras serem todas líderes de torcida?E a porcentagem de asiáticas patricinhas malvadas e mais populares duma escola repleta de garotas loiras?

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A cena em que Skye (loira) insiste em dizer que Shuri (foto) é uma das garotas padrão do colégio leva 13RW para o polo da comédia. 

Acompanhar a visão de mundo de Hannah nos possibilita compreender que ela acredita fielmente que garotas negras são mais requisitadas para relacionamento sério, por garotos padrão, que ela.

Óbvio que exceções existem, mas ficções fundamentadas na exceção legitimam ideias equivocadas como racismo reverso. Além disso, focar a dramaticidade em problemas pequenos se comparados a crimes, reitera o discurso de que a vítima é o problema que, uma vez morta, vira solução.

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A protagonista de Life is strange: Max


Tal como fiz agora com 13RW, há anos atrás eu acompanhei um diário de jogo sobre o ovacionado game Life is Strange. O game chamou a atenção pelo protagonismo feminino com representação positiva e pela capacidade de agradar (e divertir) a gregas e a troianas. Eu particularmente não terminei o primeiro capítulo (mesmo gratuito) porque não senti a profundidade (ou desespero) que muita gente sentia à época. Contra mim há o fato de que não vi nada demais em Stranger Things, (talvez porque nostalgia dos anos 1980 não faça muito sentido pra mim, que vivi os anos 1990). Por que diabos eu gostaria de 13 Reasons Why?
Pois bem, não acredito que valeria um post que fosse apenas sobre gostar ou não.


Afinal, a Vida é estranha?

Pra ser sincera, achei bem fofo estilo Juno, com experiências válidas que não são mais as compatíveis com a minha faixa-etária. Não me entenda mal: acho que são necessários sim, só não me identifiquei. E outra: ser uma garota branca esquisita é bem diferente de ser uma garota racializada. Neste sentido, Life is Strange cumpre o papel de não cair no erro da "Diversidade a qualquer custo" e acaba sendo uma história sobre as dificuldades de ser jovem, mulher (branca) e fora dos padrões com bastante coerência entre forma e abordagem.
Vejo essa honestidade como o ponto forte da narrativa do jogo, que foca em Max e sua melhor amiga, ambas brancas, com problemas convincentes (compatíveis às suas realidades). O bullying e a sensação de impotência são assuntos abordados objetivando a conscientização e, no fim das contas, a história é sobre como Max enxerga o mundo. Isso significa que é sim possível discutir questões adolescentes com seriedade e sem panfletar racismo fingindo antirracismo.
Bem, perto de 13RW me pergunto se Meninas Malvadas também não é razoável. Será que se Hannah tivesse assistido aos filmes da Lindsey Lohan ela não poderia ter outra ideia das relações escolares?
A série original da Netflix me é estranha porque parece uma série sobre suicídio, mas sua abordagem leva a crer que é sobre acaso e revezes, como uma tragédia grega.

Roteiristas e diretores de audiovisual sobre/e para adolescentes, costumam errar muito pela tentativa de englobar os problemas e esquecerem a sequência lógica das subjetividades (veja: "deus ex machina" emocional NÃO É profundidade).

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Freaks and geeks
Esse lugar comum conduz séries interessantes que mostram várias perspectivas sobre a realidade. A "garota estranha" de Freaks and geeks lembra Hannah pela situação de privilégio social e inabilidade no ambiente escolar, mas a semelhança é rasa. A piada proferida por Hannah para Clay, após um filme de terror ('Você é racista de zumbis") só faz sentido se houver discussão séria sobre o que significa racismo, sobretudo nos Estados Unidos. O que não é apenas uma questão de privilégio, mas também de aulas de história e de comprometimento dos roteiristas.

O mesmo vale para representação de interseccionalidade raça e gênero.

Em suma, 13RW é uma obra visualmente bem acabada que, segundo o autor do livro (Jay Asher) , se propõe a discutir um tema importante "e tão pouco abordado". De fato, as atrizes principais e a própria produtora executiva e ícone teen, Selena Gomez, pontuam no documentário 13 reasons why: beyond the reasons que o romance foi uma obra imprescindível durante a adolescência delas.

Não duvido que seja, assim como a série foi pra muita gente. Apesar disso, mais estranho que a vida é: como, dentre tantos porquês, nenhum questiona a narrativa dramática duma jovem branca que é preterida, ignorada e humilhada por muita gente afetada pelo sistema racialista e homofóbico que está a favor de Hannah?


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