DEMOLIDOR” E A VIOLÊNCIA GRÁFICA CONTRA O MIM/NÓS (1 DE 2)





“Na sua opinião Como podemos evitar a guerra?”. [Virginia] Woolf começa por observar, com mordacidade, que entre eles dois [ela e seu interlocutor - advogado] talvez não seja possível um diálogo autêntico. Pois, embora pertençam à mesma classe, “a classe instruída”, um vasto abismo separa: o advogado é o homem e ela é mulher. Homens fazem a guerra. Homens (em sua maioria) gostam de guerra, pois para eles existe “uma glória uma necessidade e uma satisfação em lutar” que as mulheres (em sua maioria) não sentem ou não desfrutam. o que mulher instruída - leia-se rica, privilegiada - como ela sabe sobre a guerra? pode sua repulsa ao fascínio da Guerra ser como a dele?


(SONTAG, 2003, p.9 - grifo nosso)



Notas sobre o Demolidor
Uma vez que muitos fãs/academicos tomaram como verdade que o Frank Miller é fascista, passaram a considerá-lo (ou desconsiderá-lo, depende do ângulo) como um lunático. A partir desse suposto reconhecimento, enrijeceram o criador fora de suas criaturas, dissolveram a crítica “porque ele é assim mesmo” e esqueceram, por conveniência, que suas ideias são canonizadas a partir de suas personagens na mídia que for. Em Sin City o típico “cidadão de bem” (à lá Gran Torino, de Clint Eastwood) que decide tornar sua virtude um fardo heroico é uma “modalidade retórica poderosíssima” (SONTAG, 2003) que assistimos agir como se soluções se resumissem a reducionismos. O mesmo se aplica ao autoritário Batman “trevoso”, que deseja eliminar brutalmente o que ele mesmo cria, como um Bruce capitalista: “tudo o que não presta”. O valor do Outro tem a ver com a sua utilidade no sistema de consumo (TIBURI, 2016) que os Wayne criaram e mantêm em Gotham City. Curioso que esse “não prestar” representa um Outro que é historicamente oprimido a partir dum misto de natureza maligna com “o homem é fruto do meio em que vive”, tudo bem mais pro século dezenove.


Fato que, pra Miller, um denominador comum é a violência como um modo de organizar e limpar a sociedade do que é considerado sujo, errado, ilegal e pecaminoso. A retórica é sempre a mesma: a violência gráfica antecede argumentos e, assim, dispõe a audiência contra os sujeitos marginalizados até mesmo quando sua (suposta) ideia foi a de exaltar (Martha Washington). A repetição da violência direcionada a uma população definida em termos de raça/classe cristaliza a desumanização e a ideia da “potência dominante” (SONTAG, 2003) de que esses indivíduos estão ali pra sofrer. Evidencia quem são minorias, mas deixa por dizer a raiz do problema: a opressão capitalista, o imperialismo, o abuso a usurpação e a exclusão. O que gera o crime (a matriz de dominação) espelha-se e se apresenta como um reflexo aumentado e contrário do que realmente é, então o herói que corrobora para violência e exclusão se apresenta como a solução, a manutenção da ordem e - principalmente - da civilidade.



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Demolidor T1 - E6 - O vilão Vladmir balbucia palavras em russo e tem essa resposta.



A ode ao inimigo


Matt Murdock é um vigilante diferente da maioria dos heróis da Marvel, “bem mais sombrio”, dizem. Quando os Vingadores se reagruparam após “A queda” (2004) e da “Dinastia M” (2005/2006) ele foi o único que se recusou a participar porque “só age sozinho”. Diferente da maioria das personagens do mundo dos super-heróis, ele não é o que mais se aproxima da “norma mítica” (LORDE, 1983?), pois é cego, cresceu numa área de risco, seu pai não fora um trabalhador no sentido estrito da palavra. Em suma, é um homem-cis-branco cuja experiência de vida destoa do esperado para uma criança até os 10 anos, quando o pai foi assassinado naquele bairro que Matt insiste em vigiar. Embora o pai tenha deixado uma considerável quantia em dinheiro, suficiente pra cursar direito nos Estados Unidos, aparentemente, ele passou por uma faculdade elitista, vivendo com irmandades e com indivíduos que, de fato, representam a “norma” e saiu com aquela certeza de que ele é muito melhor que as outras pessoas. A lógica diz que parece improvável:esperamos de quem é oprimido maior aptidão à empatia. Se pensarmos num Peter Parker (branco, classe média, escolarizado), perceberemos que o Aranha é a expressão do que ele desejaria ser, o oposto do que ele é quando performa o civil. Comparado ao Matt Murdock/Demolidor, perceberemos que o ego e autoestima de Parker é muito mais frágil e o heroísmo é uma vazão ja que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades” melhora a autoconfiança. Afinal, de onde vem tanto orgulho de Matt?“ O Demolidor se percebe como não tão padrão?” Podemos explicar pela confluência dos conceitos de “branquitude”, heteronormatividade e de sexismo, que Matt está restrito a privilégios tão naturalizados que ele sequer pensa a respeito disso. A sensação de superioridade que ele expressa é tão aterradora que ele não encontra pares com quem dialogar com profundidade, sem impor sua visão de mundo.

Certamente o retorno para a degradada e corrupta Hell’s Kitchen e a inseparável amizade com Foggy Nelson (coadjuvante cômico) tornam-no muito mais próximo da “norma mítica” e dão indícios de respostas sobre aquela experiência anterior, talvez extremas, que não deixaram sequelas tão evidentes. Acredito que as fragilidades não passam de recursos de aproximação com o público e, ao mesmo tempo, de lançar sombra sobre a falta de ambivalências.

Quanto interpelado por um individuo em conflito com a lei (“você é igual a gente” - T1 E6) ele vocifera que não, mesmo ciente do prazer em causar dor. Matt segue uma linha “fascista clerical” (SONTAG, 2003) e, autorizado tanto pelos privilégios quanto pelo direcionamento institucional, tem uma autoimagem tão enrijecia que não apresenta contra-parte ou ambivalência em relação ao Demolidor. Afinal de contas, a visão como sentido é sobreposta por uma série de habilidades que anulam sua percepção do mundo a volta como capacitista. Sua sensação de honra fura o bloqueio que o capitalismo cria sobre ser rico: Matt se sente melhor que todo mundo, um guardião da justiça e da verdade dispondo de todos os meios de coação: a burocracia e a truculência. Truculência aliás, que a série não nos poupa de visualizar. Surrar, açoitar e quebrar ossos se torna a trivial e unívoca resposta aos problemas sócio-políticos e responde ao imediatismo da “maioria”. Sem questionamento real, o herói põe em prática apenas a necessidade de exterminar o Outro - comportamento que Marcia Tiburi caracteriza como fascismo em seu livro Como conversar com um fascista (Editora Record, 2016) - camuflada de ânsia por justiça “cega” e imparcial. Nessa suposta imparcialidade alimentada pelo ódio irrompe a importância de certos corpos em detrimento de outros e a violência simbólica torna-se um tema, jamais uma questão central. Como, alias, o racismo, o sexismo, a xenofobia. Em que momento a série interpela a real máquina de desigualdades e, sobretudo, quem a alimenta? No oitavo episódio da primeira temporada essa questão é levantada pelo subplot do jornalista Ben :


“[...] alguns colhem mais do que semeiam. Porque acreditam não serem como os outros. Que as regras, aquelas de gente como você e eu, gente que batalha pra viver, não se aplicam a eles. Que eles podem fazer o que bem quiserem e viver felizes para sempre, enquanto o resto de nós sofre.E eles fazem isso nas sombras. Sombras que criamos.Com nossa indiferença.Com a nossa falta de interesse em algo que não nos afete aqui e agora. Ou talvez seja a sombra do cansaço. De como estamos cansados de batalhar para voltar a uma classe média que não mais existe, por causa daqueles que pegam mais do que merecem, e continuam pegando até que só reste para nós uma lembrança de como as coisas eram antes das corporações e lucros decidirem que não importamos mais. Mas importamos.Você e eu. As pessoas dessa cidade. [...] Há alguém em Hell’s Kitchen que não compartilha dessa crença. Ele está em nosso meio há algum tempo [...](Netflix, 2015. Demolidor T1 E7)

Problemas do consenso nerd

A questão que levanto aqui, não é do excesso de violência, mas dos interesses que ela reitera. Perguntar “o porquê” e refletir sobre o “como”, corre o risco de ser entendido como anacronismo, porque “todo mundo sabe que o Demolidor tende ao fascismo” principalmente na época do Frank Miller. Reitero que esse consenso sobre “o cidadão de bem que defende porte de arma” apenas desqualifica reflexões pertinentes. Nerds tradicionais [*], descartam a política e a possibilidade de reflexão que o seus objetos de consumo proporcionam. Sem dúvidas, essa suposta neutralidade apenas evidencia o engajamento com o “seu igual”. Quando o público não se posiciona ele concorda com a perspectiva, a abordagem e o modo de interpelar o Outro. Prova dessa carência de empatia, fascínio pela dominação e pela violência levou a maioria dos rapazes se identificarem, em 2015, com o vilão KillGrave (o Homem Púrpura) de Jessica Jones e a preferirem a série Demolidor em detrimento daquela. Esse abismo não apenas separa as experiências sociais como indica pressupostos e entendimento sobre política, história e direitos. Verdade que várias garotas podem ter se identificado com esse Demolidor à lá Frank Miller e por razões diversas, mas elas devem estar convictas de alguns privilégios ou tentando concordar com o que a hegemonia ensina a concordar (Síndrome de Estocolmo).

Em suma: por que é tão importante começar um texto que fala sobre violência gráfica sofrida por mulheres negras na cultura de massa tratando do ponto de vista do criador e da criatura? Porque compreender o modo de olhar de quem conduz a narrativa, revela a camada central que nos interessa: a violência gráfica contra o Mim/Nós.




NOTA

[*] os burning hell


REFERENCIAS

LORDE, Audre. Sister outsider: essays and speeches. California: The Crossing Press, 1984.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. Rio de Janeiro: Record, 2015.


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