[Crazyhead] Por que precisamos dum feminismo nerd interseccional?


Nesta semana da mulher, de 1º a 8 de março, portais nerds feministas se juntaram em uma ação coletiva para discutir de temas pertinentes à data e à cultura pop, trazendo análises, resenhas, entrevistas e críticas que tragam novas e instigantes reflexões e visões. São eles: Collant Sem Decote, Delirium Nerd, Ideias em Roxo, Momentum Saga, Nó de Oito,  Preta, Nerd & Burning Hell, Prosa Livre, Psicologia e Cultura Pop, Valkírias. 


Por que precisamos dum Feminismo Nerd interseccional?

Rachel, personagem de Crazyhead, mostra o quanto eu me sinto deslocada, mais do que estou disposta a admitir (na maioria das vezes). Entendo perfeitamente os anseios de Asher Primus em seu texto para o Afropunk intitulado BLACK NERDS, DON'T CHANGE YOURSELVES FOR THE APPROVAL OF YOUR PEERS ou, Pretos Nerds não mudem vocês mesmos para serem aprovados em tradução livre. É claro que o desejo de pertencer é uma das validações da frase clássica "O homem é um ser social". Claro que nós do PRETA, NERD substituímos "homem" por seres humanos pra fazer sentido, mas o ponto é que o processo de pertencimento à minoria é um "tornar-se" consciente disso, trajetória que passa por amputações simbólicas para pertencer. É involuntário: crianças e jovens sabem que precisam negociar as diferenças para pertencerem, abdicarem (ou esquecerem) de porções caras de si mesmas. O problema disso é que as vozes que se sobressaem são as brancas, masculinas, heterossexuais... e o texto de Primus não foge à regra. Ele é um homem negro e assume a "mea culpa" ante o sexismo e, apesar disso, sua experiência é considerada modelo de nerdiandade não-branca. Por quê?


Em boa parte da série, Amy personifica o white feminism bem-intencionado.

Na teoria dos conjuntos, intersecção é aquela área em que se encontram os números inseridos em dois ou mais conjuntos. Assim, mulher E negra E trabalhadora E nerd é a convergência de diferenças. O conceito foi cunhado por Kimberlé Crenshaw para mostrar o quanto as opressões incidem de forma diferente conforme aspectos como raça, gênero e classe. Opressões físicas, epistemológicas e - como focarei aqui - simbólicas.

Nossa cultura ocidental, colonizada, é feita de leis não escritas, dentre elas a de que minorias devem ser modestas. Isso nos condiciona a apenas entrar no jogo se for pra vencer. A não cantar vitória antes dá luta. A não questionar o processo, quando se mostra coerente entre regras e aplicação.

“Eu sou um gênio” (“I”m a Genius") afirma Sammus em sua canção do álbum Pieces of Space. Neste, a rapper traz o brilhantismo do gênero musical a primeiro plano ao usar o substrato que tanto conhecemos (R&B e o hip Hop mainstream) para questionar o ponto nevrálgico do lugar interseccional que ela (eu) habita. Essa voz silenciada que mistura estigmas e resulta em "estranheza" é a voz que o feminismo nerd interseccional visibiliza e reconhece. E se no "mundo real", a interseccionalidade é, muitas vezes, o lugar do desconforto, no mundo nerd é REALMENTE o lugar onde a violência é direcionada. 

Sobre a Raquel que eu recalquei

O mundo acadêmico, ainda que repleto de gênios que elogiam uns aos outros, exige 100℅ de nós (que aliás, só estamos ali porque tivemos que provar sermos muitas vezes melhores) para classificar com surpresa, não genialidade. E isso se aplica a tudo e desde muito cedo. Na maioria das vezes, nossa autocrítica é tão mordaz que a maioria das pessoas não é capaz de propor o que não pensamos. É isso não é arrogância, é condicionamento. De certo modo, sou a própria Kimbili, de Hibisco Roxo, Sammus, Olivia Pope de Scandal e Raquel de Crazyhead. Todas nós fomos cunhadas sob o mantra "Honrar as oportunidades, não envergonhar, saber que nada abaixo do primeiro lugar é aceitável".

Essa experiência feminina e Negra representa um lugar específico que faz toda a diferença na socialização, nos afetos, no sucesso. Não, eu não sou extrovertida, não sei sambar, não chamo ninguém de "nêga". Há quem questiona minha negritude porque sou nerd, há quem não compreenda o porquê de gurias pretas serem nerds, há quem deslegitima tudo. Junto a isso, existe a parte ainda mais terrível, a parte que eu quis esquecer. Eu já fui Raquel.

Crazyhead me fez encarar o que eu lutei para esquecer e jamais admitir, quando decidi não mais ser estranha. Fato é que nós nunca deixamos o que somos (no máximo negociamos o que expor), mas a Rachel encarna o que eu realmente era: deslocada, socialmente inábil, péssimas piadas e falas fora da situação. Havia, claro, a ironia mas todos esses aspectos absolutamente invisíveis pra mim, se tornaram um problema também invisível aos 10 anos de idade. Eu, que adorava pesquisas, não desejava mais ir à escola e até mesmo ao inglês.



A pequena garota que eu fui sentia uma dor social e mental profunda, não tinha amigos, era sobrevivente da maldade de garotas loiras e não tinha imagem, linguagem que explicasse o que isso significava. Eu não entendia a perversidade direcionada a mim "porque eu era inteligente, bonita, limpa, leal, educada e tinha brinquedos legais" (como disse Roxane Gay). Eu não percebia, mas eu poderia ser tudo isso e, ao mesmo tempo, nada, porque não era branca, mas também porque era garota. Junto aos meninos do Counter Strike, eu era uma guria quieta levando a vitória contra eles. Eu cresci e a dor se tornou uma depressão que me fez disfuncional, desastrosa, mas sempre agradável. Sempre lutando por existência.

Aos 10 anos eu estava deprimida e não queria mais ir à escola. Eu não sabia o porquê, mas não queria ir. É claro que há sempre as amigas brancas que não nos merecem, como aquela que enxerga demônios - tal como Rachel - e despeja opiniões sobre a garota. “Ninguém te liga porque você é estranha” é talvez a frase mais sincera da Amy.

Relembrando...

Estranha como? Lábios cheios? Bunda grande? Olhos não azuis? Pernas marrons? Representando uma história de derrota desleal protagonizada pelos seus?

Na escola havia duas opções: fazer parte do bloco das “meninas” (brancas) e aceitar o inaceitável - a perversidade - ou juntar-se aos “estranhos” que jogavam videogame, brincavam de matar monstros e não performavam gênero como “deveriam” ser, nem eram da raça “correta”. A garota indígena era das pessoas mais agradáveis, e ainda assim, estava fora de tudo, simplesmente não encaixava. Eu observava a contradição entre a maldade das garotas que se julgavam mais que as outras. Mais dóceis, mais delicadas, mais certas e inteligentes. Elas eram perversas, até mesmo nas ações, e se julgavam dóceis e corretas. Elas tinha oito anos e já sabiam o que era privilégio branco, vejam só.

Todas essas derrotas são histórias inglórias que me perseguiram por metade da minha vida, onde quer eu fosse. Que me fizeram querer amputar porções de mim, pra me adequar. Pra pertencer. Que me fizeram entender a Raquel e seu background desde o primeiro quadro em que ela aparece. Que me fizeram recusá-la antes de deixar voltar o recalcado.

A falta de referências nos adoecem e é por isso que precisamos de discutir mais, precisamos de mais imagens de mais análises, de mais diálogo. A falta de referências e de discussões nos fazem acreditar por muito tempo na incompatibilidade entre negritude e nerdiandade. Não podemos mais aceitar simplesmente que o mundo nerd seja cópia fiel do mundo convencional porque garotas Negras, Vermelhas, Amarelas, LGBT, Gordas e neuratípicas todas podem e são/somos nerds. Queira você ou não somos o que quisermos ser. Aprendemos tanto com os ensaios de Audre Lorde quanto com a Tempestade, nos quadrinhos dos X-Men, o valor de compreender e tomar para si nossas identidades estigmatizadas pela "diferença" e jamais permitir que determinem quem somos.

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Daí, tanto pelas expectativas moldadas por estereótipos racistas serem frustradas, quanto por ser mulher e direcionar meu consumo à cultura pop, o feminismo nerd é tão importante pra mim. É parte inalienável da minha vivência combativa, é parte do meu caminho de autoconhecimento e da minha saúde mental. Hoje em dia, assim como Sammus "Eu sou mais uma estranha" [Yeah, I'm just another mad weirdo] confortável com o lugar interseccional. Nem menos Preta, tampouco menos Nerd. E o Burning Hell é o inferno em chamas sexista, racista, classista, LGBTfóbico, gordofóbico, capacitista que tenta nos destruir, mas não: WE CAN NERD IT!

Referências

ANUNCIADA, Patrícia. FEMINISMO INTERSECCIONAL: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO. Disponível em: <blogueirasnegras.org/2015/09/29/feminismo-interseccional-um-conceito-em-construcao/>. Acesso em 28 fev. 2017.
GAY, Roxane. Má Feminista:  Ensaios provocativos de uma ativista desastrosa. São Paulo: Novo Século, 2016.
KALI, Tamar. Boot. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=-6-WQTjiIyU>. Acesso em 28 fev. 2017.
LORDE, Audre. TRADUÇÃO: Idade, Raça, Classe e Sexo: Mulheres redefinindo a diferença (Audre Lorde). Disponível em: <www.pretaenerd.com.br/2015/11/traducao-idade-raca-classe-e-sexo.html>. Acesso em 28 fev. 2017.
SAMMUS. Weirdo. Disponível em: <genius.com/Sammus-weirdo-lyrics>. Acesso em 28 fev. 2017.


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